A retomada da votação do Projeto de Lei 2.903/2023 põe em risco a garantia dos direitos das infâncias indígenas desde saúde, educação, moradia e suas tradições
Com a retomada da votação do PL 2.903/2023 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o Lunetas listou seis direitos básicos das infâncias indígenas que estão ameaçados - inclusive a própria possibilidade de existir.
“Disseram que eu não podia mudar o mundo, que não valia a briga, mas uma vozinha soprou em meu ouvido… talvez você consiga.” A partir desse sussurro, a protagonista de “Talvez você consiga” (Pequena Zahar), de Imogen Foxell, acredita na potência de uma semente. Aos poucos, ela acompanha uma árvore dar frutos, os rios se recuperarem e a natureza ser novamente habitada por “bichos, aves, abelhas tantas.”
A possibilidade de acompanhar do que a vida é capaz quando há cuidado investido é uma sabedoria ancestral que os povos originários têm defendido manter. Proteger a natureza significa proteger sua casa e de onde podem acessar seus direitos básicos de saúde e alimentação, por exemplo. Por isso, o que eles mais temem é que os projetos de destruição dos territórios habitados por milênios sejam concretizados.
“Nossos antepassados sempre nos falaram dos surgimento das plantas, rios e animais. Mas, agora, o STF [Supremo Tribunal Federal] quer apagar a nossa história”, diz Alessandra Korap Munduruku, líder indígena e vencedora do prêmio Goldman de Meio Ambiente, em seu pronunciamento contra o marco temporal.
Nesse mesmo sentido, o escritor e ativista Daniel Munduruku considera o marco temporal “uma aberração”, porque fere os direitos da existência indígena. “Não apenas para as crianças, mas para toda a população que é guardiã do território e da riqueza ambiental do país e faz a diferença no mundo todo.”
O marco temporal propõe uma série de condições aos direitos dos povos indígenas em ocupar suas próprias terras. Conforme o texto, apenas as terras habitadas desde 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal, seriam, de fato, propriedade indígena. Além disso, prevê a revisão de terras demarcadas após a mesma data.
“[O marco temporal] vai roubar o futuro das crianças, atingindo imediatamente as crianças indígenas”, afirma Daniel Munduruku. Para Alessandra Munduruku, o marco temporal não faz sentido. Isso porque “vivemos há milhares de anos; a gente não nasceu no dia 5 de outubro de 1988″, diz. “Então, apagar a nossa história é apagar também o que está acontecendo com o planeta, que está doente e ferido.”
“Eles arrancaram nossas folhas, quebraram nossos galhos, derrubaram nossos troncos. Mas, esqueceram do fundamental: arrancar nossas raízes!” – Maninha Xukuru, liderança do movimento indígena
Sem demarcação, toda a rotina da criança fica comprometida. É o que afirma Dineva Kayabi, professora da escola indígena da TI Juporijup, no Mato Grosso, e vice-coordenadora do Centro Amazônico de Formação Indígena (Cafi). Por isso, ela explica que garantir os direitos básicos da infância é também garantir que meninas e meninos cresçam em um território seguro, sem invasões e conflitos violentos. “Com território, as crianças têm o lugar delas para pescar, viver o dia a dia com os pais e saber os pontos sagrados da conexão com a natureza.”
A partir do que Dineva Kayabi, Daniel Munduruku e Alessandra Korap Munduruku relataram ao Lunetas, destacamos seis pontos fundamentais para entender melhor como o marco temporal atinge os direitos básicos das crianças indígenas.
“A gente quer beber água limpa, ver a floresta em pé e ver nossos filhos saberem a nossa cultura, as línguas, as danças, as histórias. O marco temporal não pode apagar a nossa história” – Alessandra Korap Munduruku
“Na escola, elas aprendem a teoria. No território, elas estão aprendendo a ser livres. Aqui, a gente não ensina a disputar poder” – Dineva Kayabi
“As crianças já estão impactadas pela chegada das cidades em seus territórios. Com o marco temporal, a continuidade dos saberes fica comprometida porque isso vai impactar na autoestima, nas escolhas e nas possibilidades das crianças” – Daniel Munduruku
“Vai voltar ao tempo em que nossos avós e pais foram tirados das terras à força. Isso é muito triste, porque ser tirado de um território para ir para outro é como ser tirado dos braços de uma mãe” – Dineva Kayabi
“As crianças estarão fadadas a não ter mais um território para chamar de seu. Além disso, elas correm o risco de crescerem infelizes” – Daniel Munduruku
Neste 30 de agosto, o Supremo Tribunal Federal retoma a votação do PL 2.903/2023, chamado de marco temporal, que estava suspenso desde junho. Em contrapartida, diversos movimentos sociais indígenas e não-indígenas participam de uma mobilização nacional pressionando o STF para uma votação contrária ao PL. Isso porque, se aprovado, o projeto afetará 1,7 milhão de indígenas do país, sobretudo a vida das crianças.