“Sou criança, sou negra, também sou resistência. Racismo aqui não, se não gostou, paciência”, canta MC Soffia em “Menina pretinha”. Soffia Gomes Correia, 19, começou a cantar aos seis anos de idade. Mas, segundo conta ao Lunetas, o hip hop está presente em sua vida desde quando estava na barriga da mãe.
Mais tarde, a identificação com a cultura se fortaleceu por “gostar das palavras e das rimas”, diz. Por meio delas, pôde cantar sobre crianças parecidas com ela e contribuir para um movimento de empoderar meninas negras.
“No hip hop, crianças e adolescentes ganham recursos para lidar melhor com sua negritude, cabelo, estética e vestimentas. Ao reconhecer seu potencial, uma criança é capaz de desenvolver todos os seus aspectos lúdicos”, afirma “Big” Richard Santos, rapper, doutor em ciências sociais e professor na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).
Esse é um dos motivos por que letras que abordam desigualdade social, racismo e violência policial ressoam sobretudo entre crianças negras e periféricas. Para Santos, a dança e a música tornam o hip hop um instrumento lúdico, “que fortalece a identidade e a autoestima da criança, permitindo que ela viva sua corporeidade como um todo”.
Segundo ele, o hip hop faz parte da “pedagogia da autonomia”, de Paulo Freire, à medida que traz o sentimento de pertencer a uma comunidade, não apenas para integrar um grupo, mas “interferir de forma ativa e positiva para transformar os espaços em que vive e interferir nas relações do mundo – ainda que impere na sociedade a branquitude”.
O impacto do hip hop na autoestima das crianças
“Eu gosto de hip hop porque fala do dia a dia, das coisas que acontecem na vida. As letras são bem bonitas, tocam o meu coração”, diz Alice, 9. A mãe e a irmã mais velha também são fãs e em sua casa sempre tocam Racionais MCs.
“Não adianta querer ser, tem que ter pra trocar
O mundo é diferente da ponte pra cá”
– “Da ponte pra cá”, Racionais MCs
Mas, foram os versos de “Pequenas alegrias da vida adulta”, canção de seu rapper preferido, Emicida, que cativaram Alice. “Correr a maratona, chegar primeiro, e gritar ‘é por você, amor’. Eu vou bater de frente com tudo por ela, topar qualquer luta, pelas pequenas alegrias da vida adulta”.
Para Carolina Novaes, 25, o street dance foi paixão à primeira vista. “O rap era quase proibido na minha casa. Comecei a me envolver com o hip hop pela dança ainda na infância e pré-adolescência.” Cantoras como Ciara, Beyoncé e Kelly Rowland foram as referências que conduziram seu “processo de cura”, moldando completa e positivamente a forma como ela se enxergava à época. Agora, fundadora da revista digital de hip hop Brasa Mag, as mulheres do rap continuam a lhe acompanhar todos os dias.
“Com elas aprendi a não só me achar linda, mas também capaz e competente”
O efeito Tik Tok
“Eu gosto porque eles se expressam muito nas letras, tem detalhes nas músicas que demonstram o sentido dela”, comenta Edson, 12, fã de Racionais MCs. O contato com as rimas do grupo chegou por meio do Tik Tok. Ele até já compôs músicas próprias, mas, enquanto não se sente à vontade para “reproduzi-las publicamente”, compartilha os versos da sua faixa preferida:
“Quem pisou no seu rosto, nego?
Quem zombou do seu corpo, irmão? (…)
Não te chamam de meu senhor?
Por que não sou bom moço?”
– “Rosto (interlúdio)”, VND
No início, o contato com a música acontecia por meio da distribuição de mixtapes (fitas cassete gravadas com faixas de diversos artistas), lembra Santos. Mas, agora, as mídias sociais são as principais responsáveis por difundir e facilitar o contato de crianças e adolescentes com a cultura. “Os jovens vão ser jovens de acordo com sua época”, diz.
Em contrapartida, de acordo com Santos, o funcionamento do algoritmo das redes sociais pode fazer com que os jovens entrem em uma bolha que não é necessariamente saudável. “Diferente do universo das mixtapes que abordava diversas temáticas, de educação à violência, o robô pode fazer com que você fique apenas no universo de um artista.”
Da marginalização a patrimônio cultural imaterial brasileiro
“O hip hop permite que grupos minorizados se coloquem à frente das demandas de um país novo. Isso torna o futuro possível e amplo para todos, e não somente para um grupo hegemônico branco”, finaliza o especialista. Neste processo de transformação, “[as Soffias do futuro] já estão por aí, cantando, compondo e até se apresentando em shows”, diz MC Soffia.
“Eu percebo que minhas músicas ajudaram muito na luta antirracista. É importante trabalhar a lei 10.639 e conhecer a cultura negra, porque o racismo estrutural ainda existe”, comenta. Atualmente, além de “Menina pretinha”, músicas de sua autoria como “Brincadeira de menina”, “Rapunzel de dread” e “Empoderada” estão em livros escolares, inspirando mais e mais crianças e jovens brasileiros.
“Acredite nos seus sonhos. Com estudo, apoio da família, foco e pensamento coletivo, vai dar tudo certo. Ubuntu.”
qá 50 anos, DJs, MCs, grafite e break dance, os quatro pilares que sustentam o hip hop, começam a aparecer nos subúrbios de Nova York, nos Estados Unidos. No Brasil, a cultura chega em meados dos anos 1980 em São Paulo, com artistas como Sabotage e Racionais MCs. Então, quarenta anos depois, a Construção Nacional da Cultura Hip Hop formalizou o pedido de registro do hip hop brasileiro como patrimônio cultural imaterial do país, em julho. Para Santos, por ser uma cultura negra e oriunda das periferias do país, o potencial do hip hop ainda não está marcado na cultura brasileira.
“O hip hop ainda sofre com os efeitos históricos do colonialismo, que marginalizam a história dos não-brancos, dos considerados ‘outros’ ou ‘diferentes’. É preciso mostrar que não é apenas uma cultura, mas várias culturas que formam o Brasil”, diz.