Além de promover bons hábitos alimentares, o contato com o alimento e a sua história é uma forma de estimular o desenvolvimento integral das crianças
O ato de cozinhar com os filhos, desde a primeiríssima infância, é uma forma não só de promover uma boa alimentação, mas também desenvolver habilidades motoras, estimular competências socioemocionais e valorizar o senso de pertencimento.
Muitas vezes, ouvimos de nossas filhas e nossos filhos, de amiguinhas e amiguinhos que não querem comer isso ou aquilo, que preferem tal e tal coisa, não é mesmo? Em muitas casas, onde a comida ainda está disponível, tal comportamento se torna uma espécie de “luta cotidiana” durante as refeições. Mas, afinal, de quem é a culpa?
As variantes são múltiplas. Hábitos alimentares das famílias; oferta de diversos alimentos ultraprocessados nas prateleiras dos mercados a preços cada vez mais populares; propagandas incríveis, porém enganosas, com embalagens sedutoras de alimentos não saudáveis; falta de tempo; falta de saberes culinários e ancestrais; falta de políticas públicas que defendam a saúde e o interesse dos cidadãos e dos consumidores…e a lista poderia continuar.
As crianças podem comer melhor, ter seu desenvolvimento integral enriquecido e seu senso de pertencimento valorado se os responsáveis por seu crescimento se propuserem a realizar um resgate lúdico da nossa história, da nossa cultura e da nossa biodiversidade a partir da relação com o alimento, dentro dos ambientes escolares e das nossas próprias casas.
Eu defendo a ideia que um antídoto para tudo isso pode estar no hábito de cozinhar com as crianças desde a primeiríssima infância. Tudo aquilo que ouvíamos das nossas avós deve ser revisto: cozinha não é lugar para criança; crianças não devem mexer com faca e fogo; cozinha é um local perigoso etc.
O mundo é um lugar perigoso. E quem melhor do que as pessoas que nos amam de verdade para nos ensinar isso? Aprender num ambiente controlado, como nossas casas e escolas, com pessoas próximas e de forma lúdica, pode ser uma forma muito melhor de aprender do que em outros ambientes.
Crianças conhecem o mundo e aprendem através da imitação. Numa cozinha, por meio do alimento e de sua história, é possível desenvolver nos pequenos desde habilidades motoras como a sintonia fina – num trabalho com ritmo e com manifestações concretas de seu interior – até competências socioemocionais.
Transformar um alimento in natura em um prato, petisco ou sobremesa, junto das crianças, é uma forma de promover uma atividade com início, meio e fim. Através de suas mãos e seus gestos, elas revelam toda a sua intenção e o mundo interior, fortalecendo a autonomia, a autoconfiança e o senso de pertencimento.
O alimento é nossa fonte de vida. Ele não só possibilita a nossa existência, como a própria subsistência, cuidado, nutrição e proteção. O alimento pode ser considerado a força motriz do desenvolvimento humano em vários sentidos, tanto fisiológicos quanto culturais. Em torno do alimento, ao longo da história, vimos surgir comunidades, memórias, festas e guerras. A espécie humana, por meio do cozinhar, é a única no planeta que consegue transformar a própria natureza em cultura.
Entender a origem do alimento e de seus caminhos promove uma reconexão da criança com a natureza e seus ciclos de vida.
A compreensão do conceito “Eu transformo o alimento e o alimento me transforma” é essencial para o desenvolvimento integral das infâncias. A nós, adultos, cabe o dever de fazer esse bordão tornar-se realidade.
* Ariela Doctors é comunicadora, educadora, mãe e chef de cozinha. Sua experiência profissional inclui produção de TV nas emissoras Globo e Cultura em projetos educativos e desenvolvimento de produções cinematográficas. Idealizou, fundou e administrou o Restaurante Tanger na cidade de São Paulo. Atua na concepção e execução de projetos, gestão de equipes, educação e alfabetização culinária, desenvolvimento de material didático e metodologias inovadoras de ensino. Fundou com mais quatro mulheres o Instituto Comida e Cultura, do qual é coordenadora geral.
**Este texto é de exclusiva responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Lunetas.
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“Somos o resultado de tanta gente, de tanta história, de tão grandes sonhos que vão passando de pessoa para pessoa, que nunca estamos sós” – Valter Hugo Mae em “O filho de mil homens”