Cordão da Bicharada: a fantasia infantil de ser bicho da floresta

Além da folia, o Carnaval nas ilhas da Amazônia também é uma oportunidade de celebrar a natureza e a cultura regional

Célia Fernanda Lima Publicado em 01.02.2024
trÊs crianças fantasiadas de animais da bicharada posam no quintal de uma casa
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Resumo

Carnaval é a época de crianças se divertirem em várias festas populares pelo país. Do samba ao frevo e das micaretas aos bloquinhos de rua. Na região norte, o Cordão da Bicharada reúne crianças e adultos fantasiados de animais da floresta e alertam para a preservação.

Na vila do Juaba, em Cametá (PA), a fauna amazônica dá vida ao Cordão da Bicharada. Adabiel, 7, veste a roupa de pica-pau desde os três anos. O menino segue outras crianças e adultos das ilhas do baixo Rio Tocantins, que desfilam ao som da fanfarra até a beira do rio, fantasiados de boto, tucano, cobra, jabuti, macaco, onça… São 30 animais que saem pela rua dançando, cada um com seus trejeitos próprios: vale pular, imitar voos, rastejar.

Quando conseguir conduzir outra fantasia, Adabiel já sabe o que escolher. “Depois vou querer usar o pinguim”. Para ele, a melhor parte da festa é “dançar e ver as falas dos outros bichos”, diz. Mas ele acompanha todos os preparativos para o cortejo de camarote, na casa da avó, Feliciana Tavares, onde as fantasias ficam guardadas e a banda vai ensaiar. “Ele fica observando, é curioso”, conta. Foi assim, vendo a avó, que o menino passou a ter vontade de também brincar no cordão.

Quem organiza a festa são os próprios moradores de Cametá. Os ribeirinhos saem pelas vilas chamando as pessoas para brincar e formam um grande círculo para os fantasiados se apresentarem. O desfile oficial da Bicharada acontece, geralmente, na sexta-feira de carnaval. Depois de andar pelo Juaba, os bichos e a banda pegam o barco e, então, chegam ao centro de Cametá para animar o outro lado do rio. O cordão é um dos blocos do Carnaval das Águas, tradição dos foliões que dançam e navegam pelas águas do baixo Tocantis.

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Arquivo pessoal

Vestido de pica-pau, Adabiel brinca no Cordão da Bicharada, da vila do Juaba, em Cametá (PA). O menino acompanha a avó e os tios nos ensaios e na preparação das fantasias.

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Arquivo pessoal

Adabiel e os amigos se preparam com suas de fantasias de pica-pau, boto e pinguim, todas feitas artesanalmente.

Grito de carnaval a favor da floresta

A ideia partiu da vontade de fazer um carnaval diferente, conta mestre Zenóbio Ferreira, um dos fundadores do Cordão da Bicharada. Até então, a tradição era a banda sair pelas ruas da vila, tocando marchinhas que contavam histórias de personagens da própria comunidade. “Pensei em fazer um mascarado diferente, com fantasias de bichos, que trouxesse uma mensagem da floresta, e assim aproximar as pessoas da realidade local e conscientizar para a preservação“, lembra. Na época, em 1975, os impactos ambientais causados pela construção da barragem para a Usina Hidrelétrica de Tucuruí, segunda maior do país, gerava debates no interior do Pará. Daí a importância de falar sobre cuidar da natureza e dos bichos.

Para manter o suspense entre os brincantes, mestre Zenóbio conta que tudo era feito escondido. Ou seja, o grupo virava a madrugada confeccionando as fantasias e ensaiando as novas marchinhas. “A gente trabalhava na calada da noite. Quem não sabia costurar, ficava para ajudar contando história para passar o sono ou para fazer um café. E quem entendia de arte, ajudava a fazer as fantasias”. No início, os materiais eram improvisados porque não tinha como viabilizar os recursos. Por isso, usavam a malva, para fazer o pelo do animal, e casca de pau, para tingir, além de outros materiais como serrapilheira e lona crua (que embalava café). Hoje, também se usa EVA e pelúcia, por exemplo.

Versos para a onça pintada e um alerta para a devastação

Em quase 50 anos de história, mestre Zenóbio guarda um acervo de mais de 80 personagens, fotografias e canções compostas para cada tema. Todo o material fica exposto no ateliê em sua casa, em Belém. Ao mesmo tempo em que lembra as histórias, ele canta a marchinha da “Festa dos bichos”. A canção foi uma homenagem à dona onça, que estava triste por ver seu lar devastado:

“O coelho pode servir o banquete para a festa começar. Tia onça estava tão triste, já não tem onde morar. Devastaram a toca dela na floresta. A bicharada resolveu reanimar a rainha da floresta amazônida. Fazendo a festa neste carnaval. O bicho toca, tia onça dança. Vamos, galera, encher a pança! A festa já esquentou. Não queremos confusão. Macaco tocando flauta. Elefante, o bombadão. O urso bate o pandeiro e a preguiça puxa o rabecão.”

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Célia Fernanda Lima

Mestre Zenóbio é um dos fundadores do Cordão da Bicharada, em 1975. Por mais de 20 anos, ele tocava saxofone na banda, criava as marchinhas e organizava as fantasias. Atualmente, mora em Belém (PA), onde guarda um acervo de fantasias e composições da época.

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Célia Fernanda Lima

As fantasias homenageam os animais da floresta. A iguana é um deles, feita com materiais como a malva, EVA e lona.

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Célia Fernanda Lima

A onça pintada já foi homenageada em uma marchinha que alerta para a devastação da floresta.

E as crianças, quando entram na história?

Por 20 anos, só os adultos se fantasiavam na Bicharada. Como os animais parecem reais e os brincantes imitam inclusive os ataques de cada um, as crianças, apesar de curiosas, ficavam assustadas. “No começo, elas tinham medo. Se seguravam atrás dos pais e falavam que não queriam ver, mas olhavam por trás das pernas deles”, lembra Zenóbio.

Então, elas começaram a aparecer na casa do mestre pedindo para brincar com as fantasias. “Foi em 1993 que passamos a fazer as fantasias para as crianças. Teve tucano, garça, botinho, papagaio, borboleta”, conta. Assim, meninos e meninas se juntaram na folia do Juaba, vestidos de bichos, cantando e levando à frente a tradição que passa de geração em geração, como aconteceu com Adabiel e a avó Feliciana. “No início eu saía de tucano. Meus filhos já participaram dançando com as fantasias mas agora é o neto. Todos envolvidos”, diz. Para ela, o carnaval é uma alegria, pois até os turistas vão fazer foto da sua casa, sempre toda enfeitada.

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Raimundo Paccó

Na vila do Juaba, no interior do Pará, o Cordão da Bicharada atravessa gerações que animam crianças e adultos com as fantasias que parecem reais.

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Raimundo Paccó

No barracão, as crianças vestem as fantasias de bichos da floresta, que antigamente eram feitas escondidas para causar surpresa entre os moradores.

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Raimundo Paccó

A Bicharada faz parte do Carnaval das Águas, onde vários blocos das ilhas do baixo Tocantins atravessam as águas com foliões brincando e cantando.

Outros carnavais tradicionais pelo Brasil

Frevo
O ritmo dançante, a roupa colorida e o guarda-chuva típico contagiam qualquer um que passa o carnaval em Pernambuco. Declarado Patrimônio Imaterial da Humanidade pela Unesco, o frevo vem da música alegre e resistente do carnaval de rua de Recife. As crianças e suas famílias descem as ladeiras das ruas históricas da capital marcando os passos certeiros da dança.

Micaretas
É de Salvador a tradição do carnaval das micaretas. São milhares de pessoas atrás de trios elétricos, vestindo abadás e cantando axé. Na programação, atrações específicas para crianças com músicas e personagens conhecidos da garotada permitem que elas também se divirtam atrás de um trio elétrico pelas ruas da capital baiana.

Escolas de samba
Os desfiles das escolas de samba marcam a identidade do carnaval brasileiro, conhecido internacionalmente. Com raízes do samba e de comunidades da periferia, famílias inteiras se dedicam na preparação do desfile de onde sai uma campeã. Nesse meio, crianças participam de todo o processo e reforçam os vínculos com suas comunidades. Atualmente, o maior desfile do país é o do Rio de Janeiro, com alegorias gigantescas e a presença de mais de 3 mil participantes em cada escola, seguido pelo carnaval de São Paulo.

Blocos de rua
Em todo o país, os blocos de rua arrastam crianças e adultos por ruas e centros históricos. Tem marchinha, banda de fanfarra, músicas regionais, blocos temáticos e tradicionais. Um deles, o Bobo Gaiato, acontece em Porto das Pedras (AL), onde crianças aprendem a confeccionar e brincar com as máscaras do “bobo”. O adereço faz parte do bloco que une gerações no carnaval animando as ruas da cidade.

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