Nesse período inédito da história da educação, falta consenso e sobra emoção para quem está vivendo a experiência da reabertura das escolas em meio à Covid-19
O Lunetas conversou com alunos, pais e professores de diferentes regiões do Brasil para entender como está a experiência de volta às aulas presenciais durante a pandemia. Entre idas e vindas, falta consenso entre os estados e municípios sobre a reabertura das escolas.
“É tudo novo, a gente não sabe o que é certo ou errado”, define Giana Milani sobre a volta às aulas presenciais da filha Alice, 5. A criança voltou para a escola privada onde estuda no início de setembro, mas tem sido uma experiência diferente do que era até meados de março, quando as aulas presenciais foram interrompidas pela pandemia. Passados seis meses desde os primeiros casos de Covid-19 no Brasil, a educação tenta retomar o ritmo habitual, porém falta consenso e sobra emoção entre aqueles que estão vivenciando esse regresso.
Nenhum estado retomou as atividades por completo: o cenário é múltiplo e toma como base os dados disponíveis sobre contágio em cada região. Há estados que voltaram com as aulas do ensino privado e público, somente para o ensino médio, como é o caso do Amazonas. No Pará, algumas poucas cidades retornaram com as aulas do ensino municipal e da rede privada. Outros estados retomaram somente o ensino privado em cidades com baixa taxa de casos, como o Rio Grande do Sul e o Mato Grosso.
De maneira geral, a volta às aulas presenciais está acontecendo em ondas, começando pelo ensino médio em instituições privadas, dada a pressão do setor. A rede pública em todas as etapas, bem como os ensinos fundamental e infantil da rede privada, vivem de incertezas. É comum encontrar exemplos de recuo de uma decisão por retomada, como aconteceu no Amazonas, no Distrito Federal e em cidades como Curitiba (PR) e São Luís (MA). A flutuação nos dados da pandemia baliza os adiamentos.
Primeiro no país a retomar as aulas presenciais durante a pandemia, o Amazonas testou 342 professores da rede pública positivos para a doença após o início das aulas do ensino médio, no dia 10 de agosto. Com isso, a volta do ensino fundamental, prevista para 24 de agosto, foi adiada.
“A retomada ocorrerá após a Fundação de Vigilância em Saúde validar os protocolos, que estão sendo implantados em todas as 107 unidades do ensino fundamental de Manaus”, explica o secretário de Educação em exercício do Amazonas, Luis Fabian Barbosa. “Outro fator importante é a testagem em massa dos profissionais de educação que já retornaram às atividades. Do ponto de vista epidemiológico, é importante garantir que, até o início das aulas do ensino fundamental, tenha sido testado o maior número de servidores”, completa.
Oito estados estão com a volta às aulas presenciais na rede pública e particular agendadas para acontecer em outubro. Quem já vive essa experiência desde o começo de setembro relata medos, angústias e descobertas desse período inédito na história da educação.
As aulas presenciais de Alice foram interrompidas na metade de março. Desde então, a criança tinha uma rotina de estudos on-line. A cada dois dias, a família recebia um vídeo e algumas atividades para fazer com a menina. “Foi bem difícil acompanhar, pois não sou professora e precisei aprender a ensinar de forma mais lúdica. Minha filha ficava muito impaciente”, lembra Giana Milani. Em maio, começaram os rumores de volta às aulas presenciais na cidade onde moram, Bento Gonçalves (RS), o que só se confirmou em setembro.
Embora o município tenha autorizado o retorno facultativo das 21 escolas infantis privadas no dia 8 de setembro e das públicas municipais no dia 14, o reinício estava condicionado à classificação da região da Serra Gaúcha no Distanciamento Controlado previsto pelo Estado. Isto é, se a bandeira fosse vermelha, as escolas não poderiam abrir. Giana soube uma semana antes que Alice poderia regressar à sala de aula. “Foi uma escolha muito difícil, fiquei pensando na minha mãe e nos meus sogros, grupos de risco. Fizemos uma roda de conversa em casa e decidimos deixá-la ir para a escola”, conta.
O retorno é também um período de readaptação. Alice não queria a volta das aulas presenciais, dizia que preferia ficar em casa com a mãe. “Era um sentimento dúbio. Ao mesmo tempo, ela afirmava que queria ver novamente os coleguinhas”.
A escola mandou previamente um vídeo, com as orientações e protocolos adotados. A temperatura é conferida na porta de entrada, onde a criança deixa o tênis, limpa os pés e calça outro sapato. A família envia máscaras, para serem trocadas, e os professores usam proteção nos pés e na cabeça. Antes do regresso, o corpo docente foi testado. Mesmo com esses cuidados, as salas funcionam com 50% da capacidade. Alice vai todos os dias, porém apenas no horário da tarde.
“Eles colocaram duas professoras na sala para cuidar. Confio na escola e nas professoras. Lá, estudam crianças até seis anos. Na idade dela, sei que é mais fácil conter os abraços, ela entende melhor a questão da máscara, de não tocar nos colegas. Também venho construindo essa consciência em casa. Os menores, já não sei. Pode acontecer uma mão na boca, no rosto, que é algo que também ocorre com os adultos”, conta a mãe.
Este mapa, produzido pela Federação Nacional de Escolas Particulares (Fenep), atualiza diariamente as condições de abertura de escolas privadas do Brasil. Para o ensino público estadual e municipal, as decisões são via decreto.
Para Thays Lima, o retorno da filha às aulas é mais do que uma questão da aquisição de novos conhecimentos técnicos. Maria Luísa, 7, tem Transtorno do Espectro Autista (TEA) e, desde que começou a pandemia, parou de estudar. A família tentou aulas remotas, mas a menina não conseguia se manter atenta. “Era início do primeiro ano do fundamental, decisivo para a alfabetização, porém as aulas on-line a deixavam mais agitada, então optamos por parar”.
Thays mora em Marabá (PA) e havia decidido que Maria Luísa não voltaria aos estudos em 2020, mas começou a mudar de ideia depois do decreto estadual autorizando a retomada de atividades presenciais a partir de 1º de setembro em municípios classificados com bandeiras amarela, verde e azul – risco reduzido de contágio. “Colocamos na balança todas as questões e optamos por levá-la três vezes por semana”, conta.
O motivo para a decisão foi o medo de interromper as evoluções da filha na questão social. “Percebemos que é importante para ela socializar e encontrar os coleguinhas. Sem aulas presenciais, ela ficou mais isolada e com sintomas de sofrimento”, afirma Thays. Para que a filha voltasse, a família buscou informações sobre a higienização da escola, que fecha toda quarta-feira para limpeza.
“Quando ela chega em casa, eu borrifo álcool na lancheira e mochila. Também lavo o copo dela e coloco em um saquinho, que troco todos os dias”
A família já percebeu mudanças no comportamento da menina desde a volta à escola. “Me afligia não saber como seria o processo, mas como ela costuma seguir regras muito bem, usar a máscara tem sido fácil. Percebi que ela está bem mais calma, mas ainda tentando entender que não pode chegar perto dos coleguinhas. Luísa também está retomando as terapias, o que faz uma enorme diferença”, explica.
Depois de seis meses, Andrezza Silva, 18, voltou ao ensino médio na unidade estadual pública de Fernando de Noronha (PE). Apesar do receio em relação à retomada das atividades, marcou presença na aula que aconteceu no último dia 22. “Eu estava ansiosa e, ao mesmo tempo, com muito medo. Achei que seria um caos, que haveria aglomeração, mas me senti muito confortável. Acredito que a escola foi bem adaptada para funcionar na pandemia, com pia na entrada, álcool em gel em vários ambientes e pintura para demarcar o distanciamento. Consegui relaxar para acompanhar as aulas”, diz.
O primeiro dia da reabertura na ilha foi apenas para o ensino médio. Alunos dos anos finais do ensino fundamental (6º ao 9º) voltam no dia 28. No dia 5 de outubro, está prevista a retomada para os anos iniciais (1º ao 5º) do fundamental. A rede municipal de educação infantil tem previsão de retorno a partir de 13 de outubro.
Dos 25 alunos do primeiro ano do ensino médio que eram esperados, 23 – incluindo Andrezza – foram ao primeiro dia de aula em Noronha na única escola para estudantes dos ensinos fundamental e médio do distrito pernambucano. O arquipélago, distante 540 quilômetros de Recife, é a única localidade de Pernambuco que já reiniciou a aulas presenciais. No estado, o retorno às escolas está previsto para o dia 6 de outubro tanto em unidades da rede pública quanto das particulares, mas somente para o terceiro ano do ensino médio. Ainda não há datas para a retomada do ensino fundamental e da educação infantil.
A escola de Fernando de Noronha retornou antes das demais unidades pernambucanas porque o arquipélago não registra a transmissão comunitária – de um morador para o outro – do novo coronavírus desde abril. “A vida aqui já está bem mais próxima do que é considerado ‘normal’ pois houve um controle muito grande, inclusive de entrada de pessoas. O turismo já está sendo retomado aos poucos, mas há um respeito aos protocolos em todas as áreas. As pessoas se conhecem, então fica mais fácil ‘fiscalizar’ uns aos outros, inclusive na escola”, conta Andrezza.
É no ônibus a caminho do trabalho, em Belém (PA), que uma professora de 43 anos, que não quis se identificar, se sente mais vulnerável. A escola da rede municipal da capital paraense onde ela trabalha é uma das 48 unidades públicas de ensino em que houve a volta às aulas presenciais no estado. A volta aconteceu no último dia 14, somente para o 8º e 9º anos do ensino fundamental. “As salas de aula e os corredores estão equipados com álcool em gel. Há tapete sanitizante e controle de temperatura com termômetro. O que me preocupa não é dentro da escola, mas fora dela. Como tenho que sair de casa, pego dois ônibus e no transporte público não tem nada disso. É apertado, quente e úmido. Vou com muito medo, mas tenho que trabalhar”, afirma.
A professora revelou que não poderia informar sua identidade à reportagem porque teme represálias da gestão escolar. “A gente passa por tudo isso sem poder reclamar muito. O número de escolas que voltou ainda é pequeno e é fácil identificar um professor que anda ‘falando demais’”, disse.
A professora ressalta que as dificuldades encontradas na sala de aula não são consideradas pelos “burocratas que definem a volta às aulas”. Mesmo com alunos mais velhos, dos anos finais do ensino fundamental, há desafios relacionados ao comportamento da turma que se agravam no período de pandemia.
“Aluno não é robô, que chega, senta na cadeira e copia o que o professor está colocando no quadro. Eles conversam, puxam a máscara em uma brincadeira, conversam”, conta.
“Educação é relação. Não dá para pensar mecanicamente em como enquadrar todo mundo em um modelo”
“Na rede pública, há carências econômicas e familiares maiores do que em relação às privadas. A escola acaba sendo um refúgio. É difícil, inclusive, não poder abraçar ou conversar mais de perto com aqueles que chegam com muitas dificuldades, precisando de uma abordagem mais afetiva”, completa.
A rede municipal atende cerca de 70 mil alunos do ensino infantil e fundamental e as aulas estavam suspensas desde o dia 18 de março. “Dentro da lista de medidas de prevenção, no retorno às aulas, consta a frequência reduzida de alunos, ações de desinfecção das unidades com pulverizações; tapete com hipoclorito para higienização dos sapatos na entrada e saída dos alunos; controle de temperatura com termômetro de testa infravermelho; dispenser de álcool em gel e instalação de pias na entrada das escolas, com água e sabão para higienização das mãos”, informou, em nota, a Secretaria de Educação de Belém.
Trabalhando apenas em aulas remotas, o professor da rede estadual do Pará Rosivan Silva, 52, disse que os trabalhadores da educação estadual estão se organizando para fazer uma greve caso precisem voltar às salas de aula. “Um decreto estabelece a volta para o dia 5 de outubro, mas não há condições para isso. O Pará é um estado gigantesco geografica e culturalmente. A diversidade é muito grande. Não dá para uniformizar decisões dessa forma”, ele comenta. “Há unidades bem estruturadas, mas também há locais com apenas um vaso sanitário para 600 alunos, com pias quebradas, salas de aula pequenas e sem ventilação”.
“Muitas escolas não têm condições de funcionar sem pandemia, imagine com pandemia”
Situação da volta às aulas por Estado
As secretarias estaduais tomam as decisões de reabertura conforme dados disponíveis sobre contágio em cada região. Nenhum estado retomou as atividades por completo e alguns voltaram atrás após a experiência de retorno às aulas presenciais aos estudantes do ensino médio, quando o número de infectados aumentou entre alunos e corpo docente. Raros são os lugares que optaram pela reabertura do ensino infantil ou primeiros anos do fundamental. Por pressão econômica, a reabertura acontece em maior número entre a rede particular. Veja abaixo a situação de cada estado, segundo dados apurados pelo Lunetas até a data de publicação desta reportagem.
Minas Gerais e Santa Catarina ainda não tiveram retorno das redes pública e privada: para Minas, a previsão é 5 de outubro, já em Santa Catarina a data prevista é dia 13.
Estão sem previsão de retorno os estados do Acre, Alagoas, Amapá, Bahia, Espírito Santo, Goiás (exceto cidade de Acreúna, que autorizou funcionamento da rede privada), Goiás, Paraíba, Paraná, Rondônia, Roraima, Sergipe e Tocantins.
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Mãe de duas crianças, estudantes de escolas públicas na periferia de São Paulo, Adriana Arcebispo, do canal Família Quilombo, fez um desabafo nas redes sociais para mostrar os dilemas que está passando Em forma de poesia, ela tece uma crítica à minuta de protocolo de volta às aulas da prefeitura da capital.