Povos indígenas questionam lei do Pará que altera a educação básica e reforça aulas mediadas por tecnologia nas aldeias, sem amparo à cultura local
Povos indígenas e educadores contestam lei estadual que permite educação mediada por tecnologia, com aulas gravadas, para estudantes de comunidades tradicionais no Pará. A decisão afeta o ensino indígena, quilombola e ribeirinho na Amazônia.
Imagine uma TV falando uma língua e os alunos não entenderem o que o professor está falando nessa TV”, diz Alessandra Korap Munduruku, liderança indígena do Pará. “Aula on-line não serve para nós!”, afirma sobre a educação indígena. Há quase um mês, Alessandra e mais de 300 pessoas, entre professores, lideranças e famílias indígenas e ribeirinhas, protestam na sede da Secretaria de Estado de Educação do Pará (Seduc-PA), em Belém, contra uma nova lei do estado.
O principal questionamento é que a lei estadual 10.820/2024, sancionada em dezembro do ano passado, prevê novas regras para o magistério público do estado, porém, não cita a garantia da educação indígena dentro do território. Além disso, permite a ampliação de “aulas mediadas por tecnologia”.
Alessandra explica que a lei pode reduzir o número de aulas presenciais nas aldeias, e fazer os alunos terem aulas gravadas e transmitidas pela televisão. “Tem escolas que nem têm isso. Os alunos estudam, muitas vezes, em uma casa de palha caindo aos pedaços”, afirma, nas redes sociais do Conselho Indígena Tapajós e Arapiuns (CITA).
Acampados no prédio da Seduc-PA, representantes de diversas etnias como os Arapiuns, Boraris, Tembés, Mundurukus, Xikrim e Tupinambás pedem a revogação da lei e a exoneração do secretário de educação, o gaúcho Rossieli Soares, ex-secretário de educação de São Paulo.
A Constituição Federal prevê que a educação indígena priorize o direito à preservação da língua e da cultura tradicional. Porém, a nova lei do Pará tem lacunas sobre a garantia de uma educação indígena territorializada. Isso porque o texto prevê os planos de cargos e carreiras dos professores, as jornadas de trabalho e demais remunerações. Mas não cita o Sistema de Ensino Modular Indígena (SOMEI), principal ponto questionado pelas lideranças.
Nesse sentido, as comunidades se sentiram inseguras quanto à continuidade de um ensino presencial e dentro de seus territórios. “Nós queremos um direito que é nosso, de cada povo que está aqui, que quer as suas escolas e os seus professores. Que quer as políticas públicas chegando como devem”, explica o pedagogo Poró Borari, coordenador do Sistema Modular de Ensino Indígena (Somei), da Terra Indígena Maró, em Santarém (PA).
Ele conta os riscos de aulas mediadas por tecnologia para estudantes que vivem em comunidades tradicionais. “Quando falamos em educação indígena, falamos de valorizar os conhecimentos tradicionais. Porque eles protegem a biodiversidade e garantem o futuro de nossas comunidades”, disse Borari, em entrevista a Um Só Planeta.
Presentes há mais de 40 anos no estado, o SOME e o SOMEI garantem aulas presenciais a estudantes que vivem em comunidades mais afastadas de centros urbanos e de difícil acesso. Os professores viajam até essas localidades para dar aulas em esquemas modulares, em espaços cedidos pelas prefeituras ou dentro das comunidades por um determinado período de tempo. De acordo com a Seduc-PA, atualmente há 13.729 estudantes matriculados no SOME e 178 no SOMEI.
Para a comunidade indígena, os professores precisam conhecer os alunos e seus modos de vida, participando minimamente da rotina nas aldeias. “Isso os deixam aptos a ensinar e a aprender. Mas não pode ser feito à distância ou de forma virtual, com a intermediação de uma máquina”, ressalta o antropólogo Uwira Xakriabá (William Domingues), coordenador do Curso de Etnodesenvolvimento do Campus Altamira, da Universidade Federal do Pará.
“A educação indígena escolar, como lugar de fronteira de mundos, precisa estar baseada no chão da aldeia.”
No dia 5 de fevereiro, 24 dias após a ocupação dos povos indígenas na sede da Seduc, o governador Helder Barbalho assinou um termo de compromisso para revogar a Lei 10.820/24. Em acordo com as lideranças, o governo deverá encaminhar um novo projeto de lei à Assembleia Legislativa do Estado do Pará (Alepa), que será votado no dia 18 de fevereiro. Mesmo assim, os manifestantes afirmaram que só vão sair do prédio da secretaria após a revogação oficial.
A decisão do governo veio após algumas tentativas de reuniões, inclusive com a presença da ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara. No entanto, somente depois da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) encaminhar ao Supremo Tribunal Federal (STF) uma ação contra a lei e da ministra Cármen Lúcia dar um prazo de cinco dias para o governador e o presidente da Alepa se explicarem, é que o termo de compromisso foi assinado.
Não ter professores nas aldeias e demais comunidades tradicionais implica em transformações sociais dentro e fora dos territórios. O antropólogo Uwira Xakriabá, diz que os impactos seriam “amplos e variados, de acordo com cada etnia”. Mas ele cita a falta de contato com a língua materna e a saída dos estudantes indígenas de suas comunidades para ter aulas na cidade. Isso os deixa expostos a várias formas de violência.
“A agressão mais imediata seria em relação à possibilidade da manutenção de nossas línguas maternas no ambiente escolar. Porque sem estar no território, os professores não teriam condições de aprender o básico necessário para conduzir o processo ensino-aprendizagem”, diz.
Além disso, o antropólogo ressalta a precarização da educação, abandono escolar e os riscos para a preservação da identidade e cultura originária. “Falar de educação remota na Amazônia real, onde não tem energia elétrica, saneamento ambiental e acesso a serviços básicos do Estado é, no mínimo, de mau tom”, afirma. Segundo ele, “esse projeto é danoso para a manutenção da diversidade cultural e dos modos de vida de todos os povos da floresta”.
O Ministério da Educação (MEC) divulgou uma Nota Técnica afirmando que “aulas telepresenciais ou sistemas interativos de oferta educacional não encontram sustentação nos marcos legais da educação”. O MEC diz ainda que esses modelos não contemplam a garantia da “diversidade e inclusão das comunidades rurais”. Isso inclui a educação do campo, indígena e quilombola, de comunidades tradicionais e ribeirinhas.
Xakriabá explica que a educação indígena não se limita ao estudo formal, em sala de aula, pois as crianças também se educam com a comunidade. “Por vezes, nas escolas das aldeias, a aula é no rio, na mata, na roça ou mesmo em nossas mobilizações. Porque, para nós, a educação não é um processo descolado do resto de nossas vidas”, conta. “Ensinamos e aprendemos todos juntos, de modo que a comunidade escolar é a comunidade como um todo e os professores são absorvidos nesse processo.”
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Observando, portanto, os possíveis impactos nos saberes tradicionais, o antropólogo confirma que a lei do Pará deveria ser questionada por toda a sociedade. “Isso porque nós também somos parte da sociedade brasileira. Não somos os sujeitos do passado que ajudaram a formar o povo brasileiro e desapareceram. Nós resistimos e existimos hoje ainda.”
“O que está em jogo diz respeito a toda a sociedade que partilha a vida na mãe terra.”
Em nota ao Lunetas, a Seduc-PA informou que não encerrará o atendimento do Sistema Modular Indígena (SOMEI) – modalidade de ensino presencial dentro das comunidades – nem substituirá por aulas remotas. Além disso, a nota afirma a continuidade do programa, o diálogo com as lideranças indígenas e a elaboração de uma legislação específica para a educação escolar indígena. No site da Seduc, o secretário Rossieli Soares afirmou que o SOMEI não irá terminar e que “grupos políticos querem se aproveitar da situação.”