Por que ainda existem crianças analfabetas no Brasil?

Em dois anos, o número de crianças de 6 e 7 anos que não sabem ler e escrever cresceu em 1 milhão

Alice de Souza Publicado em 13.06.2022
Analfabetismo no Brasil: na imagem, uma menina negra se apoia triste em uma superfície com uma cortina cinza. A imagem possui intervenções de rabiscos e colagens coloridas.
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Resumo

Número de crianças que não sabem ler e escrever cresceu no Brasil após a pandemia e país ainda enfrenta desafios para acabar com o analfabetismo. Como alfabetizar todas as crianças?

Há 50 anos, a educação infantil não era uma realidade no Brasil. Políticas públicas voltadas à educação dos pequenos só começaram a ser criadas em meados da década de 1970. Vinte anos depois, foi-se falar de universalização, ou seja, ter atendimento para todas as crianças em fase pré-escolar, meta prevista para 2016, mas que não foi atingida. O novo prazo determinado pelo Plano Nacional de Educação, o PNE, é 2024. Até lá, espera-se que todas as crianças de 4 a 5 anos estejam na escola. E que metade daquelas de 0 a 3 anos, também. Neste percurso, será preciso enfrentar as desigualdades sociais e de acesso à educação, inclusive o analfabetismo no Brasil, barreiras agravadas pela crise financeira e pelo desemprego decorrentes da pandemia. 

Os dados do Censo Escolar 2021, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais, o Inep, mostram que o país regrediu nas taxas que conseguiu aumentar desde 2005. Entre 2019 e 2021, houve uma redução de 7,3% nas matrículas da educação infantil, deixando quase 660 mil crianças de até 5 anos fora da escola. As matrículas em creches sofreram uma queda de 9%: na rede privada, uma em cada cinco crianças estava fora das creches; na rede pública, o índice foi de 2,3% a menos. Em relação à pré-escola, no mesmo período, a redução total foi de 6%, sendo que, na rede privada, uma em cada quatro crianças deixaram de ser matriculadas.

Os dados preocupam, porque, antes mesmo da crise sanitária, a exclusão escolar no país já era desigual. Em 2019, havia 1,1 milhão de crianças e adolescentes em idade escolar obrigatória fora da escola. De cada 10 crianças e adolescentes nessa situação, seis viviam em famílias com renda per capita de até meio salário mínimo, de acordo com dados do IBGE analisados pelo Unicef.

Educação quilombola

Sete em cada dez crianças e adolescentes, de quatro a 17 anos, que estavam fora da escola antes da pandemia eram pretos, pardos e indígenas. Um estudo do Unicef mostrou que, em 2020, a desigualdade social permaneceu como fator determinante para a exclusão. As crianças entre seis e 10 anos vivendo em áreas rurais das regiões Norte e Nordeste, onde está a maior parte da população indígena, ribeirinha e quilombola brasileira, foram as mais atingidas pela exclusão escolar durante o primeiro ano da pandemia. Com as escolas fechadas em março de 2020, quem já estava vulnerável ficou ainda mais exposto ao agravamento da pobreza, à falta de unidades escolares e creches, e ao acesso desigual à internet.

Quando a pandemia chegou e as escolas passaram a operar on-line, na casa da agricultora Edimone Silva, 36, em um território quilombola em Piatã, na Bahia, só havia um celular com conexão à rede. Era preciso dividi-lo entre as duas filhas, de 6 e 11 anos, que recebiam orientações e atividades pelo WhatsApp. “Às vezes, eu tinha dificuldade, porque o horário de uma era o mesmo da outra. Foi bem complicado. A pequena precisava muito da minha ajuda. No presencial, eu sentia que elas aprendiam bem mais”, diz Edimone. 

As crianças passaram dois anos nessa condição. Juliana, a mais velha, tem más lembranças da época. “No celular, não dá para aprender nada. Agora, a gente aprende muito mais”, conta a menina. Para ela, além da questão de ter apenas um aparelho de telefone em casa, havia ainda outra dificuldade do ensino remoto. Toda vez que a energia caía, a internet ia junto. Juliana lembra pelo menos três vezes quando os estudos foram interrompidos por uma queda da rede. Outro problema está relacionado aos impactos da mineração do ferro na região. “Antes havia muito barulho aqui. A gente estava estudando, de repente, ouvia um apito e uma explosão. A gente levava muito susto”, diz Juliana. 

No Brasil, a educação é um direito social estabelecido pela Constituição Federal de 1988, reafirmado no Estatuto da Criança e do Adolescente e normatizado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996. Em tese, toda criança deveria estar na escola, mas, na prática, como mostram os dados acima, a realidade ainda é bem diferente. Há um apagão de informações e defasagem de políticas públicas que impedem o cumprimento total desse direito, sobretudo em populações historicamente deslocadas dos grandes centros urbanos, como os quilombolas.

Territórios quilombolas

Segundo levantamento do IBGE, o Brasil tem 6.023 territórios quilombolas, locais onde vivem descendentes de africanos escravizados ou com laços de parentesco, o que inclui pessoas brancas, indígenas e amarelas. Essas localidades estão espalhadas por 1.672 mil cidades brasileiras, mas menos de 8% são certificadas. Não se sabe até hoje quantas crianças em idade escolar há nessa população: o Censo de 2022 será o primeiro a identificar a população quilombola no país. 

Os dados mais recentes disponíveis são de 2017 e mostram 242 mil matrículas, na educação básica, em áreas remanescentes de quilombos. A educação quilombola é até hoje um direito a ser efetivado. De acordo com a agenda Infâncias e adolescências invisibilizadas, a realidade é de fechamento das escolas nos territórios, precarização na contratação de professores e não implementação de leis. Há ainda o desafio, de acordo com a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ), de que as escolas valorizem a tradição oral e os contextos culturais dos quilombolas no processo de ensino.

Educação indígena

No caso dos povos indígenas, os dados existem, mas isso não os exclui das precariedades. O país tem, segundo o Censo Escolar de 2019, 267 mil alunos indígenas, dos quais 36 mil na educação infantil. Há escolas indígenas em todos os estados brasileiros e no Distrito Federal. A Educação Escolar Indígena, obrigação de estados e municípios, deve ser bilíngue e cultural, ofertada exclusivamente para alunos indígenas e com professores, prioritariamente, indígenas.

Mas, além de enfrentar desafios como o preconceito e a violência contra os povos originários, essas escolas sofrem com a precariedade. Menos de 10% tem internet, falta energia elétrica em 32% delas, 40% não têm água filtrada, 46% atuam sem material didático específico. Três em cada 10 sequer contam com uma construção própria. Na Amazônia Legal, formada por nove estados e 772 municípios, onde vive a maior parte dos indígenas brasileiros, há uma sub-oferta de creches e a taxa de escolarização bruta na educação infantil é a mais baixa do país, de acordo com o estudo A educação na Amazônia Legal, de dezembro de 2021.

A precariedade estrutural das escolas é relevante, sobretudo, quando se pensa na situação de crianças com deficiências. Dados da organização Todos pela educação mostram, por exemplo, que somente 56% das escolas possuem banheiros adequados para pessoas com algum tipo de deficiência no Brasil e que menos de 30% das salas têm material para o Atendimento Educacional Especializado.

O Brasil tem mais de 20 normativas legais, criadas desde 1960, que versam sobre a educação para essa população, mas ainda hoje a forma de garantir o acesso de crianças com deficiência à educação gera embates: durante a pandemia, o MEC deixou de investir e financiar materiais de suporte ao ensino dessas crianças, como as Sala de Recursos Multifuncionais.

O impacto na alfabetização

Em 2020, quando as portas das escolas fecharam por causa da pandemia de covid-19, muitos medos vieram à tona. Um deles seria o impacto da nova realidade em taxas como a de analfabetismo. Como a saída das crianças em idade pré-escolar da escola impacta diretamente nesse aprendizado, houve um aumento de 66,3% no número de crianças de 6 a 7 anos que, segundo os responsáveis por elas, não sabem ler e escrever. Os piores índices estão entre crianças negras e pobres.

A análise é da ONG Todos pela educação, com base em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE. Na nota técnica “Impactos da pandemia na alfabetização de crianças”, a organização mostra que, entre 2019 e 2021, houve um aumento de 1 milhão de crianças nesta situação. Enquanto houve um aumento de 15 pontos percentuais entre crianças brancas que não sabem ler e escrever, esse aumento foi de quase 20 pontos percentuais entre crianças negras. Entre crianças ricas, o aumento foi de quatro pontos percentuais; entre crianças pobres, o incremento foi de 18 pontos percentuais.

Ainda que as escolas tenham parado temporariamente ou aderido a formas remotas de educação, uns tiveram piores índices que outros porque, de acordo com Aline Paes de Barros, diretora do Marista Escola Social Lar Feliz, a desigualdade do acesso da criança na escola e a questão da alfabetização estão diretamente ligadas ao acesso das demais políticas que essa criança tem. Por exemplo, uma criança que não tem acesso a alimentação de qualidade, habitação, moradia, saúde, cultura e internet, possivelmente vai ter mais dificuldade no processo de alfabetização que crianças que acessam esses direitos de maneira mais igualitária.

Para se ter uma ideia, na região Norte, localidade que apresenta a maior concentração de crianças e adolescentes em relação à população total, está a maior proporção de crianças de até cinco anos de idade em situação de desnutrição, segundo dados de um levantamento da Abrinq. É onde há a maior taxa de mortalidade na infância, mais mortalidade materna e mais gravidez na adolescência. “A gente fala da desigualdade que a criança tem e que impacta a vida dela, antes mesmo de ela chegar na escola. Quando se fala de analfabetismo, se fala de políticas públicas integradas, e não apenas a política pública educacional”, acrescenta Aline.

Alcançar a alfabetização de todas as crianças

Educação e alfabetização de crianças não é só acesso, mas qualidade de ensino. A educação não acontece só na escola, descreve Aline, já que o êxito de aprendizagem no processo de alfabetização depende de uma série de políticas públicas que garantirão que ela possa aprender. Além disso, é preciso adequar o modelo escolar ofertado às crianças de comunidades tradicionais, que muitas vezes está distante da realidade cultural delas. 

A pedagoga Mônica Samia, doutora em Educação e consultora associada da Avante Educação e Mobilização Social, explica que esse é um fator determinante para pensar a alfabetização dessas crianças. “Alfabetização são os processos de decodificação – aprender o código -, mas a gente fala muito também da leitura de mundo”, diz.

Ela lembra que o primeiro acesso da criança à cultura é pela cultura local e valorização da própria identidade. Esses saberes a ajudam a entender os lugares que ocupa no mundo e quais outros lugares existem. Isso é importante porque todo processo de alfabetização envolve a interpretação desse mundo. Uma pessoa alfabetizada não é só aquela que sabe decodificar as palavras, mas ler contextos e entornos.

Para ela, o fracasso no Brasil decorre, entre outras questões, da falta de incorporação dessa lógica ao executar as políticas de educação para crianças de comunidades tradicionais. “No sentido mais amplo, a gente fracassa muito porque não valorizamos esse saber, que é um saber mais comunitário, do território, como um saber que é parte do currículo da escola”, afirma. No Brasil, essa incorporação deveria acontecer por meio da Base Diversificada, complementar à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que estabelece diretrizes para respeitar as características regionais e locais no processo de ensino.

Para os especialistas, alcançar as metas estabelecidas pelo PNE também requer estancar as atuais políticas educacionais estabelecidas em âmbito federal. “O atual governo retrocedeu 30 anos em pesquisas sobre alfabetização. A gente está em um momento que, se você pegar o Plano Nacional do Livro Didático, alfabetização é ler e escrever”, lembra Mônica. Ela também destaca a necessidade de mitigar os impactos da pandemia, o que significa ouvir as narrativas das crianças sobre o que a sociedade está passando, e não apenas seguir com a reabertura das escolas “como se nada tivesse acontecido”. 

Aline diz ainda que é preciso ampliar os investimentos na qualificação dos professores que atuam com crianças em idade de alfabetização, para instrumentalizar a estrutura de trabalho, ter turmas com número adequado de alunos por sala, políticas e estratégias para as crianças com deficiência ou com alguma necessidade específica. Uma vez que não se aproveita essa janela de oportunidades é muito mais difícil para as idades posteriores resgatarem o que deveria ter sido desenvolvido na primeira infância e no ensino fundamental. Há um ciclo contínuo de exclusão social. Essa conta não fecha, conclui.

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