A aporofobia e a invisibilidade de quem está nas ruas

Conversar com as crianças sobre quem vive nas ruas a partir dos livros mostra que a melhor forma para desfazer preconceitos é conhecer a história de cada um

Laís Barros Martins Publicado em 04.12.2023
Cena do livro Aporofobia (Companhia das Letrinhas), que mostra a interação preconceituosa em relação a uma família que vive em situação de rua. Os personagens são coloridos.
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Resumo

Crianças aprendem com os adultos a ignorar a presença de quem vive nas ruas. Para explorar esse sentimento tão conhecido, mas que sem nome fica difícil explicar, autores de livros infantis começam a falar mais sobre a aporofobia, que é a aversão a pessoas pobres.

Em meio a um emaranhado de rabiscos formado por pessoas que se cruzam todos os dias pelas ruas, Alexandre Rampazo vai destacando personagens e imaginando histórias para cada um deles no livro “O que você vê” (Boitatá). Isso nos ajuda a enxergar – ou a sonhar – um menino que está tendo um ótimo dia porque tirou “a melhor nota da turma na prova de matemática” ou um carteiro que gosta de “entregar histórias de saudades e histórias de felicidades”.

Enquanto Tino Freitas e Odilon Moraes contam a história de um menino que tinha um superpoder: “na sua família, só ele via os invisíveis”, em “Os invisíveis” (Companhia das Letrinhas), a dupla Blandina Franco e José Carlos Lollo nos força a olhar para os mais de 281 mil brasileiros em situação de rua que, mesmo existindo diante dos nossos olhos, em geral não são vistos.

Eles são os autores de “Aporofobia” (Companhia das Letrinhas), realizado em parceria com o padre Júlio Lancelotti. O coordenador da Pastoral do Povo de Rua de São Paulo desenvolve um trabalho importante de cuidado e proteção principalmente na região central da cidade. O livro vai apresentar, em síntese, esse conceito que dá nome à obra e que define o sentimento de aversão, medo ou ódio contra quem vive nas ruas.

3 livros infantis que ajudam a dar visibilidade à população de rua

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“O que você vê”, Alexandre Rampazo (Boitatá)

O premiado autor e ilustrador explora a beleza de ser e estar no mundo, cada um à sua maneira, e incentiva os leitores a exercitarem o poder de observação, inclusive de quem acaba invisibilizado. Que história contar sobre alguém que você só observa por trás de uma confusão de gente com percursos diferentes?

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“Os invisíveis”, Tino Freitas e Odilon Moraes (Companhia das Letrinhas)

Neste livro, os leitores conhecem a história de um menino com um superpoder — ele é capaz de enxergar os invisíveis. Enquanto os adultos nem notam mais, ele vê um idoso sentado em um banco de praça, as pessoas em situação de rua ou os responsáveis pela limpeza de um estabelecimento comercial… Mas, à medida que o menino vai crescendo, o que será do seu poder?

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“Aporofobia: você não conhece a palavra, mas conhece o sentimento”, Blandina Franco e José Carlos Lollo (Companhia das Letrinhas)

Feito em parceria com o padre Júlio Lancellotti, o livro traz temas complexos como desigualdade e vulnerabilidade social, de forma provocativa e fácil de compreender. Assim, o leitor acompanha uma família em situação de rua que recebe vários adjetivos e, no fim, entende que esse preconceito velado tem nome.  É a “aporofobia”. O título faz parte da Coleção Canoa, que tem preços mais acessíveis.

O poder de nomear as coisas para transformá-las

O estado de ficar quase invisível acontece quando “não ligamos para um semelhante jogado na calçada”, escreve Guilherme Boulos, no posfácio de “O que você vê”. Para ele, “existem duas formas de ver o mundo: com os olhos da cara ou com os olhos do coração. Uma nos diz o que temos à frente, a outra sente. […] Quando não somos capazes de ver com esses olhos [os do coração], o nome disso é indiferença”.

Em “Aporofobia”, é uma criança que repara numa família em situação de rua e, assim, nos força a olhar também quando questiona: “Quem são essas pessoas?”. “Não são ninguém”, “são fedidos”, “atrapalham o trânsito”, “são perigosos”… “São uns infelizes”. Como resultado, cada uma dessas respostas vai se acumulando sobre o pai e os dois filhos. Até que a gente mal consegue vê-los debaixo do peso das palavras.

Essas agressões verbais mostram o preconceito contra pessoas pobres, a que a filósofa espanhola Adela Cortina passou a chamar de “aporofobia”, nos anos 1980. O termo foi eleito, em 2017, a “palavra do ano” pela Fundación del Español Urgente. Também conhecido por “pobrefobia”, o preconceito persiste toda vez que subimos o vidro do carro quando alguém se aproxima ou trocamos de calçada se uma pessoa vem na outra direção. Esses estereótipos foram relatados à dupla de autores por um grupo de pessoas em situação de vulnerabilidade, na igreja São Miguel Arcanjo, onde o padre Júlio Lancellotti atua por seus direitos há quase 40 anos.

As palavras que (nos) definem

“Esta história nos força a entender o cotidiano de pessoas que vivem em situação de rua, que são agredidas a todo momento pela percepção que desumaniza e destrói os pobres, os fracos e os pequenos”, escreve padre Júlio Lancellotti, na quarta capa de “Aporofobia”. Ao nos convidar a pensar sobre assimetrias sociais, ele chama a atenção para a opressão que começa – e muitas vezes se justifica – pelas palavras.

Por isso, Franco e Lollo escrevem sobre o poder de dar nome às coisas. De acordo com eles, “é muito mais fácil entender uma coisa quando sabemos o nome dela”. Então, o livro é uma maneira de dizer “isso que você sente tem nome, o nome é esse e é disso que a gente precisa falar”.

Assim, o peso da palavra caindo sobre aquela família em situação de rua identifica esse sentimento que existe há muito tempo. “Para o adulto, é incômodo, porque ele se enxerga fazendo aquilo. Mas a criança não entende por que isso acontece. A resposta delas é a empatia, principalmente.”

“A criança tende a ser aporofóbica na medida que é um comportamento aprendido”, dizem os autores. “Por outro lado, se ela vê que o adulto passa por alguém na rua e dá ‘bom dia’ e olha para essas pessoas, é possível mudar. Por isso, falar sobre o tema é a melhor maneira de ensinar uma postura mais humana.”

De acordo com Boulos, as mudanças passam por recuperar os olhos do coração. “Você consegue imaginar, num dia frio, cansado, com fome, você não ter uma casa para onde voltar? Um banho quente, uma cama, carinho? Se conseguirmos ver na criança sem-teto um irmão e na senhora idosa que pede esmola uma avó, vamos vencendo a indiferença. E aí nasce o mais bonito dos sentimentos humanos: a solidariedade.”

A luta do padre Júlio Lancellotti contra a aporofobia

Por fim, a sociedade tem maneiras muito cruéis de dizer que essas pessoas não são bem-vindas. Além das palavras, a “arquitetura hostil” é uma forma de desumanizar e invisibilizar quem vive nas ruas. Estruturas afiadas ou pontiagudas em bancos, canteiros e viadutos são igualmente exemplos de como o “regime da exclusão” mantém pessoas em situação de rua afastada dos espaços públicos.

Promulgada em dezembro de 2022, a Lei 14.489 Padre Júlio Lancellotti proíbe essas estruturas ou construções que impedem as pessoas de se abrigar da chuva sob um viaduto ou de dormir em um banco, e não diretamente no chão. Para denunciar violação de direitos humanos, disque 100. O canal está disponível 24 horas por dia, incluindo sábados, domingos e feriados. Em 2016, o papa Francisco instituiu 19 de novembro como o Dia Mundial dos Pobres.

Mais 2 livros que revelam a aporofobia às crianças:

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“Os pombos”, Blandina Franco e José Carlos Lollo (Companhia das Letrinhas)

Os moradores de uma cidade não se aproximavam dos pombos por medo ou porque os consideravam sujos. Ninguém desejava a presença deles. Nesse sentido, este livro ilustrado parte de experiências reais e expõe a maneira como as pessoas pobres são cada vez mais marginalizadas e excluídas da nossa sociedade.

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“Pobrefobia”, vários autores (Draco) – no prelo

Com lançamento previsto para janeiro de 2024, a HQ surgiu a partir de conversas entre o roteirista Rogério Faria e o padre Júlio Lancelotti. Os relatos, baseados em seu trabalho junto a pessoas em situação de vulnerabilidade, viraram histórias curtas assinadas por Faria. As ilustrações são de Laura Athayde, Lila Cruz, Luiza Lemos e Raphael Salimena. A capa é do ilustrador Wagner Loud.

* As descrições sobre os livros foram elaboradas a partir de material disponibilizado pelas próprias editoras.

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