A invisibilidade do trabalho de cuidado em textos de autoras responsáveis pelo lar e pelos filhos ajuda a quebrar a imagem romantizada da maternidade
Antes de ser tema da redação do Enem 2023, a invisibilidade do trabalho de cuidado já estava presente na literatura contemporânea brasileira. Conheça poemas e trechos de obras de autoras que traduzem a partir da escrita o sentimento de quem cuida.
“Levantei as 3 horas para ler e escrever, porque durante o dia eu não tenho tempo, os filhos rêinam tanto”, escreveu Carolina Maria de Jesus em “Casa de alvenaria”, em 22 de outubro de 1960. Esse livro reúne parte do diário da escritora, que era também responsável por cuidar da casa e dos três filhos.
Mulheres negras como ela são maioria entre quem realiza trabalho informal e de baixa remuneração, desempenhando tarefas reconhecidas como de cuidado ou domésticas. A filósofa Sueli Carneiro discute essa realidade a partir da expressão “matriarcado da miséria”, cunhada pelo poeta negro e nordestino Arnaldo Xavier.
Em “Um teto todo seu”, Virginia Woolf havia defendido, 31 anos antes, que é preciso espaço para que as mulheres consigam escrever, embora seja desafiador conquistá-lo em meio às responsabilidades relacionadas ao lar e aos filhos, sobrepondo muitas vezes duplas e triplas jornadas de trabalho. Esse ideal é confrontado pelos versos de Karola Lobo que, enquanto tentava escrever um poema, foi interrompida nove vezes pela filha.
Embora a tarefa de cuidar de tudo e de todos recaia em 85% das mulheres no país, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – PNADC, de 2019, ao propor que mais de 3 milhões de estudantes escrevessem sobre a invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil, a prova de redação do Enem deste ano levou a reflexão sobre a economia do cuidado a ocupar novos espaços e a ganhar novas dimensões.
Na literatura, o cuidar está presente em escritos de mulheres que, com o exercício de transpor a frustração, o cansaço, a falta de tempo e a conexão visceral com sua cria para o papel deixam de ser invisíveis. Escrever é, nesse sentido, uma forma de romper com estereótipos e propor novas formas de pensar.
A pesquisadora Ana Carolina Schmidt Ferrão explorou como autoras brasileiras contemporâneas, como Aline Bei, Maria Valéria Rezende e Tatiana Salem Levy, cada uma a seu modo, escancaram a visão não romantizada do papel social da mulher ao questionarem “os moldes, as exigências e os mitos que envolvem a maternidade”.
Além disso, a pesquisa de Ferrão atravessou sua vida pessoal enquanto também tentava se encaixar no padrão de mãe cuidadora, mas sentia que o amor do filho, em certos dias, sufocava, escreve.
O Lunetas reuniu poemas e trechos de textos literários de autoras que descrevem o cuidar, o maternar e as tantas questões que cercam o ser mulher. Como diz Dagmar Meyer, em “A politização contemporânea da maternidade: construindo um argumento”, são discursos e forças sociais, poderes e conflitos que se conectam para “produzir, definir, atualizar e re-posicionar maternidades”. Vale anotar no caderno, imprimir, colar no espelho do banheiro para se lembrar todo dia, compartilhar no grupo da família ou guardar para ler depois.
“Enquanto escrevo
este poema
nove vezes
minha filha me chama
e
por nove vezes
eu paro de escrever.
Queria versos cadenciados
ritmados
metáfora sinestesia antítese assonância anáfora aliteração
mas
‘Mamãe, meu dente caiu’
só permite o paradoxo
do poema escrito
às pressas
– nas frestas –
um quase-texto
sobre a frustração.”
“roda, roda, roda
trabalhar e maternar está em voga
gira, gira, gira
cuida da cria aos prantos e pira
[…]
às vezes a peça emperra
e a engrenagem mói a carne
sangra, dói, lateja
estanca, cicatriza, recomeça.”
“tem que cortar a unha tem que dar remédio tem
que marcar médico tem que dar vacina tem que
comprar meia tem que dar fruta tem que escovar
os dentes tem que tem que tem que tem que
até que
brigo grito choro
prometo sei lá o quê
praguejo ter nascido mulher
até quando?
pouco a pouco
me esvazio de mim
enxugo o rosto
apago a luz
até amanhã”
“Eu estou bem, e você, sim, cozinhando, costurando, cuidando do jardim, adubando as plantas do jardim, instalando uma rede no jardim, enfeitando o jardim com pequenas pedras cintilantes. Estou bem, contando histórias para as crianças, brincando com as crianças, brigando com as crianças, pedindo desculpas às crianças, lendo aquele livro que eu nunca li, bebendo chá de jasmim, vinho, a última garrafa de vinho, arrumando a despensa, limpando a casa, colocando a roupa no varal, tirando a roupa do varal, colocando novamente a roupa no varal. Enquanto isso. Enquanto isso.”
“Para uma mãe, não importa o quanto o filho esteja bem, há sempre algo a ser feito.
Um gesto que carregue a ilusão de salvar o filho de todas as dores do mundo.”
“Levantei as 4 horas liguei o radio na radio Bandeirante, para ouvir a Amanhecer do Tango. Fiz café. Os filhos despertaram. Agora eles não levantam louco por comida como levantavam na favela. Preparei as roupas para lavar e passar. Sai para fazer compras. Roupas e sapato para os filhos”. (4 de novembro de 1960)
Depois de vivenciar um aborto espontâneo, a morte da mãe, o nascimento dos dois filhos e o sentimento de abandono no puerpério, Luciane Rodrigues, que pesquisa sobre feminismo e maternidade, se junta a “várias gerações de mulheres esgotadas pelas tarefas domésticas e os cuidados com os filhos” no livro “Maternidade com autoamor: práticas para mães exaustas” (Labrador).
As questões aparecem ao lado da valorização do autocuidado como “um compromisso ético e uma posição política”, em situações em que as mulheres, sobrecarregadas com o cuidar, invariavelmente não têm quem olhe por elas. Para ela, “a pausa e o descanso são necessários para restabelecer forças. […] O bem-estar não é um privilégio, mas um direito.”
Numa sociedade em que as mulheres são instruídas a exercer papéis determinados desde meninas, Rodrigues retoma os questionamentos feitos por Audre Lorde, lá na década de 1980, relembrando o que a ativista escreveu: “Cuidar de mim mesma não é autoindulgência, é uma autopreservação e isso é um ato de guerra política”.
Nesse sentido, a autora resgata como Lorde sempre argumentou que o autocuidado não pode ser um ato individual, como não existem lutas individuais. “Por isso é impossível tratar de autocuidado sem uma luta por direitos”, finaliza.
* Para essa curadoria, visitamos a tese de doutorado intitulada “A putrefação das flores: a maternidade na literatura brasileira contemporânea”, da pesquisadora Ana Carolina Schmidt Ferrão.
Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a diferença entre o número de homens e mulheres que relacionam o trabalho de cuidado a não conseguir um emprego fora de casa é maior do que toda a população da América do Sul. Enquanto 606 milhões de mulheres no mundo inteiro se dedicam às tarefas de cuidar, os homens, conforme a pesquisa, são 41 milhões.