O projeto de lei do marco temporal pode apartar as crianças indígenas do direito ao bem viver e da possibilidade de conhecer e manter suas tradições
Para as famílias indígenas, a aprovação da tese do marco temporal põe em risco o futuro de suas crianças com o apagamento dos direitos sociais e tradicionais. O julgamento do projeto de lei está suspenso até setembro.
Imagine não poder mais sentir-se em casa no lugar em que seus avós e bisavós sempre viveram. Nem brincar, estudar ou aprender a língua de seu povo. Essas são algumas das muitas privações que mais de 270 mil crianças indígenas de todo o país, de acordo com estimativa do Unicef, podem sofrer com a aprovação do marco temporal. “As crianças não terão futuro em nosso território”, afirma Leonice Tupari, mãe de cinco e moradora da Terra Indígena Sete de Setembro, em Cacoal (RO). Ela conta que, se o projeto de lei passar, o seu lar e o de mais de 1.300 parentes Suruí Paiter podem ser diretamente afetados, mesmo com o território demarcado há mais de 30 anos.
No impasse do julgamento do marco temporal, não é apenas o direito à terra que está em jogo, mas o direito à vida. “Habitar nos territórios é fundamental para assegurar os modos de existência e vidas tradicionais. Isso se cruza com o direito à educação diferenciada, como aprender a língua materna de seu povo, e à saúde também diferenciada, que respeite os modos de cuidados tradicionais”, explica Tatiane Klein, pesquisadora do Centro de Estudos Ameríndios da Universidade de São Paulo (USP). Segundo ela, o projeto de lei elimina os direitos básicos da população indígena, sobretudo de suas crianças.
Quando se ataca o direito à terra, se ataca a própria existência dos povos indígenas
No Amazonas, as comunidades da Terra Indígena Alto Rio Negro tiveram suas vivências modificadas após a demarcação do território, em 1998. Originária do povo Tukano, Clarice Gama recorda a infância na comunidade. “Naquela época, nos anos 1980, era mais perigoso porque a terra estava sendo invadida pelos garimpeiros. Como a gente não tinha ideia que os rios estavam poluídos, brincávamos normalmente lá e caminhávamos pela floresta sem medo.”
Gama, que é presidente da Associação das Mulheres Indígenas do Alto Rio Negro (AMARN) e vive em Manaus para concluir o mestrado em História, conta que, após a terra demarcada, os invasores saíram da região, mas deixaram rastros de mercúrio no rio e a floresta devastada. Para os indígenas, a natureza é fonte de sustento e um local sagrado onde se perpetua os saberes e cosmologias ancestrais. “A gente teme que as terras sejam revisadas pelo marco temporal e que isso nos leve a sofrer de novo com a entrada de mineradoras e garimpeiros, porque hoje os rios estão em fase de recuperação.” A presença do garimpo em um dos rios mais importantes da Amazônia afeta 23 etnias que vivem no entorno.
A demora na demarcação definitiva das terras dos Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, gerou conflitos violentos e impactou essa população quando muitas crianças precisaram se afastar dos ambientes tradicionais, de seus parentes, e foram habitar reservas superpopulosas, como explica Klein, que pesquisa a etnia.
Segundo ela, isso tem implicações na garantia dos direitos básicos, como acesso à água potável, saúde e educação adequada. “As crianças estão cada vez mais apartadas de seus territórios”, conta. “Algumas precisaram estudar em outros lugares e passaram por situações de racismo; muitas perderam direitos tradicionais, como a alfabetização na língua materna ou simplesmente poder brincar próximos de seus familiares.”
O documentário “Escute, a terra foi rasgada” é um alerta para a situação dos territórios dos povos indígenas Yanomami, Munduruku e Kayapó invadidos pelo garimpo. A produção, realizada em parceria com a Aliança em Defesa dos Territórios, mostra como a exploração da natureza destrói a vida dos povos originários com a contaminação do solo, dos rios e com a violência, que apaga o modo de vida milenar de quem vive na floresta. Mãe e mulher originária, Alessandra Munduruku, vencedora do prêmio Goldman de Meio Ambiente, diz: “A gente não negocia a vida dos nossos filhos. A gente não negocia a vida do nosso povo.”
O apagamento das tradições acontece também quando uma população indígena é reduzida ao longo do tempo, como foi o caso dos Suruí Paiter. Em 1969, eram 5 mil habitantes nas comunidades de Rondônia, de acordo com o levantamento do Mapa de Conflitos, da Fiocruz, e chegou a 920 no ano de 2002. Nesse tempo, a infância no território foi rapidamente modificada, com a chegada de doenças transmitidas pelos brancos e com as constantes invasões de terra. “Podíamos tomar banho nos rios, comer frutas e andar sossegados na floresta”, conta Tupari. “Hoje, os rios estão contaminados por veneno [mercúrio] e o desmatamento aumenta cada vez mais. Vivemos dias sombrios pela ganância em cima dos nossos territórios.”
Para a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), afrouxar as portas de seus territórios é como inverter a lógica da história ao considerar apenas as ocupações após a Constituição: “[o marco temporal] reposiciona as pessoas e coloca o colonizador como dono da terra e o indígena como invasor”. Na cartilha sobre o julgamento do marco temporal, destaca-se como o projeto de lei pode afetar as gerações e o jeito de viver.
“O marco temporal nega a nossa ciência, nega o canto, a pintura, a culinária. Nega que esses milênios todos os povos indígenas estiveram cuidando da biodiversidade”
Mesmo com todas as articulações dos movimentos indígenas, ambientalistas e pressão internacional para evitar que o marco temporal reflita em políticas que prejudiquem os direitos assegurados a crianças e adolescentes (como o direito à alimentação e segurança alimentar; à saúde; ao patrimônio cultural; ao brincar e à convivência familiar e comunitária; e o direito à identidade), o Projeto de Lei 2.903/2023 foi encaminhado ao Supremo Tribunal Federal para votação. A sessão foi suspensa no dia 7 de junho e permanece com o placar de dois votos contra e um a favor até a retomada do caso, em até 90 dias, prazo que finaliza em setembro.
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O Projeto de Lei 2.903/2023, também chamado de marco temporal, defende que os povos indígenas teriam o direito de ocupar apenas as terras que já habitavam a partir de 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal. O texto também prevê a revisão das terras que foram demarcadas após a mesma data, como é o caso de Tupari e mais de 800 terras indígenas.