Infância e internet: que a criança faça mais upload que download

“Precisamos incentivar as produções das crianças sobre sua gente, sua memória, seu povo e suas brincadeiras”, afirma a cientista social Inês Vitorino

Mayara Penina Publicado em 20.07.2020
Imagem de duas crianças negras estão vendo algum conteúdo em um tablet e sorrindo.
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Resumo

Especialistas discutem a importância de incentivar as crianças a vivenciar o ambiente digital não só como lugar de consumo e compartilhamento de conteúdo, mas principalmente como espaço para expressão, criatividade e participação cidadã.

“As coisas das crianças e para as crianças somente se aprende com as crianças”. Foi com apoio do pensamento do educador Loris Malaguzzi que Raquel Franzim, coordenadora de educação do Instituto Alana, iniciou a terceira edição da série de conversas on-line “Ser criança no mundo digital”, na última sexta-feira (16/7), para discutir a relação entre infância e internet no contexto da participação das crianças no mundo digital. 

Ariane Cor, cofundadora do projeto Minas Programam e Inês Vitorino, coordenadora do Grupo de Pesquisa da Relação Infância, Juventude e Mídia da Universidade Federal do Ceará (UFC), foram as convidadas para debater e trazer experiências sobre o tema. O pontapé para a conversa foi a perspectiva das crianças, elemento fundamental para entender os desafios, as ameaças, as oportunidades e as alegrias que elas têm vivenciado no ambiente digital.

Relação entre infância e internet

Nesse contexto, o Lunetas falou com crianças de todas as regiões do Brasil para saber como elas usam as redes sociais ao expressar opiniões, sentimentos e brincadeiras. Muitas crianças falaram sobre o desejo de ter um canal para mostrar seu talento, como forma de reconhecimento pessoal e até para realizar o sonho de serem “famosas”. Outras entenderam que existe uma possibilidade de atuar de maneira construtiva nas transformações de suas comunidades. É o caso de Ana Clara Libório, 9, de Recife (PE), que criou um canal com seus amigos onde também compartilha causas socioambientais.

A série de vídeos faz parte do especial Um olhar para as infâncias conectadas, que surgiu a partir de conversas com 32 crianças de todos os Estados brasileiros, de diferentes classes sociais, raças e etnias, com e sem deficiência. O material mostra como as crianças pensam e sentem sobre o ambiente digital, quais são as oportunidades e os desafios do espaço virtual e como é possível usar a internet para expressarem suas individualidades e opiniões.

Como as crianças influenciam o mundo digital?

Para responder a esta pergunta, Inês Vitorino afirma que a participação é um direito previsto desde 1989, na Convenção dos Direitos das Crianças da ONU, do qual o Brasil é signatário, assim como no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990. Ambos documentos apontam para a necessidade de escutar a criança sobre todos os processos e ações que lhes concernem. Em 2016, o Marco Legal da Primeira Infância também abordou a importância de se promover a participação das crianças.

A partir das experiências colhidas pelo Lunetas, Inês avalia que as crianças reconhecem a possibilidade de conhecimento que a internet proporciona como potência. “Por outro lado, temos limites, como o de garantir a inclusão deste conjunto plural de infâncias brasileiras na internet”.

É o que mostra  a última pesquisa da TIC Kids Online Brasil: 89% de crianças e adolescentes entre nove e 17 anos usam a internet no país e 53% destes usuários só a acessam pelo celular.

Durante a conversa, Ariane Cor, que é designer, ilustradora e programadora, exemplificou este ponto. “Muitas vezes, a defasagem de acesso tem a ver com a qualidade do tempo que a criança usa a internet”.

 “Não adianta ter acesso à rede, é preciso acessar o conhecimento para criar e produzir”

“Podemos dizer que, do ponto de vista da oportunidade, as crianças podem adquirir conhecimentos de português, história, matemática, uma compreensão da atualidade com um olhar para a ciência, para as cidades, para a saúde. As crianças podem ainda encontrar amigos, conhecer pessoas novas, se comunicar com parentes distantes, além da dimensão do entretenimento: jogar, ver coisas engraçadas, se divertir”, listou.

Para Inês, que é autora do livro Televisão, publicidade e infância, é preciso perceber estas oportunidades ligadas a um conjunto de participações que são importantes, mas, muitas vezes, restritas. “Devemos pensar a criança não apenas como consumidora de conteúdo, mas como produtora e autora”.

Por outro lado, Inês alerta que, ao ocupar este espaço de criação de autoria, a criança também enfrenta riscos quando se expõe e organiza campanhas por uma causa, e cita a participação das meninas Greta Thunberg, Isabela Faber e Mc Soffia. “Quantas crianças já não enfrentaram bullying e discurso de ódio por serem negras, pobres, por serem mulheres, por terem uma orientação sexual que não é aceita de forma hegemônica?”

Quando o assunto são as crianças influencers em busca de  seguidores, a pesquisadora aponta para os riscos de uma pressão que pode ser adoecedora quando envolve compra de likes e curtidas. 

Inês coordena o Grim – Grupo de Pesquisa da Relação Infância, Juventude e Mídia, da Universidade Federal do Ceará. O Grim é vinculado ao Curso de Comunicação Social da UFC que estuda diversos aspectos da relação infância e internet, juventude e comunicação. Seu objetivo é compreender os processos comunicativos contemporâneos, em especial no campo da comunicação midiática, com foco nas crianças e jovens.

Diante deste cenário, a mediação ativa se apresenta como elemento fundamental. As crianças absorvem muito facilmente o mecanismo de funcionamento dos dispositivos, mas não compreendem como isso se dá na dimensão pública e de qual é a rede comercial que está por trás da dinâmica da internet.

É importante olhar para a atividade de influenciadores digitais mirins como parte da estratégia de exploração comercial infantil pelas empresas. Será que as crianças têm de estar submetidas a essa lógica?

“Precisamos incentivar as produções das crianças da sua gente, da sua memória, do seu povo e das suas brincadeiras”, defendeu Inês. “As crianças se divertem fazendo isso, valorizam o que têm e seguem muito mais fortalecidas para andar neste espaço”.

Crianças e o exercício de empatia e respeito

“Depois de garantido o acesso, as crianças precisam entender como as redes funcionam. Se você não sabe quais são as regras e exposição, não tem como saber o quanto isso pode impactar negativamente e nem como atuar positivamente”, responde Ariane.

Para ela, é importante que percebamos como tudo está conectado e que não podemos atuar nos moldes em que o adulto “despeja conhecimento”. “As crianças já estão ligadas nisso, lutando por justiça climática, por redução das desigualdades”, afirmou.

Ariane Cor é cofundadora do Minas Programam, projeto fundado em 2015. A ação surgiu da vontade de desconstruir estereótipos de gênero e de raça que influenciam nossa relação com as áreas de ciências, tecnologia e computação. A organização oferece oportunidades de aprendizado sobre programação para meninas e mulheres que querem aprender a programar, mas não sabem por onde começar.

Como na linha que Ariane trouxe, Inês reitera que “precisamos acreditar nas crianças, acreditar que elas são capazes de encontrar saídas e, para isso, precisam de suporte. Só vamos conseguir transformar este mundo e a internet com a ajuda das crianças. São elas que têm a competência para criar, inovar e redimensionar”.

O que é cidadania digital?
“Cidadania digital é um termo utilizado para destacar o rol de direitos e deveres de quem vive em uma sociedade cada vez mais permeada por tecnologias digitais”, explica Priscila Gonsales, fundadora e diretora do Instituto Educadigital, em entrevista ao Lunetas.

Inês traz a importância de driblar a lógica da criança como agente do mercado para que elas tenham uma dimensão da participação na internet mais coletiva e ligada às suas raízes, à sua comunidade e aos projetos coletivos de uma nação. “Nosso país está precisando, mais do que nunca, de que adultos e crianças se unam para repensar nossa conexão com o que importa: com as pessoas, com a natureza, com um projeto de mundo melhor.”

Ser criança no mundo digital
Como as crianças se relacionam com o mundo digital? Qual o papel das famílias, escolas, empresas de tecnologia e do governo nessa interação? Para discutir esses desafios, o Instituto Alana – com o apoio do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br), da SaferNet e do Lunetas – está realizando uma série de conversas on-line, com especialistas das áreas da educação, psicologia, tecnologia e direito. Confira as datas e inscreva-se aqui.

 Saiba mais sobre as conversas anteriores

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