Escolas na quarentena: quando a distância desafia a educação

A pandemia de Covid-19 colocou o mundo em suspensão, levando famílias e educadores a repensar o processo educativo

Sheila Ana Calgaro Publicado em 30.04.2020
Imagem de um menino escrevendo e segurando um tablet ao mesmo tempo, com ar de ansioso
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Resumo

Com a quarentena imposta pela pandemia de Covid-19, pais, escola e sociedade estão repensando o processo de educação. Muitos enfrentam o desafio de ensino remoto em uma realidade que escancara as desigualdades sociais.

Como as escolas na quarentena enfrentam os desafios do ensino remoto? São quatro horas da manhã quando a pedagoga Raquel Petersen termina de preparar a sua aula on-line. Ela precisa fotografar as páginas da apostila para enviar aos alunos, montar os slides de uma apresentação, decidir qual vai ser o dever de casa e gravar uma aula em vídeo com o próprio celular. Mãe de três filhas, professora em uma escola e orientadora em outra, ambas da rede particular em Macaé (RJ), é durante a madrugada que consegue se concentrar, pois é um dos raros momentos em que não recebe mensagens ou notificações da escola, dos alunos e dos pais.

Às sete horas da manhã já está em pé para cuidar das filhas – Maitê, 7, Lisbela, 5 e Tarsila, 1 – e se preparar para a aula ao vivo. Desde que a quarentena imposta pela pandemia de Covid-19 começou, Raquel está tentando descobrir como se adaptar para o ensino não presencial. É difícil engajar uma turma de 35 alunos on-line, entre 12 e 13 anos, em uma disciplina sobre inteligência emocional, que depende de aplicação de método, discussões e trocas de experiências. Somado a isso, ela precisa usar internet precária da própria casa e enfrentar situações como uma das filhas pedir sua atenção. “É a quebra da quarta parede, eles estão dentro da minha casa e eu da deles”, comenta. Dos 35 alunos esperados por aula, geralmente metade participa.

“Me sinto subutilizada, incompetente e improdutiva, e vejo que os alunos não conseguem se engajar ou se comprometer dessa forma. Antes, eu sabia o que era dar aula em sala, agora preciso virar produtora de conteúdo, youtuber e me reinventar em 15 dias”

Em sua casa no Rio de Janeiro, Thiago checa as 19 mensagens não lidas da escola no celular. Além de trabalhar em casa, ele e a esposa se dividem para administrar a rotina de Dante, 7, Gael, 5 e Maya, 1. No início da quarentena, tiveram uma experiência caótica ao ajudar Dante a participar de uma videoconferência com todos os alunos da sua turma. Não deu certo. Depois, começaram a receber conteúdos diários e tarefas a cumprir. “O resumo do dia é: não estamos conseguindo”, conta Thiago Queiroz, que também é criador do portal Paizinho, Vírgula. Decidiram, então, que a vida precisava ser mais leve, pois já bastavam as notícias lá fora: as crianças teriam mais liberdade para brincar e fariam o que fosse possível, sem pressão. Mas, acima de tudo, tiveram de gerenciar a própria culpa de se sentirem “os piores pais do mundo”, porque não estavam conseguindo dar conta de tudo.

“Esse não é o momento para nos preocuparmos com história, geografia, nomes dos rios e afluentes. Acho importante ter o contato da escola para criar um vínculo, mas precisamos ajudar as crianças a entender como passar por isso”, desabafa.

“É um momento de emergência e a educação precisa ser de emergência, não dá pra usar o mesmo modus operandis”

Raquel, como professora, e Thiago, como pai, refletem como muitas famílias, escolas e educadores estão lidando com o ensino remoto nesta longa quarentena. Em uma semana, as escolas tiveram de rever os planos de ensino, colocar plataformas digitais em funcionamento e redesenhar o processo de ensino e aprendizagem via tecnologia. E os pais precisaram aprender a trabalhar em casa – quando mantiveram o privilégio de não perder seus empregos -, cuidar das tarefas domésticas e lidar com a presença constante dos filhos, sem contar com nenhuma rede de apoio.

Esta é uma das faces enfrentadas pelas escolas da rede privada. Mas, antes, é preciso falar sobre um lado diferente do isolamento domiciliar para a maioria das crianças brasileiras: aquelas que viram, de um dia para a noite, a escola sumir de suas vidas. É a realidade de muitas escolas do ensino público.

O ensino remoto escancara as desigualdades

São 10 horas da manhã na casa de Luciene da Silva Barbosa, que mora na zona sul de São Paulo. Na mesa, um celular, cadernos, lápis e canetas: enquanto ela faz seu curso de pedagogia a distância, tenta ajudar as duas filhas mais novas – Ryanna, 8, e Rayane, 9 – a estudar. Ela prepara algumas lições, principalmente de matemática e português, para as pequenas praticarem. Assim vão até umas duas da tarde.

Ambas estudam em uma escola pública e, desde o dia 16 de março, quando foi decretada a quarentena na cidade, as aulas foram suspensas: até agora, não receberam o material didático prometido e nenhum contato da escola. “Estou assustada com tudo isso, mas tentei dar um jeito de fazer que elas estudem”, conta. “Se elas já tinham dificuldade para aprender, imagina sem nenhuma aula?”

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Arquivo Pessoal

Enquanto Luciene estuda pedagogia em um curso EaD, ela dá lições de português e matemática para as filhas

O governo federal ainda não definiu as diretrizes para o cumprimento do ano letivo das escolas públicas. No dia 4 de abril, foi decretada a Medida Provisória nº 934, que flexibiliza o cumprimento dos 200 dias no calendário letivo, mas não reduz a exigência das 800 horas da carga horária. Entre as opções para cumprir essa obrigatoriedade, estariam a conclusão do ano letivo em 2021, reposição de aulas, ampliação da educação em tempo integral ou a implementação do ensino a distância como política pública, que já era uma pauta defendida antes da pandemia.

Muitas organizações civis, educadores, escolas e outros setores da sociedade não acreditam na viabilidade das opções apresentadas e defendem sua argumentação baseada no artigo 206 da Constituição Federal, que prevê “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”. Em carta assinada pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, aumentar a carga horária das aulas demandaria mais estrutura e professores, e também prejudicaria a qualidade de ensino; instalar o ensino a distância como substituição do ensino presencial, por outro lado, “é inviável tanto em termos operacionais quanto em termos de justiça social”.

Em uma realidade em que 100 milhões de brasileiros vivem em casas sem saneamento básico (segundo dados do Trata Brasil), ou seja, sem as condições mínimas de higiene em meio a uma pandemia, como pensar um ensino remoto que seja democrático e acessível? “A pandemia escancarou todas as desigualdades”, comenta a psicóloga e educadora Ana Cristina Dunker. “Se até para as escolas privadas está difícil, imagina para as públicas, que contam com uma estrutura mais precária e ainda dependem que os professores tenham um bom celular e uma boa internet em casa?”. Alguns Estados estão recorrendo a plataformas on-line ou até a rede local de TV e rádio, propõem planos de ensino domiciliares e enviam apostilas.

“Ensinar pela televisão? Telecurso é acreditar que aprendemos sozinhos, que não precisamos do encontro com o outro para aprender. Vai aumentar a diferença”

Se escolas e educadores precisam de estrutura para produzir conteúdo, as famílias precisam ter condições mínimas de acessá-los. “Eu vi uma reportagem sobre um aplicativo que o Estado estava oferecendo, o CMSP [Centro de Mídias da Educação de São Paulo]. Tentei cadastrar minhas filhas, mas está muito lento e não consegui finalizar até agora”, relata Luciene.

E isso é só a primeira etapa de todo o processo.

Produtividade a custo de quê?

Das filhas de Luciene, a única que ainda acessa algumas horas de aula no ensino público é Rayssa, 14, que está no 9º ano. São, em média, duas horas de aula por dia, além das lições. Mesmo durante a quarentena, muitas escolas públicas e privadas estão tentando manter o currículo escolar, principalmente de alunos a partir do sexto ano, afinal eles “precisam” pensar no vestibular. Até agora, o governo manteve o prazo de 24 de maio para as inscrições no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). “Se no meio da pandemia nossa preocupação é vestibular, já temos uma falha no circuito”, afirma Ana Cristina.

Mas quando se vive em uma sociedade em que a lógica da produtividade começa na escola e se estende ao mercado de trabalho, a educação, segundo Raquel Petersen, passa de processo à mercadoria. “Mesmo alguns pais parecem estar alheios ao que está acontecendo e querem ver seus filhos sufocados de atividades, até para justificar o valor da mensalidade”, revela.

Para Ana Cristina, este momento da pandemia e dos desafios impostos pelo distanciamento social é uma forma de refletir sobre o que queremos construir para o futuro.

“Precisamos zerar tudo, repensar toda a lógica de sociedade e de educação”

A educadora aponta que o primeiro passo para repensar a educação nesse mundo em pandemia – que ainda pode demandar quarentenas intermitentes nos próximos anos – é que os pais continuem no seu papel de pais, e sejam intermediadores do aluno, da escola e do uso da tecnologia que o distanciamento pode demandar. E que as escolas não sejam apenas uma transmissora de conteúdos, mas mantenham seu valor como espaço simbólico de criação de vínculos e promoção de encontros, como um local em que se aprende a viver no coletivo e a exercer a cidadania.

“Não podemos nos preocupar se as crianças vão passar de ano ou não, se irão aprender o conteúdo. O currículo está em suspensão. Precisamos discutir o que acontece lá fora e perceber que as crianças estão aprendendo o que jamais aprenderiam dentro de um plano de ensino escolar”

Caminhos para as escolas na quarentena

Kamila Dantas Gomes dá aula para crianças do primeiro ano, na fase de alfabetização, em uma escola da rede privada de São Paulo. Passando a quarentena na casa de seus pais, na área rural, ela e a filha Laura, 7, tiveram de se adaptar à nova rotina. De lá, ela grava aulas, sugere conteúdos e repertórios que tenham significado e vínculo afetivo para os alunos (músicas, livros, brincadeiras e filmes) e envia propostas de atividades. Além disso, quinzenalmente, há conversas ao vivo para trocarem experiências. Nada é imposto ou obrigatório, mas Kamila ressalta a importância das crianças terem a escola como um ambiente que oferece estabilidade nesse momento de incerteza e das experiências em comum vividas por eles durante a quarentena.

“Nossa ideia é propor experiências e garantir trocas coletivas, mesmo que limitadas pela tela”, afirma. A educadora cita que nestes momentos de isolamento domiciliar, o lar como ambiente educativo também tem de ser legitimado.

“As crianças contam que estão aprendendo a cozinhar e inventando jogos e brincadeiras com os pais. Suas experiências e o que estão sentindo, neste momento, são tão relevantes quanto o conteúdo em si”

Ana Cristina Dunker, que também é diretora de uma escola particular em São Paulo, conta que os alunos criaram até recreios on-line e isso prova o papel fundamental da escola – e da educação – para a troca de experiências e de senso do coletivo.

“Escola não é ensinar um conteúdo atrás do outro. A escola traz o senso de pertencimento, de possibilidades, de encontros”

Por isso, ela recomenda que, nesses tempos de quarentena, um dos caminhos para uma escola possível é abrir espaços para pais e crianças “lidarem com os medos que estão vivendo e partilhar ansiedades e emoções”

Um ponto em comum levantado pelas educadoras entrevistadas é o tabu no uso de tecnologia. “Isso é uma realidade”, explica Ana Cristina, “que futuramente pode trazer diferenças de estrutura neurológica e no desenvolvimento motor, embora não saibamos ainda como”. Ela aponta que, nesses tempos tão incertos, é importante “nos despir desse preconceito” e buscar formas de usar a tecnologia a nosso favor, no coletivo. “As crianças estão se organizando para fazer trabalho em grupo, estudar juntos. Elas já usam a tecnologia para encontrar os amigos.”

A tecnologia também pode contribuir para a aplicação de uma metodologia mais ativa, algo que vinha sendo discutido entre educadores, segundo Raquel Petersen. Ela sugere ser possível usar a tecnologia para ensinar os alunos a buscar respostas, pesquisar de maneira mais assertiva, aprofundar conteúdos e colaborar proativamente com as aulas. “Mas tudo isso com planejamento. Impor isso agora, no meio de uma pandemia, não é a solução”, adverte.

O Instituto Península publicou uma pesquisa com 2,4 mil docentes da Educação Básica em todo o Brasil, para analisar o sentimento de professores em diferentes estágios do coronavírus.

Possibilidades que vêm das crianças

Mais do que tudo, neste momento, é preciso ouvir as crianças e tentar entender como pais, escola e sociedade poderão prepará-las para um futuro de incertezas, em que nada deverá ser como antes.

Thiago Queiroz, por exemplo, percebeu que é importante para seus filhos fazer chamadas em vídeo para conversar com os amigos ou com o professor. “Pelo menos para dizerem que sentem saudades”. Ana Cristina conta que, para trabalhar sua ansiedade e medo, uma aluna escreveu uma carta às suas melhores amigas, a ser entregue só no futuro, sobre como saíram da quarentena. Uma das mães relatou a experiência de as filhas pedirem para passear de carro só para ver como estava a escola e aproveitaram para lhe perguntar como era a escola em que havia estudado na infância.

“Perdemos o vínculo presencial com a escola, mas podemos fortalecer o vínculo entre pais e filhos”, explica Kamila.

“Não há uma resposta, todos estamos buscando caminhos. Esse momento vai deixar marcas e aprendizados. Espero que possamos usá-lo para repensar e educação e a sociedade”

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