Falar com crianças e adolescentes sobre ditadura e democracia é uma forma de compreender o nosso passado
Os 60 anos do Golpe Militar e os recentes desafios políticos ressaltam a necessidade de educar para a democracia e os direitos humanos, promovendo uma cultura de respeito e participação cidadã, para que a ditadura não se repita.
Democracia pode parecer um tema distante das crianças. Mas, falar sobre democracia é falar sobre o direito de elas se expressarem e serem escutadas, de serem respeitadas como são, de conviverem com as diferenças… Assim, é importante que conheçam um momento do nosso país em que a democracia não existiu: a ditadura. Mas como ensinar sobre fatos que elas não viveram ou que lembram de ter ouvido vagamente, e que ainda assim as impactam?
De acordo com o coordenador-geral de Políticas Educacionais em Direitos Humanos do Ministério da Educação (MEC), Erasto Fortes, respeitando as condições de desenvolvimento de cada faixa etária, “é preciso recordar criticamente os períodos da história brasileira em que falhamos na democracia”. A consequência, segundo ele, será a valorização de uma cultura de respeito aos direitos humanos entre as novas gerações.
A historiadora Aureli Alcantara, coordenadora do Programa de Ação Educativa do Memorial da Resistência de São Paulo e articuladora regional da Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos, chama a atenção para a negação histórica de direito à memória que existe no Brasil. Nesse contexto, ela defende que “a criança enquanto sujeito de direito deve ter acesso aos relatos e às memórias que podem compor uma gama de conhecimentos capazes de despertar o desejo por justiça e verdade”. Para ela, entender isso é fundamental para a construção de uma sociedade em que as pessoas praticam ativamente a sua cidadania, cuidando do bem-estar umas das outras.
Desde a posse de João Goulart (Jango), em 1961, as elites políticas e empresariais estavam insatisfeitas com suas propostas de políticas sociais. O auge dessa insatisfação foi em 1963. Nessa ocasião, o governo anunciou uma série de mudanças, incluindo a reforma agrária, a nacionalização de empresas estrangeiras e a ampliação dos direitos trabalhistas.
Então, a partir do marco dos 60 anos do Golpe Militar de 1964 e o início da ditadura militar, lembrado em 31 de março, quando as Forças Armadas brasileiras depuseram Jango, veja 6 conteúdos que podem inspirar a conversa entre professores e alunos sobre o regime autoritário que perdurou por mais de duas décadas no Brasil:
O autor conta para as crianças o que é democracia e como ela acontece na prática, para além do voto. No final, fica o convite para que os pequenos leitores formem grupos de debate ou construam cartazes para um protesto pacífico.
Este livro se passa durante a década de 1970 e mostra como famílias foram desfeitas pela ditadura, como na história de João Massena Melo, que um dia saiu para uma reunião e nunca mais voltou para casa.
Neste livro, cartas e um diário dividem a trama com as meninas Julia e Olivia, que buscam desvendar os segredos que existem entre as suas histórias e a de Zulmira, desaparecida na ditadura.
Por meio desta obra é possível conhecer a história do jornalista Vladimir Herzog, morto na ditadura. Ela é contada a partir dos diálogos entre Mário e Felipe, pai e filho, enquanto o menino precisa elaborar um trabalho sobre o tema para a escola.
A partir do olhar de Clarice, uma menina que cresceu durante a ditadura, fatos desse período são apresentados em formato de história em quadrinhos para o público jovem.
Já a série documental “Histórias de fantasmas verdadeiros para crianças“, da diretora Mariana Lacerda, traz o conteúdo para crianças no estilo de fábula. Nela, adultos contam sobre o que testemunharam no período da ditadura militar brasileira e na América Latina durante suas infâncias.
Flávia Pellegrino, coordenadora-executiva do Pacto pela Democracia, afirma que “a escola pode ser um modelo de participação social ao incentivar debates e diálogos, eleição de representantes estudantis, assembleias escolares, conselhos de tomada de decisões e outras formas de envolvimento dos estudantes, funcionários, professores e gestores”.
Já Fortes defende que a educação em direitos humanos na escola seja incorporada ao planejamento das aulas, à dinâmica de interação entre os que fazem parte da escola, ao jeito de ensinar de professoras e professores. Desse modo, a própria prática da educação pode ser um exemplo de como é possível se relacionar sem preconceito ou discriminação.
O coordenador-geral de Políticas Educacionais em Direitos Humanos do MEC destaca que a escola, especialmente a pública, tem um papel importante para promover valores que estão na base de uma democracia, como a igualdade, pois incentiva a convivência entre crianças diferentes. Assim a educação, pela perspectiva da prática social, como ensina Paulo Freire, admite criar novas mentalidades e direcionar uma mudança cultural.
Educar para democracia exige, sobretudo, ter o compromisso de educar em direitos humanos, afirma Fortes. Nesse sentido, ele lembra que o Brasil escolheu, em 1988, por meio da Constituição, se organizar como um Estado democrático de direito, colocando os direitos humanos no centro e exigindo que fossem assegurados. “Sem o respeito aos direitos humanos não existe democracia e democracia é a garantia desses direitos. Assim, a educação em direitos humanos é indispensável como instrumento de educação para a democracia. Isso porque atua como componente pedagógico que influencia na construção e na consolidação da própria democracia.”
Neste processo, a escola tem papel estratégico, como afirma Pellegrino, pois interage diretamente com crianças e adolescentes, que estão construindo princípios básicos de sua atuação cidadã.
“A escola desempenha um papel essencial na formação de cidadãs e cidadãos informados, engajados e participativos, preparando as gerações futuras para contribuir de forma significativa para o fortalecimento e a sustentação da democracia”
Em um momento de recentes ataques à democracia e sob o efeito de movimentos como o Escola sem Partido, pode dar medo abordar esse assunto em sala de aula. Mas, diante disso, professores e a escola podem encontrar respaldo na Base Nacional Comum Curricular (BNCC). O documento apresenta os conhecimentos fundamentais que os estudantes devem aprender em cada ano da educação básica.
“A BNCC respalda a escola na abordagem da temática ditadura x democracia”, afirma Alcantara.
Entre as habilidades propostas pela BNCC estão:
Para a coordenadora do programa do Memorial da Resistência de São Paulo, as histórias que estão sendo contadas sobre o nosso passado têm sofrido distorções. Isso, além de gerar confusão, impede pensar sobre os acontecimentos por diferentes pontos de vista, com base na verdade e no que realmente aconteceu. De acordo com ela, é assim que as violências e as violações aos direitos humanos se tornam aceitáveis e as injustiças se repetem.
Por isso, Pellegrino defende que a democracia é tarefa cotidiana de todas as pessoas. Para ela, o diálogo constante sobre a desinformação, inclusive com as crianças, é um caminho para entender alguns fatos históricos como crimes contra a democracia. “Isso é um compromisso civilizatório”, diz.
Entender a ditadura pelos afetos
Quando o assunto é a superação das consequências da ditadura, as palavras memória, verdade e justiça caminham juntas. Em entrevista ao Lunetas, a professora Silvane Silva afirma que “só o retorno à vida comunitária poderá nos salvar da barbárie e do ódio”. Nesse sentido, o caminho é por meio de uma educação amorosa, pautada no ensino e na prática do que é justo e verdadeiro. Vale também relembrar fatos históricos a partir dessa perspectiva.