Um a cada 4 pais não consegue vacinar crianças em postos de saúde

Estudo brasileiro aponta desigualdade racial no acesso: o percentual de pais que não conseguiram vacinar os filhos chegou a 17% entre brancos e ultrapassou 29%

Fernanda Bassette Agencia Einstein Publicado em 02.09.2024
Imagem de capa de uma matéria sobre as dificuldades em vacinar postos de saúde, mostra uma criança pequena negra, de roupas coloridas sendo vacinada por uma enfermeira
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Resumo

Falta de imunizantes nos postos de saúde, horário de funcionamento conflitantes com o expediente de trabalho dos pais e desigualdade racial no acesso são alguns fatores que prejudicam o avanço da vacinação em crianças no país.

Apesar de sua longa história de sucesso no programa nacional de vacinação, desde 2016 o Brasil enfrenta queda nos índices de cobertura vacinal de crianças. O quadro se agravou após a pandemia de covid-19, especialmente em decorrência da desinformação sobre a segurança e eficácia das vacinas. Um novo estudo brasileiro buscou entender as razões por trás da hesitação vacinal (além da desinformação) e descobriu que quase um em cada quatro pais (23%) não conseguiram vacinar seus filhos, apesar de terem ido a um posto vacinação – e isso tem impacto direto na decisão de retornar ou não.

Além da dificuldade em efetivar a imunização, o estudo também aponta que existe desigualdade racial no acesso: o percentual de pais que não conseguiram vacinar os filhos chegou a 17% entre brancos e ultrapassou 29% entre pretos. O estudo aponta também que 7% dos responsáveis enfrentaram dificuldades para levar os pequenos ao posto de saúde por motivos que vão da falta de tempo à dificuldade de transporte – essa probabilidade foi 75% maior entre população preta comparada à branca.

O levantamento foi conduzido por pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, e os resultados foram publicados no último dia 23 de agosto na revista científica Epidemiologia e Serviços de Saúde.

Mais de 37 mil entrevistas

Para conduzir a pesquisa, os estudiosos brasileiros partiram de informações do Inquérito Nacional de Cobertura Vacinal de mais de 37,8 mil nascidos vivos em 2017 e 2018. Depois, a equipe foi a campo, nas 26 capitais do Brasil, no Distrito Federal e em 12 cidades com mais de 100 mil habitantes, para visitar todas essas famílias.

Nas residências, os pesquisadores fizeram entrevistas com as mães ou responsáveis pelas crianças e fotografaram as cadernetas de vacinação. “As informações foram digitadas e incluídas no nosso banco de dados por profissionais especializados no programa nacional de vacinação. Conseguimos uma boa qualidade dos dados porque não usamos informações autorreferidas, que poderiam ter um viés de memória”, explica o epidemiologista Antonio Fernando Boing, primeiro autor do estudo e professor da UFSC.

Ao cruzar os dados, os pesquisadores descobriram, por exemplo, que 86% das crianças com até 2 anos de idade não foram vacinadas nas idades previstas no calendário nacional. Isso as deixa em uma situação de maior risco e vulnerabilidade, por ficarem expostas a agentes causadores de doenças que podem ser controladas ou evitadas com vacinação.

Nas respostas para explicar o motivo desse atraso, as famílias citaram a distância do posto de saúde em relação à casa ou ao trabalho, falta de tempo para levar a criança até a unidade, horário inadequado de funcionamento, dificuldades de transporte para ir ao posto, não liberação do empregador e não dispor de caderneta de vacinação.

Quando foram questionadas sobre o motivo de não terem conseguido vacinar os filhos, mesmo tendo ido até o posto de vacinação, responderam que entre razões estavam: não havia imunizante disponível, a sala de vacinação estava fechada (algumas funcionam somente em dias específicos), não havia profissional de saúde para aplicar o imunizante, acabara a senha de atendimento para aquele dia ou não estavam com o documento de vacinação no momento.

Cor e raça

A partir desses resultados, os pesquisadores decidiram fazer um recorte por cor e raça para ver se havia alguma influência nesse sentido também. E descobriram que as crianças de mães pretas e pardas têm maior probabilidade de enfrentar essas dificuldades e de estarem com o esquema vacinal incompleto nos primeiros cinco e 12 meses de vida.

De acordo com Boing, a associação da cor/raça para esse desfecho se manteve mesmo quando os pesquisadores fizeram ajustes e tiraram o fator socioeconômico das análises. “Mesmo considerando outros fatores, como a escolaridade da mãe, ainda assim a associação de cor/raça se manteve maior para as dificuldades entre mães pretas”, relata. “Além das raízes sociais, econômicas e raciais que dificultam o acesso, observamos também barreiras no serviço. Vimos que as falhas do sistema de saúde impactam mais severamente a população preta, que é a mais vulnerável.”

Hesitação vacinal

Na visão do professor da UFSC, os resultados são “estarrecedores”, pois o estudo mostra que essas famílias venceram barreiras anteriores e foram até o posto de vacinação, mas encontraram novos obstáculos. “Em muitos casos, ir até o posto de saúde implicou um esforço muito grande, de uma negociação das mães com múltiplas partes, e não se alcançou o objetivo. Isso envolve um esforço financeiro, de conseguir sair do trabalho, de viabilizar meios para ir até a unidade. Não necessariamente essa mãe vai conseguir retornar ao posto de saúde. E, se retornar, pode não ser no tempo oportuno, colocando a criança em risco. É uma perda de oportunidade de vacinação”, frisa o pesquisador.

O infectologista pediátrico Alfredo Gilio, coordenador da Clínica de Imunizações do Hospital Israelita Albert Einstein e professor doutor da Faculdade de Medicina da USP, também considera o resultado preocupante, especialmente devido à perda de oportunidade vacinal e ao risco de essa pessoa não voltar para atualizar a caderneta da criança.

“Vinte e três por cento desses pais saíram de suas casas e não conseguiram vacinar seus filhos. Isso pode se tornar um dificultador num momento em que estamos tentando recuperar as taxas de cobertura vacinal. Apesar dos esforços do Ministério da Saúde, ainda estamos abaixo da cobertura ideal para todas as vacinas. Qualquer coisa que atrapalhe é péssimo. Cada vez que deixam de vacinar, essas pessoas podem não voltar”, avalia Gilio.

Na avaliação do infectologista, o estudo ajuda a entender o fenômeno da queda da vacinação no Brasil. Para ele, as dificuldades dos filhos de mães pretas envolvem possivelmente a questão socioeconômica da família, o local de moradia (distante do posto de saúde, por exemplo) e o horário de trabalho. “Certamente essas crianças moram mais longe e enfrentam mais dificuldades. Precisamos tomar atitudes em cima disso”, defende.

Soluções para melhorar a cobertura

Na avaliação de Boing, por conta da Covid-19, os debates se concentraram quase exclusivamente na questão de combater informações falsas. “Isso é importante, e ações fortes para enfrentá-las precisam estar na agenda sanitária. Mas nosso estudo comprova que há outros fatores econômicos e de organização do serviço de saúde totalmente evitáveis e inaceitáveis que contribuem para esse cenário catastrófico da cobertura vacinal no Brasil”, analisa.

Para ele, modificar esse contexto exige melhorar as condições de vida da população, qualificar os profissionais do Sistema Único de Saúde (SUS), em especial a atenção primária, e investir em ações de monitoramento e enfrentamento de desigualdades em saúde.

Segundo Mônica Levi, presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), esse resultado é preocupante e não deveria ocorrer nesse percentual tão alto. “Não se pode deixar de vacinar alguém que foi até o posto. É preciso rever os problemas estruturais do SUS, porque a perda de oportunidade é algo que não pode acontecer dentro da vacinação, ainda mais num momento de baixa cobertura vacinal”, frisa.

Para o Brasil voltar ao panorama de altas coberturas vacinais, diz Levi, é preciso construir uma demanda sustentável por vacinas e manter a confiança não só nos imunizantes, mas também no prescritor, no vacinador e no sistema de saúde. “Precisamos manter toda a estrutura que envolve a vacinação funcionando corretamente para combater a hesitação”, completa a presidente da SBIm.

Estratégias do Ministério

O Ministério da Saúde informou, em nota, que desde 2023 tem atuado com estados e municípios na implementação de uma estratégia de microplanejamento para recuperar as altas coberturas vacinais. “Dentro dessa estratégia, destacam-se ações como a ampliação dos horários de funcionamento dos postos de vacinação, campanhas locais para conscientizar a população sobre a importância e a segurança das vacinas, e a integração com o setor de educação para promover a vacinação em ambientes escolares. O combate às fake news, o monitoramento de eventos relacionados à vacinação e a melhoria dos Sistemas de Informação também são ações fundamentais”, diz a nota.

Ainda segundo o Ministério da Saúde, a realização de oficinas em todos os estados, seguida por monitoramento e avaliação, contribuiu para o aumento das coberturas vacinais infantis de rotina. “Comparando 2022 com 2023, apenas três das 16 vacinas do Calendário Nacional da Criança não apresentaram aumento de cobertura”.

Sobre o problema de possível falta de vacinas nos postos, o Ministério da Saúde informou que “devido à capacidade limitada da rede de frio dos postos, pode haver desabastecimento temporário de algumas vacinas, sendo recomendada a busca em outras unidades ou o retorno no dia seguinte.”

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