“A maravilha da vida é perceber que você é uma criança e que brinca até os 100 e mais!”, conta Lydia Hortélio. No mês das crianças, ela, que é a responsável por consolidar a Cultura da Criança no Brasil, completou 93 anos, dos quais pelo menos 60 são dedicados a “aprender menino”. Nesse tempo, a pianista, etnomusicóloga e pesquisadora vem atuando para que a Música Tradicional da Infância não esteja apenas na memória dos mais velhos, mas retorne ao corpo e às brincadeiras de crianças pequenas e grandes, como se refere aos adultos.
Nos últimos três meses, Lunetas teve uma série de encontros com Lydia, na Casa das 5 Pedrinhas, como ela chama seu lugar de viver e sonhar, no bairro de Brotas, em Salvador. Ali, guarda uma coleção de mais de 3 mil brinquedos, 100 álbuns de fotografia e mais de 600 partituras, acervo de suas pesquisas em Serrinha, no sertão da Bahia. Se já não pode mais pular corda, Lydia brinca levando a BRINCAR. “Quem sabe mesmo é menino, e eu estou sempre atenta para facilitar seu movimento.”
Nesta entrevista, ela honra a pequena Lydia que ainda é. Entre músicas e brincadeiras, lembra de momentos marcantes, como o encontro com Paulo Freire, e reflete sobre o brincar, a cultura brasileira e desafios atuais, entre eles, a adultização e a relação das crianças com telas. Lydia também fala sobre a inauguração, em outubro, da Casa de Cultura da Criança do Bonfim, espaço dedicado às infâncias dentro do Centro de Interpretação da Mata Atlântica, um parque urbano que promove o que ela defende como revolução: criança com criança na natureza.
Leia a entrevista
Lunetas – O que representa a inauguração da Casa da Criança depois de pelo menos 60 anos de experiência e pesquisa?
Lydia Hortélio – Essa Casa já esteve para acontecer tantas vezes que ela existir agora naturalmente muito me alegra. Não é um museu, mas um lugar onde as Crianças estejam felizes, porque a gente precisa que as Crianças governem o mundo. Nós vivemos uma hora extrema em que os meninos não brincam mais, não sabem o que é areia, o que é água, o que é barro, ou brincar de picula, correr desabalado, sair a toda carreira. Nesta Casa da Criança, a ideia primordial é brincar do que eles pedirem, porque isso é uma coisa que está no corpo deles. Não sei do que será, vou me deixar surpreender. Estou pronta para receber esses meninos e até as crianças grandes, para saírem do engessamento que vivem. Depois, para ajudar que cada um consiga um diálogo com seu filho ou com seu neto, porque a queixa é grande.
“Vivemos uma hora extrema em que os meninos não brincam mais.”
Na Casa da Criança, alguns dos seus brinquedos viraram instalações para meninas e meninos explorarem. Lá também estão ampliações de algumas fotografias de crianças brincando feitas pela senhora. Como imagina o diálogo entre as infâncias de hoje e as que aparecem nessas imagens?
LH – Pelo brinquedo, não tem outro jeito! Levei uma parte da minha coleção apenas, porque são mais de três mil! Escolhi brinquedos de chão e de terra e providenciamos réplicas também. Porque menino não quer ver brinquedo, menino quer BRINCAR! Agora, os pais e as professoras querem e é bom, porque ativa neles memórias da infância, que todo mundo está esquecido.
Quando a Casa da Criança estava sendo pensada, Marcelo Peroni, consultor da rede Urban95 e curador da exposição permanente, promoveu o seu encontro com o educador italiano Francesco Tonucci, que fundou a Cidade das Crianças, projeto realizado em mais de 15 países. Assim como a senhora, Tonucci defende que as crianças estejam no centro das decisões, porque uma cidade boa para elas é boa para todo mundo. Como foi essa conversa?
LH – Os dois vieram aqui em casa em um fim de tarde, para um café com bolo. Marcelo fez um trabalho muito bonito, transformando Jundiaí (SP) em uma Cidade da Criança, que é o que Tonucci faz na Itália. Mas foi engraçado, porque ele [Tonucci] quase não falou nada. Na hora de se despedir, eu comentei: “O senhor vai embora sem que a gente quase escute a sua voz”. Ele sorriu e respondeu: “Mas tudo o que eu ia dizer, a senhora já disse!”. Então foi bom, porque estamos pensando e desejando a mesma coisa, ele vive para isso e eu também. Nesse dia, fiquei lembrando de tia Alice, que viveu 103 anos. Ah, se me fosse dado isso, eu iria ficar muito contente e agradecida! Eu gosto de viver, muito, e quero ver acontecer tudo isso com os meninos.
Uma pausa para brincar
Como se brinca ABC?
“Logo nos primeiros dias que cheguei em Campina Grande, vi umas meninas brincando na rua e fiquei ao lado, porque não conhecia aquele brinquedo. Então, brinquei com elas até aprender”, conta Lydia. “Não é difícil, mas a gente só entende quando brinca.”
Nesse brinquedo de mão, duas pessoas ficam de frente uma para a outra e cantam as letras do alfabeto enquanto batem palmas.
Na letra A, você levanta uma perna como se fosse dar um passo no ar, dobra um pouquinho o joelho e bate palma embaixo dessa perna.
Depois, cada uma deve bater uma palma normal e três palmas cruzadas: mão direita com mão direita e mão esquerda com mão esquerda.
Façam isso para as letras B, C e D.
Na letra E, batam palma do mesmo jeito embaixo da outra perna.
Continuem assim até quase o fim do alfabeto.
No X, façam um giro de corpo inteiro com as mãos cruzadas.
Quando voltarem, no Z, batam as palmas desse jeito (que é o formato da letra) uma nas mãos da outra.
Você sabe o que é macaquinho? Já brincou?
Também foi pela observação que Lydia aprendeu o macaquinho. “Na Alemanha, eu levava minha filha Elisinha para o Jardim da Infância e, quando voltava, via muitos desenhos no chão, umas formas de macaquinho que eu não conhecia, não sabia como brincar. Um dia, sentei no passeio e fiquei esperando para ver quem tinha feito aquilo. Aí, começaram a aparecer umas meninas e eu descobri que elas brincavam um macaquinho diferente”, conta.
Mas macaquinho é amarelinha? Ela explica. “Amarelinha é um nome herdado do marreille, em francês, uma palavra que não se refere à cor, mas à pedrinha do jogo. No Brasil, ninguém percebeu isso, achou que marreille era amarelo e começaram a chamar de amarelinha. Agora, no sertão, é macaquinho. E foram essas outras formas de macaquinho que eu descobri vendo as crianças brincando na Alemanha.
(Para o álbum na página onde uma menina está em frente a um grande desenho de giz no chão). Esse daqui começou pequenininho e ela foi aumentando, aumentando. Você pensa que ela fez um perímetro e depois dividiu, mas não. Ela foi sentindo com o movimento do corpo. Fazia uma casinha, depois a outra e foi numerando: um, dois, três… Enquanto fazia, imaginava e sentia se o pé dela cabia naquele espaço. Eu acho isso uma coisa extraordinária, os meninos inventam seus brinquedos. E tem mais: eles são exigentes ao BRINCAR! Botam para fora quem está roubando, mas o outro não vai embora, fica ali perto, daqui a pouco o “chefe” da brincadeira diz “Pode entrar.” E começam tudo de novo!”
A Cultura da Criança e a Música Tradicional da Infância se consolidaram no Brasil com base em sua pesquisa. Que caminhos acredita que esses saberes abrem para novas gerações?
LH – Eu acho, antes de tudo, que a Cultura da Criança alimenta e torna feliz cada um, porque a maravilha da vida é perceber que você é uma Criança, mesmo que tenha 93 anos, e que você brinca até os 100 e mais! Tomara que eu viva até lá! É o comportamento humano por excelência. O filósofo alemão Friedrich Von Schiller nos disse: “O Homem só é inteiro quando brinca e é somente quando brinca que ele existe na completa acepção da palavra Homem”. Para mim, isso é a cultura: todo ser humano é uma Criança. A questão é que, com as descobertas da ciência, o homem transferiu a cultura ocidental para a cabeça e esqueceu o corpo. Mas eles já estão voltando desse caminho, já dobraram a curva, sabia?
E estão voltando para onde?
LH – Para saber que a criança espera no corpo! Se você for olhar menino brincando, vai ver que ele se movimenta. Outro dia, vi num filmezinho de dois minutos feito por uns amigos de Minas Gerais, um grupo de meninos por volta de sete anos e o movimento entre eles, algo imperceptível a quem não está avisado. A gente sente que a Vida segue ali, no movimento de cada menino. Cada vez que ele dobra um bracinho, que suspende uma perna, ele avança em sua busca, em seu crescimento. É lindo ver essa fonte, o ser-humano-ainda-novo.
Imagine: quantos gritaram “uéee” e saíram da barriga da mãe? Deus não desiste do ser humano, porque continua mandando menino ao mundo. Não manda gente adulta, manda MENINO, novo em folha, para começar tudo outra vez, para ser feliz, para dar a mão ao outro e “Abra a roda tin do lê lê” (cantarola). Depois, o menino nem sabe o nome do amigo com quem brincou, mas fica felicíssimo de estar com aqueles amigos. Quando acaba, esquece, encontra outros e segue… BRINCANDO! O ensinamento maior está com os meninos. São os que mais sabem, mais falam e mais fazem. Se a gente prestar atenção, não se perde.
“Deus não desiste do ser humano, porque continua mandando menino ao mundo.”
Música Tradicional da Infância
Lydia Hortélio assina a pesquisa e a direção de três CDs publicados pela Editora Zerinho ou Um/Selo 5 Pedrinhas. Os discos compõem um amplo acervo de brinquedos cantados e ritmados em Serrinha, cidade de sua infância, entre os séculos 19 e 21.
- “Ô bela Alice” (2004) – Reúne músicas que as crianças cantavam no Sertão da Bahia há mais de cem anos. Os brinquedos fazem parte do repertório da Menina Alice, tia de Lydia, que aos 98 anos compartilhou suas lembranças para essa pesquisa. Com arranjos do maestro Antônio Madureira, o trabalho recebeu o Troféu Caymmi em 2009, um prêmio que não previa a categoria de Música da Infância.
- “Céu, terra, 51! Cada vez sai um…” (2016) – A pesquisa de “Ô Bela Alice” é atualizada com outros brinquedos de Serrinha, cantados e ritmados por crianças de três escolas da cidade. As 40 faixas e os desenhos da capa e encarte do disco foram resultado dos Encontros para Brincar, oficinas promovidas por Lydia. Neste disco, ela apresenta uma reflexão sobre os espaços escolares. “É preciso lutar pelo Jardim de nossas Crianças, e oferecer a elas o espaço a que têm direito: a Natureza, a Casa da Criança”.
- “Abre a roda tin dô lê lê” (2020) – Um passeio por várias estações da Música da Infância, que parte das rodas de verso e passa por brinquedos das crianças maiores, Contos Populares, brinquedos e brincos das crianças pequenas até chegar às cantigas de ninar. As faixas são interpretadas por crianças da escola Casa Redonda (SP) e por integrantes da Zabumbau – Orquestra Jovem Brasileira de Percussão (SP). No encarte, Lydia escreveu: “A Música Tradicional da Infância é o patrimônio maior, aquilo que de mais sensível e fundamental possui a cultura de um povo”.
Como ter essa atenção para conseguir perceber verdadeiramente as crianças?
LH – É só olhar e logo vai se lembrar, vai saber que existe a cultura do ser-humano-ainda-novo. Nossa sociedade ainda não entendeu menino e vive frustrada, porque a Criança em cada um está sufocada. A pessoa passou por não sei quantos estudos e esse estudo prova o quê? A comparação de um com o outro, que nota deve dar ou não dar. A essa altura dos acontecimentos, acho que só aprende menino aquele que não quer mandar nele.
Por isso que a escola é fundamentalmente errada do jeito que ela é. A professora não desconfia por que o menino não cala a boca. Se você observar os meninos brincando, verá que nenhum diz uma palavra. Mas na escola, fala pelos cotovelos. E por que tanto fala? Porque está envolvido com uma coisa que não lhe interessa, está procurando fugir daquele suplício. “Senta menino!”. Como é que manda menino sentar, se menino é movimento? A gente tem que levar a BRINCAR.
“A Criança em cada um está sufocada.”
Por falar em escola, em 1969, a senhora e Paulo Freire chegaram a conversar sobre um projeto de educação para o Brasil. Como foi esse encontro?
LH – Eu estava na Universidade de Berna, na Suíça, e entrei em parafuso, porque percebi que estava estudando a história e a cultura da Europa, mas eu queria saber o Brasil! Ouvi dizer que Paulo Freire estava em Genebra, exilado por conta do golpe de 1964, e quis falar com ele. Liguei para o Conselho Ecumênico das Igrejas, ousada como eu era, e uma pessoa atendeu, muito gentil, já me passando Paulo Freire ao telefone. Ele me disse: “Menina, venha cá pra gente conversar”, assim, bem nordestino. No dia seguinte, peguei um trem e, em três horas, estava em Genebra. Eu levava o bocapiu com as fitas que gravei na roça e as gaitas que tinha recolhido. Ele olhou aquilo e falou: “Que maravilha!”. Isso foi no dia em que os estudantes brasileiros foram libertados após o sequestro do embaixador norte-americano [Charles Elbrick]. O apartamento de Paulo Freire começou a encher de gente, os brasileiros exilados em Genebra queriam comemorar, eu olhava para aquilo tudo e não sabia de nada, tão sozinha estava em Berna, nos meus estudos de etnomusicologia. Eles estavam ali conversando, depois foram indo embora e só eu fiquei. Então falei: “Professor, também me despeço, já é tarde”. Mas ele disse: “Não vá, não, a gente nem conversou!”. As filhas dele juntaram as camas e eu fiquei. De manhã, levantei cedo, tomamos café e fomos conversar. Ele chorava muito e então me disse: “Não sabia que o povo cantava tanto. Fiz meu método só com a palavra, está faltando a música.” E completou: “Se algum dia eu voltar ao Brasil…”, e ele chorava, “… vou fazer o método com as cantigas. E aí preciso de sua ajuda”.
Qual foi a sua reação?
LH – Eu respondi: “Pois não, professor, o senhor vai voltar”. Mais tarde, a mulher dele, Dona Elza, veio informar que iriam para um encontro com uma família e que me deixariam na estação de trem. Viemos o caminho todo lembrando dos brinquedos da infância da gente. Ele dizia os dele e eu os meus. Muitos que ele brincou eu tinha brincado também. A gente vinha cantando Chicotinho queimado/ Quer de noite/ Quer de dia, ele aí interrompeu: “Você sabe o que está dizendo?”. Eu repeti e ele explicou: “Menino não tem tempo de dizer ‘quer seja de noite, quer seja de dia’. Eles engolem a palavra e dão esse ritmo tão gostoso”.
Chegamos na estação, o carro parou e aí me deu um branco! Eu pensei: “Meu Deus, logo agora que encontrei o mestre, eu tenho que sair?”. Olhei para ele e perguntei: “Professor, o que eu faço?”. E ele: “Não sei”. Falou que não tinha conselho para me dar. “Só sei que você tem que devolver ao Brasil tudo o que aprendeu com o Brasil.” Disse isso e foi embora. Nunca mais eu vi Paulo Freire.
A senhora sempre cita Fernando Pessoa ao falar da Criança Eterna e da brincadeira das 5 pedrinhas, que virou sua marca. A partir dessas duas referências, como acredita que a educação poderia ser repensada para promover o brincar, o encantamento e o contato com a natureza?
LH – No “Poema do Menino Jesus”, Fernando Pessoa escreveu: Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas/ No degrau da porta de casa,/ Graves como convém a um deus e a um poeta,/ E como se cada pedra/ Fosse todo um universo./ E fosse por isso um grande perigo para ela/ Deixá-la cair no chão. A escola é um desastre total, porque traz uma educação pela cabeça e o ser humano é de corpo inteiro. Nas 5 pedrinhas, a gente vê a inteireza da criança. Na escola, as mãos dos meninos usam esferográficas para marcar uma cruz ao lado de uma frase. E não adianta impor o brinquedo, sabe? Eu só acredito em quem brinca porque precisa brincar.
Você tem que se conservar criança e é difícil, porque tudo é contra isso. Vejo tanta gente que diz quando o menino chega com uma brincadeira: “Você já está grande para isso” ou “isso é coisa de criança”, como se fosse um demérito. As 5 pedrinhas foi o brinquedo que eu mais brinquei, o que eu mais gostava. Ainda hoje tenho aqui, eu faço esses saquinhos e dou a todos que me visitam. (Levanta, vai aos armários da sala e retorna com muitas pedrinhas).
“Eu só acredito em quem brinca porque precisa brincar.”
Além da falta de natureza, muitas famílias enfrentam o desafio das telas, que é um problema para crianças e adultos. O que fazer?
LH – Vivemos absurdos. Estamos todos, nós e os meninos, nessa falangeta do polegar, movendo os celulares do mundo. É um desastre para a humanidade uma coisa dessa, eu fico inquieta. Mas sabemos o caminho: é menino com menino na natureza. O playground não é lugar para menino, não desafia em nada, não tem natureza nem chão de verdade. É isto o que a criança quer: desafio, para que ela venha à frente. Eu trabalhei na Prefeitura de Salvador por muitos anos e observei crianças da periferia da cidade brincando. Com elas, vi coisas que eu desconhecia, vi os meninos inventando brinquedo!
Certa vez, a gente estava se preparando para fazer um presépio no Natal, e era uma coisa linda, os meninos cantando esse presépio que eu pesquisei na zona rural de Serrinha. (Começa a cantar): Hoje é noite de Natal/ Ninguém dorme em colchão/ É nascido Deus menino/ Entre as palhas e o chão. Eu incentivei que cada um fizesse um presépio para levar para casa, para festejar o Natal. Eles faziam o menino Jesus de barro, enfeitavam com flores ou com búzios. Nesse dia, estavam brincando e eu achando que era guerra de mamona. De repente, ganhei uma na minha cabeça, porque passei na frente. Aquilo me doeu e eu disse: “Deixa eu ver, que mamona é essa aqui?”. Quando reparei, eram as bolinhas de barro já secas das cabecinhas do Menino Jesus! (Dá uma boa risada) Já pensou? Do presépio deles! Em verdade, passei tempos muito felizes aprendendo menino.
“É isto o que a criança quer: desafio, para que ela venha à frente.”
Recentemente, o debate sobre adultização e internet no Brasil resultou na aprovação de uma nova lei, o ECA Digital. Para a senhora, o que as crianças perdem com a antecipação da vida adulta?
LH – Isso é um problema grave e tem a ver com o adulto não entender que também é uma Criança, pode até estar com cabelo branco como eu. Eu fico com pena deles, todos com a cara meio triste, nem se dão conta. Acho que cada adulto deveria investir na Criança que é, que está guardadinha dentro dele. Você brincou quando era menina? Então, lembre!
Primeira coisa, e eu só ensino isso: compre um caderninho no supermercado e escreva os brinquedos da sua infância. Comece com um índice, depois vá descrevendo. Se não lembrar, ligue para os amigos de infância, pergunte à sua mãe. À medida que você começa a trazer a menina que você é, vai se lembrando e ela vai se desdobrando cada vez mais dentro de você. Isso vai dar uma alegria, porque vai entronizar cada um em seu movimento verdadeiro, naquilo que a pessoa é. E tem uma hora que você sorri e está feliz. O que se quer mais do que isso?
Em entrevistas e palestras, a senhora reafirma a posição de manter a esperança. De que maneira podemos incentivar esse sentimento nas crianças, apesar de contextos tão desafiadores no mundo, como desigualdades, guerras e tantas outras violências?
LH – É claro que tenho esperança! Em vez de escutar o que os outros dizem, mesmo os mais queridos, escute para dentro! Escute você! Certa vez, saí para passear com minha neta, quando era bem pequena, para catar sementes de mulungu na rua atrás de casa e depois de um tempo, ela olhou para mim, muito séria, e falou: “O PONTO, vó!”. Naquele momento, não entendi. Mas menino já sabe, desde pequenininho, é a primeira coisa que ele sabe: estar entregue na busca do “ponto”. Acho que foi isso o que a minha neta tentou me dizer e que eu continuo buscando… Quando eu era do colégio interno, no catecismo, as freiras me ensinaram sobre Elisabeth Leseur, uma santa francesa que dizia: “Dá-me um ponto de apoio e eu levantarei o Mundo”. Hoje, acho que esse “ponto” é dentro de cada um.
Para ler Lydia Hortélio
A partir da tradição popular na Fazenda Grota Funda, em Serrinha (BA), este livro mostra que a festa de Natal é uma “manifestação cultural com profundo significado”, escreve Lydia. “Ela é representativa da índole do Povo Brasileiro, tão afeito à Criança, e pronto a ver nela a grande inspiração.” Acompanha CD com 10 faixas, com marchas (cantos marcados) e loas (louvações) do presépio.
O livro apresenta o trabalho do Núcleo Experimental de Atividades Sócio-Culturais (NAESC), da Prefeitura de Salvador, entre 1979 e 1981, no Parque da Cidade. Coordenado pela educadora Maria Amélia Pinho Pereira (Peo), com pesquisa e imagem de Lydia Hortélio, o projeto levava crianças da periferia a brincar em meio à natureza. Ao organizar as imagens na ordem em que aconteceram, veio a revelação: “Nós compreendemos as crianças identificadas em seu próprio movimento, em sua verdadeira cultura.” Dessa forma, foi importante para consolidar a Cultura da Criança como parte essencial da cultura humana.
Sobre essa experiência, Lydia conta: “Foi ali que comecei a aprender, que tive olhos para ver Criança. Ali, eu conheci aqueles meninos com seus calçõezinhos exíguos, que vinham sem blusa para o nosso encontro, tão espontâneos, sorridentes, maravilhosos.” As crianças adoravam o Parque, mas resistiam às aulas de alfabetização. Então, Lydia propôs: “Se os meninos estão saindo pela janela para brincar, por que a gente não deixa eles irem, com a nossa permissão?”. Registrou tudo em álbuns de fotografia (alguns ainda seguem inéditos), para mostrar que é no BRINCAR que a criança existe com plenitude e liberdade.
“Eu gosto de vir aqui porque aqui a gente pode fazer o que queria e sabia”, afirmou uma das crianças do Parque.
Lydia segue contando sobre uma das lições mais importantes que aprendeu. Foi ao chamar a atenção de Cristiano e Maurício, assim, “bem professora, bem mandona”. Os dois estavam brincando e acabaram desfazendo uma mandala que as crianças haviam construído com folhas, flores, galhos e sementes. “Nunca vou esquecer a doçura com que ele me respondeu: ‘Não faz mal não, pró’. Era um tom do céu, de compreensão, de perdão pela minha preocupação adulta. E, realmente, vi na cara dele que já estavam em outra, aquele brinquedo do chão já tinha acabado”. Naquela manhã, as crianças mostraram a Lydia outra relação com o tempo: “Ele tinha absoluta razão. Nós, adultos, é que temos essa mentalidade bancária. Para a criança, acabou, acabou, já se está em outra.”
* Nesta entrevista, a pedido de Lydia, usamos “Criança” e “Menino” em letra maiúscula – assim como as palavras aparecem em seus manuscritos.

A Casa de Cultura da Criança do Bonfim
No Centro de Interpretação da Mata Atlântica (CIMA), um parque urbano localizado bem pertinho da Igreja do Bonfim, em Salvador, foi inaugurado em outubro o Mundo Encantado da Criança. O lugar tem 13,8 mil metros quadrados, do tamanho de quase dois campos de futebol ou de 135 quintais médios, com árvores nativas, brinquedos não estruturados ao ar livre, uma escola de educação ambiental e uma vista para a Baía de Todos-os-Santos que faz os nossos olhos parecerem barcos ou peixes. Logo na entrada, uma estátua de Charles Darwin lembra aos visitantes que o naturalista britânico esteve na Bahia em 1832 (cem anos antes de Lydia nascer!) e ficou admirado com a biodiversidade.
O Mundo Encantado da Criança tem uma bebeteca com livros em braile, sala imersiva com imagens da Mata Atlântica, o espaço Boquinha de Brasa — um teatro voltado para crianças, com nome inspirado no poeta Gregório de Matos — e também a Casa de Cultura da Criança do Bonfim. Ali, crianças pequenas e grandes podem visitar a exposição permanente de brinquedos e fotografias de Lydia Hortélio, que juntos formam um brinquedo maior: dá para subir e descer entre torres e túneis, desenhar em parede de giz, deitar em almofadas com formato de pedra ou brincar de 5 pedrinhas, o brinquedo favorito dessa pesquisadora do “saber menino”.
Lydia celebra a existência da Casa da Criança depois de “muitas idas e vindas, muitas promessas políticas que não se cumpriram”. Ela conta que começou a implementar esse projeto na Paraíba, quando voltou ao Brasil, na década de 1970, depois de ter vivido quase 20 anos na Europa. “Era um trabalho junto com o Quinteto Armorial e com Ariano Suassuna, o mais entusiasmado com as perspectivas daquele nosso projeto. Infelizmente, com o AI-5, eu desisti e vim para Salvador. Aqui, vivi duas experiências muito importantes, uma no Colégio Estadual Manoel Novaes, onde incluímos a música em todo o currículo, do Jardim da Infância ao 2º grau, como se chamava naquela época. A outra foi no Núcleo Experimental de Atividades Sócio-Culturais, em que as crianças da periferia de Salvador iam brincar no Parque da Cidade. Nenhuma dessas experiências, porém, era a Casa da Criança.
A Casa é uma parceria da Prefeitura de Salvador com a rede Urban95, inspirada na Cultura da Criança investigada por Lydia há 60 anos e também no conceito de parques naturalizados. A visitação é aberta e gratuita.