Síndrome da filha mais velha: meninas não são uma ‘segunda mãe’

O excesso de responsabilidade depositado nas primogênitas que passam a infância cuidando dos mais novos e do lar pode causar inseguranças na vida adulta

Célia Fernanda Lima Publicado em 14.06.2023
Foto de uma menina segurando um bebê no colo
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Resumo

Cuidar dos mais novos e de tarefas domésticas são responsabilidades que imprimem estereótipos de gênero às meninas desde cedo. A sobrecarga afeta a infância e pode deixar marcas para a vida toda.

Quando nasce uma menina, nasce uma cuidadora. “Não lembro de ter brincado com a minha irmã que nasceu depois de mim. Eu só cuidava mesmo”, recorda a piauiense Gorette Pinheiro, 67. Ela foi a primeira de oito irmãos e teve que tomar conta de pelo menos cinco, quando ainda era criança. Dar assistência aos irmãos menores é uma missão que parece recair sobre meninas pelo mundo todo. A tarefa de cuidar imposta sobretudo às primogênitas pode gerar a “síndrome da filha mais velha”, um conjunto de características desenvolvidas por quem teve uma infância sobrecarregada de funções.
No caso de Pinheiro, a maturidade precoce e o senso de responsabilidade por ser “babá” dos irmãos estavam presentes desde cedo. “Antigamente, os filhos eram como empregados dos pais e nós perdíamos a infância. Eu só queria brincar, mas, quando eu não estava com menino no colo ou esfriando um mingau, estava com lata d’água na cabeça [para abastecer a casa, pois o bairro não tinha esse serviço]”, conta.

Apesar do esforço, encher as latas d’águas era o tempo que ela tinha para ser só uma menina e brincar com outras crianças “porque ia sozinha”, lembra. A escola também era um momento de liberdade, mas ela teve que parar os estudos na adolescência e, só depois dos filhos já crescidos, conquistou os diplomas de pedagogia e gastronomia. “Pelo menos soube o que eu não queria para os meus filhos e cuidei muito bem deles. Priorizei os estudos, principalmente para as minhas meninas”.

A “síndrome da filha mais velha” ganhou destaque nas redes sociais a partir da tag que cita o termo em inglês #EldestDaughterSyndrome, com vídeos de meninas e mulheres de vários países, e que têm irmãos mais novos, contando como se sentem sobrecarregadas pelas tarefas confiadas a elas. E isso acontece até na família real inglesa. O príncipe William comentou que a filha Charlotte, 8, ficou cansada após a cerimônia de coroação de Charles III, porque “teve que se certificar de que seu irmãozinho se comportasse”. Durante o evento, ela ficou o tempo todo segurando a mão do irmão Louis, 5.

Para a psicóloga Lavínia Palma, especialista em psicologia histórico-cultural, as meninas são socializadas para o cuidar desde a infância e essa ideia é construída culturalmente, sem que haja questionamentos. “É como se, por nascer menina, ela já tivesse a capacidade natural de cuidar”, explica.

De acordo com o levantamento “Por ser menina no Brasil”, da ONG Plan International Brasil, enquanto 76% das meninas, de 6 a 14 anos, lavam a louça em casa, apenas 12% dos meninos fazem a mesma atividade doméstica. O cuidado com os irmãos é uma atribuição para 34% das meninas contra 10% deles. A pesquisa mostrou que 13,7% dessas meninas trabalham ou já trabalharam e praticamente 1 a cada 3 delas considerou que o tempo que tem para brincar durante a semana é insuficiente. Sobre o que acham mais importante nas relações com as pessoas, 65% disse que é “identificar quando alguém precisa de ajuda” e 53% que é “cuidar dos irmãos”.

Todas as pessoas podem aprender as tarefas de cuidado, mas isso não é ensinado aos meninos, somente às meninas.

Quando Ana Carolina Santos, 27, passou de filha única a irmã mais velha de dois meninos, aos 11 anos, foi encarregada de cuidar, dar banho, alimentar e deixá-los na escola. “Eu também levava um deles, que é autista, para a terapia”, conta. Além de ter a adolescência ocupada pela rotina dos irmãos e de ajudar no trabalho doméstico, Santos ainda precisava dar conta das próprias atividades escolares. Apesar de gerar conflitos internos e influenciar comportamentos, a síndrome da filha mais velha não levantava questionamentos. “Era a única realidade que eu conhecia, que é a de ser irmã cuidadora, como uma segunda mãe”.

Ela só foi entender a responsabilidade quando precisou decidir o que fazer com o irmão de três anos no dia em que a aula dele foi cancelada. “Eu tinha 14 anos e não podia voltar para casa com ele no colo, porque precisava ir para a minha aula. Fiquei alguns minutos sem saber o que fazer e decidi levá-lo para a casa de uma tia. Isso me marcou muito porque era um contratempo e eu não tinha um adulto para decidir por mim. Tive que resolver sozinha”, conta. Naquele dia, ela perdeu a primeira aula por chegar atrasada.

É preciso se entender como prioridade

Crescer com parte da infância ou adolescência negligenciada pode abrir lacunas na fase adulta, como a dificuldade em receber algum tipo de afeto e a dependência em ser reconhecido por aquilo que desempenha, e não pela personalidade, detalha Palma. “Geralmente, quem mais doa, menos recebe. O risco é ser um adulto que não vai se priorizar e validar o que sente, podendo sempre esconder seus sentimentos.”

A construção da identidade de quem se identifica com a síndrome da irmã mais velha envolve também o constante sentimento de culpa, a dificuldade em dizer não e a autoestima escassa. “A lógica vai ser sempre priorizar o outro. Isso é tão forte que o primeiro brinquedo dessas meninas, geralmente, é uma boneca. Ou seja, elas são ensinadas a brincar de se preocupar com o outro. Já os meninos brincam mais de aventura e de explorar algo”, destaca Palma.

A culpa ainda pesa na rotina da professora Ana*, 54, que preferiu preservar a identidade para não magoar a família. Ter sido uma criança com tantas responsabilidades implica, ainda hoje, em insegurança no trabalho. “Eu não podia simplesmente deixar a minha vida infantil correr. Minha mãe pedia para orientar meus quatro irmãos nos estudos e, se eles não iam bem, me sentia culpada por não ter feito o suficiente.”

“Ao se tornarem mulheres, essas meninas podem sentir muita culpa quando não estão colocando o outro em primeiro lugar, porque se sentem responsáveis pelo bem-estar deles”, afirma Lavínia Palma, psicóloga.

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Passar a infância cuidando dos irmãos e da casa fez Gorette Pinheiro, 67, saber o que era melhor para os filhos: “Priorizei os estudos, principalmente para as minhas meninas.”

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Responsável por dois irmãos mais novos, Ana Carolina Santos, 27, não questionava a sobrecarga na época. “Era a única realidade que eu conhecia, que é a de ser irmã cuidadora, como uma segunda mãe.”

A balança da divisão das tarefas

Barrar a cultura da sobrecarga da filha mais velha é um desafio estrutural, que depende essencialmente de uma educação feminista para desconstruir o estereótipo de gênero e promover uma divisão igualitária das tarefas no lar, acredita Palma. “É importante combater preconceitos e fortalecer a coletividade ensinando os meninos a cuidarem também. Senão, eles podem se tornar “homens que cuidam pouco ou que cuidam mal”.

Lavínia Palma, psicóloga especialista em psicologia histórico-cultural, mostra alguns caminhos para a criação de crianças feministas:

O que ensinar para os meninos:

  • Questionar seus privilégios
  • Apresentar novas possibilidades de brincar
  • Afirmar que as meninas são parceiras
  • Ensinar que eles também podem cuidar de si e dos outros

O que ensinar para as meninas:

  • Mostrar referências de mulheres
  • Explicar que as outras meninas são amigas
  • Incentivar que elas se priorizem
  • Ensiná-las a dizer “não”
  • Explicar que não são criadas para agradar os outros e que não precisam ser adoráveis o tempo todo, devem ser felizes

Mudar a situação também depende da presença de políticas públicas que incluam creches para que “os filhos mais novos tenham onde ficar quando os pais saem para o trabalho e, assim, os filhos mais velhos possam estudar”, acredita Amanda Sadalla, diretora executiva da Serenas, organização de mulheres que defendem os direitos das meninas.

Ao promover cursos de capacitação para combater a violência doméstica e a desigualdade de gênero para profissionais da educação e estudantes, Sadalla observa as histórias que as meninas dividem sobre cuidar dos mais novos e às vezes também dos mais velhos, como os avós. “Muitas são colocadas no papel do cuidado que reforça que elas têm que exercer um senso de maternidade mesmo sem ter essa escolha”, conta. Para ela, isso prejudica a saúde física, mental e o desenvolvimento integral dessas meninas, pois deixam de acessar espaços de lazer e de conhecimento fora das escolas.

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Fonte: Pesquisa “Por ser menina no Brasil - Crescendo entre Direitos e Violências”, da Plan International Brasil

“As meninas são forçadas a amadurecer mais cedo por causa das responsabilidades que lhes são impostas”

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