Entre o encanto e o excesso, série de reportagens investiga os dilemas das famílias e a orientação de especialistas para o equilíbrio no uso das telas
O uso do celular na infância desperta dúvidas e preocupações. Na primeira reportagem de uma série especial, Lunetas fala das novas leis e de incentivos para regulamentar o setor e mostra a opinião das crianças sobre o tema.
É difícil competir com a tela que brilha, vibra e distrai. Mas o que acontece quando o celular vira companheiro de infância? Na estreia da série “Crianças e celular”, Lunetas ouviu especialistas para entender o que está sendo feito para cuidar das infâncias no ambiente digital e como encontrar o equilíbrio em um mundo cada vez mais hiperconectado.
“Quando uma criança se acostuma ao prazer instantâneo gerado ao consumir um conteúdo pelo celular, ela perde oportunidades de viver a realidade”, afirma a pediatra Bruna Cappellano Casacchi. “Além disso, o uso excessivo diminui a oportunidade de experiências essenciais para o desenvolvimento e para a criação de habilidades socioemocionais.”
Para Rodrigo Nejm, doutor em psicologia social e especialista em educação digital no Instituto Alana, “especialmente quando o celular não é configurado com restrições de acordo com a idade, as redes sociais podem disseminar violência, drogas, pornografia. Isto é, conteúdos que não são feitos para a faixa etária e que causam sérios danos.”
Mesmo diante de realidades diferentes (rede de apoio, tempo, renda, moradia), as dúvidas se repetem: quando, como e até onde permitir o acesso a celulares e redes sociais?
Se de um lado os dispositivos digitais já fazem parte da rotina das famílias, do outro crescem os alertas sobre os impactos do uso excessivo e sem mediação na infância. Entre os efeitos conhecidos estão atraso no aprendizado e no desenvolvimento cognitivo, transtornos de sono, dificuldades de concentração, aumento da ansiedade, questões relacionadas à autoimagem e prejuízos nas relações presenciais.
Se você se reconhece em alguma destas situações, esta série é para você:
Nas próximas reportagens, vamos falar de equilíbrio, riscos e limites por faixa etária, configurações de segurança e acordos em família — com menos culpa e mais presença.
As grandes empresas globais “desenvolveram aplicativos viciantes e abriram caminhos muito profundos nos cérebros dos jovens”. É o que mostra o psicólogo Jonathan Haidt, no seu livro “Geração ansiosa”.
Portanto, lidar com as transformações tecnológicas é uma função que “precisa ser guiada por uma atuação efetiva do poder público e das entidades reguladoras”, afirma João Francisco de Aguiar Coelho, advogado do Programa Criança e Consumo, do Instituto Alana.
O ECA Digital, por exemplo, que estabelece regras específicas para a proteção de crianças e adolescentes em plataformas como Instagram, TikTok, Kwai e YouTube, “tem um potencial de transformar a forma como as empresas funcionam e como elas incidem sobre a vida de crianças e adolescentes”, afirma João. “Mas ainda é preciso continuar a olhar essa pauta de perto para garantir que a lei mude a realidade que vivemos hoje.”
Quando 50% dos adultos dizem se informar sobre o uso seguro da internet pelas próprias crianças, como divulgou a pesquisa TIC Kids Online Brasil 2025, “o número incomoda”, diz Rodrigo Nejm. Isso porque reforça o mito de que as crianças são nativas digitais e sabem tudo sobre o tema. Eles até têm algumas habilidades instrumentais, mas não possuem o principal: maturidade, discernimento e capacidade crítica.”
O especialista reforça: “O desafio é de todas as gerações e a responsabilidade é dos adultos, que ainda têm dificuldade de aprender as habilidades digitais necessárias.”
Hoje são cerca de 24,5 milhões de crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos conectados — e 96% deles acessam a rede pelo celular. E isso acontece várias vezes ao dia para três em cada quatro crianças.
Escutar quem está no centro dessa discussão pode ser o primeiro passo para construir juntos regras que façam sentido para cada realidade. O Instituto Alana consultou então 70 crianças e adolescentes, em 43 cidades brasileiras, para saber o que pensam e como vivem no mundo digital.
A maioria ganha o primeiro aparelho entre os 10 e 12 anos, geralmente para se comunicar com a família. Com o tempo, o celular passa a servir também para estudar, se entreter e conversar com os amigos. As próprias crianças reconhecem que o uso das telas pode ser positivo, desde que exista equilíbrio. Mas, quando há exagero, elas percebem os efeitos no corpo e nas emoções: falam em ansiedade, insônia, dor de cabeça e até tristeza.
Uma menina de 12 anos, de Rondônia, diz: “Mesmo eu gostando muito de mexer no celular, me atrapalha bastante em casa. Por exemplo, em vez de fazer alguma coisa, como lavar a louça ou limpar a casa, eu fico mexendo no celular.” Outra adolescente, de 14 anos, do Paraná, ressalta que “o relacionamento começa a ficar ruim quando não temos o autocontrole da demanda, de saber quando ou não devemos mexer no celular”.
De acordo com a pesquisa, quando falta a mediação dos adultos, muitos dizem sentir a necessidade de criar sozinhos uma rotina para organizar o tempo diante das telas. Como podemos ajudá-los então?
“Eu falaria que as redes sociais aparentam ser boas, mas são horríveis também. As pessoas mostram a vida perfeita, sendo que a vida é cheia de buracos e caminhos, e para ele pensar muito em como iria usar as coisas dentro do celular, porque tem muita, muita coisa ruim” – Menino de 17 anos, do Sergipe, ouvido na pesquisa do Instituto Alana.
* A pesquisa do Instituto Alana foi realizada em parceria com a Secretaria de Políticas Digitais da Secom-PR (Secretaria de Comunicação do Governo do Paraná) e com o apoio do Programa de Acesso Digital da Embaixada do Reino Unido no Brasil. A partir dela, nasceu a publicação “Crianças, adolescentes e telas: guia sobre usos de dispositivos digitais”, lançada pelo Governo Federal.
O que mais o Brasil tem feito?