Um mês inteiro dedicado à primeira infância, mais investimento na alfabetização e discussões sobre os direitos das mulheres que cuidam das famílias (a tal economia do cuidado) ganharam destaque em 2023 e beneficiaram diretamente as crianças. Por outro lado, a onda de violência nas escolas, a crise climática e os conflitos armados também afetaram as infâncias. Vem com a gente olhar para o que este ano deixa como legado:
O que comemorar?
Mês da primeira infância
A partir de agora, é lei: todo mês de agosto será o “Mês da Primeira Infância”. Na prática isso quer dizer que agosto é mês de priorizar projetos e políticas públicas que beneficiam crianças menores de cinco anos e gestantes. Isso porque é o período mais importante para o desenvolvimento saudável da criança. Além disso, o Conselho de Desenvolvimento Social Sustentável lançou uma política nacional para a primeira infância. O que irá direcionar investimentos e ações concretas para essa população. O Instituto Alana fez parte do conselho, junto com outras instituições ligadas à proteção absoluta dos direitos das crianças. Segundo Mariana Montoro, diretora de Comunicação e Relações Governamentais da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, “essas ações influenciam no futuro acadêmico, emocional, social e até econômico da criança em formação”.
Atenção à alfabetização e livros inclusivos
Apesar de 60% das crianças do segundo ano do ensino fundamental não estarem completamente alfabetizadas, o Governo Federal se comprometeu a cumprir a meta 5 do Plano Nacional de Educação (PNE). Ou seja, a partir de políticas públicas lançadas em 2023, o objetivo é que 100% delas estejam alfabetizadas até 2026. Um exemplo é o Compromisso Nacional Criança Alfabetizada, que investirá R$ 3 bilhões em três anos. Outro investimento para a educação anunciado este ano é o pagamento de uma bolsa mensal para estudantes do ensino médio. O mesmo programa ofertará uma poupança para que cada aluno tenha uma renda ao final da vida escolar.
Já a justiça Federal considerou o pedido de organizações sociais da Articulação Contra o Ultraconservadorismo na Educação, para que as escolas não utilizem livros e materiais didáticos que violem os direitos humanos. Assim, qualquer material que tenha conteúdos considerados preconceituosos do ponto de vista racial, social ou de gênero será recolhido ou substituído. Isso porque, segundo a Justiça, a diversidade é um critério eliminatório para a escolha dos livros via Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e deve “respeitar princípios éticos e democráticos”, sem violar direitos ou impor alguma religião.
Novo censo e o reconhecimento de famílias plurais
Os resultados do Censo 2022, do IBGE, mostraram como a população brasileira está mudando. E ainda, como as configurações das famílias em sua diversidade ocupam cada vez mais espaço na garantia de direitos. Apesar da queda da natalidade, de famílias menores e do reconhecimento de que a maioria é chefiada por mães solo pretas e da periferia, o novo censo aponta caminhos para políticas públicas específicas a esses grupos.
Nesse sentido, as “novas” famílias se legitimam na sociedade, derrubando a hegemonia de um único padrão. Segundo a cientista social da Unicamp, Joice Vieira, o cenário evidencia o “avanço dos direitos sociais das mulheres, conquistado a partir de maior escolarização, participação no mercado de trabalho e liberdade sexual”. Além disso, outro direito que amplia a diversidade das famílias no país é o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Mesmo sendo menos de 1%, o número de casamentos homoafetivos aumentou consideravelmente em 10 anos e a adoção de crianças entre essas famílias também.
Discussão sobre a economia do cuidado
A tarefa de cuidar foi bastante discutida em 2023 e virou até tema da redação do Enem. O olhar para a chamada economia do cuidado chegou na esfera política com a proposta de incluir a dedicação ao cuidado dos filhos e tarefas domésticas como tempo de serviço para aposentadoria. Nesse sentido, milhões de mulheres no país seriam beneficiadas, pois elas são maioria na função.
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC), de 2019, 54 milhões de brasileiros realizam atividades de cuidado com moradores de seu domicílio ou parentes. A discussão ampliou as vozes de movimentos sociais para o direito das mulheres e a reflexão para a criação de um sindicato de mães cuidadoras, como propõe o coletivo Política é a Mãe. “Quem cuida da manutenção e reprodução da vida precisa ser reconhecida. O que aconteceria se todas as mães e cuidadoras entrassem em greve?”, questionou Ana Castro, ativista cofundadora do coletivo.
O que ainda falta avançar?
Combate à violência nas escolas
Ataques contra alunos e professores dentro de escolas fizeram as autoridades traçarem um plano de segurança, além de levantar a questão da regulação das plataformas digitais. Isso porque, segundo as investigações de alguns casos, autores dos ataques anunciaram a ação nas redes sociais e estavam expostos a conteúdos violentos nesse ambiente. Outra questão foi o bullying e a discriminação dentro do ambiente escolar, apontados como principais fatores para motivar os ataques, como explicou o relatório “O extremismo de direita entre adolescentes e jovens no Brasil: ataques às escolas e alternativas para a ação governamental”.
Em dez meses, foram 49 mortes e 115 pessoas feridas em 36 ataques às escolas em todo o país. Por isso, o Governo Federal criou um Grupo de Trabalho para apontar medidas de combate à situação. A lista passa pela responsabilização das redes sociais pela circulação de conteúdos extremistas, atualização de leis sobre bullying, promoção de saúde mental nas escolas, valorização dos profissionais da educação e protocolos de segurança para esse tipo de situação.
Guerras e conflitos armados
Milhares de crianças são vítimas dos conflitos armados pela disputa de território no mundo. No caso da guerra da Ucrânia e do embate entre Israel e Palestina, meninas e meninos estão no centro de um cenário de violência extrema.
Como reconstruir infâncias destruídas na guerra? Foi o que Lunetas tentou responder a partir da fala de especialistas dos direitos das crianças e da ajuda humanitária. Conforme o Unicef, cerca de 400 crianças ficam feridas ou morrem a cada dia de conflito na região de Gaza. Por isso, o cessar-fogo é a medida mais urgente para proteger as crianças. Outros pontos passam por garantir atendimento de saúde, educação e apoio psicológico às crianças vítimas desses conflitos.
Saneamento como direito
Ainda falta saneamento básico para as crianças que vivem na região amazônica. Apesar de ser um direito fundamental para a saúde e qualidade de vida, a região norte concentra sete dos dez municípios com os piores índices de saneamento e acesso à água potável do Brasil, segundo o Instituto Trata Brasil. Em uma série de reportagens especiais, o Lunetas mostrou a situação de famílias de Belém e Ananindeua, no Pará, que precisam estocar água e desviar do esgoto a céu aberto para proteger suas crianças.
Embora vivam em um ambiente que concentra o maior reservatório de água doce do planeta, o acesso à água potável ainda é precário. As consequências dessa situação afetam o desenvolvimento infantil, como afirmou o pediatra e neurocientistas da Universidade de Harvard, Charles Nelson. “Uma pessoa que sofreu na infância por causa de saneamento deficiente ou pobreza, provavelmente, dará à luz uma criança com a saúde comprometida, devido à experiência de vida inicial da mãe”.
Saúde das crianças yanomami
Crianças desnutridas, mortes por malária e falta de vacinas marcaram o início do ano em comunidades yanomami, de Roraima. As imagens que rodaram o mundo mostraram as consequências de anos de descaso no atendimento à saúde dessa população. Foram 570 mortes de crianças com menos de 5 anos por doenças evitáveis.
“Destruíram nossas águas, nossa floresta, nossas vidas. Destruíram tudo. O garimpo ilegal trouxe devastação, morte, doença. E o mercúrio, que contamina os rios e o alimento”, contou Junior Yanomami. Diante disso, o Estado acionou forças nacionais e o exército para uma força-tarefa pela vida das crianças yanomami. Assim como a desarticulação de atividades de garimpo ilegal nas terras indígenas na Amazônia.
Veto do marco temporal
Depois de anos de discussão, a tese do marco temporal foi vetada pelo Supremo Tribunal Federal. Inicialmente, isso representou uma vitória para os povos originários. O Lunetas mostrou em 2023 quais os impactos para as famílias e crianças indígenas caso o projeto de lei fosse aprovado. Da saúde e educação às tradições ancestrais e o direito ao livre brincar, o marco temporal afetaria toda a rotina de mais de 1,7 milhão de indígenas do país.
“Com território, as crianças têm o lugar delas para pescar, viver o dia a dia com os pais e saber os pontos sagrados da conexão com a natureza”. Foi o que disse Dineva Kayabi, professora da escola indígena da TI Juporijup, no Mato Grosso. O PL do marco temporal defende que os indígenas só teriam direito às terras habitadas a partir da Constituição Federal (1988). Ele prevê ainda a revisão de algumas demarcações. Apesar de considerada inconstitucional pelo STF, o Congresso Nacional retomou a pauta, no meio de dezembro, tentando novamente aprovar a lei com a maioria de votos, revertendo a decisão do Governo Federal e, mais uma vez, colocando esse direito fundamental em risco. Portanto, a expectativa é que o assunto retorne ao STF.
Ondas de calor e emergência climática
A crise climática que atinge o planeta põe em risco a vida de milhões de crianças afetadas pela destruição desenfreada dos recursos naturais. Nesse sentido, além de desastres como enchentes, secas e queimadas, a onda de calor chegou ao Brasil e fez algumas cidades alcançarem uma sensação térmica de até 43º. Por causa disso, pediatras apontaram uma série de medidas para proteger as crianças, sobretudo os bebês. Hidratação intensa, brincadeiras em locais arejados e alimentação adequada são algumas delas.
Outra emergência climática foi o anúncio de que a COP 30 – principal conferência para o clima do mundo – será, pela primeira vez, em uma cidade na Amazônia. Mas, enquanto há articulações para que as crianças participem das discussões na conferência, em Belém, próxima cidade-sede, muitas crianças não sabem o que realmente será discutido. Foi o que mostrou a COP das Baixadas, evento da periferia da cidade, que discutiu como a conferência pode beneficiar diretamente a população local.