Pais estão rompendo com antigos modelos e descobrindo a paternidade a partir de relações baseadas no afeto, na amizade e na confiança com filhas e filhos
A paternidade ganha outros contornos com modelos de criação mais afetivos, que deixam de lado construções antigas majoritariamente baseadas na autoridade patriarcal. Conheça histórias de pais Brasil afora que estão redefinindo o que é ser pai.
O ato de paternar vem encontrando novos sentidos e pertenças para muitos pais: seus modelos de criação estão sendo rediscutidos ou colocados em xeque, como aquele que prevê o papel do homem como o “provedor do lar”. As inseguranças, expectativas e projeções a respeito da criação de filhas e filhos estão se transformando. No lugar de regras e presença da autoridade, entram o afeto, o diálogo e a parceria na formação de cada “serzinho”, sejam quais forem as configurações familiares.
“A paternidade tem sido revisada principalmente por movimentos em redes sociais. Isso se iniciou com as mulheres discutindo sobre seus direitos e deveres”, aponta o psicólogo Robson Douglas. “A partir desses debates, muitos homens começaram a pensar na infância e na ausência dos pais em sua criação.”
“O homem deixa de representar uma figura de autoridade e passa a ter um vínculo de amizade com os filhos”
Pai solo de um menino de 13 anos e com a guarda compartilhada de outro de 2 anos, ambos de relações diferentes, o professor de ensino fundamental, Wellington Santana Moraes de Sá, 41, morador de São Gonçalo (RJ), sempre teve vontade de ser pai e de cuidar de outras pessoas.
Criado numa família em que seu pai se encaixava no modelo de “homem provedor” e a mãe era dona de casa, ele relata que muitas das suas referências vieram do próprio lar, mas diz que desenvolveu outros olhares sobre a paternidade.
“Sempre tive vontade de ser pai. Isso vem desde pequeno, até porque eu ajudava a cuidar dos meus irmãos mais novos. Meu pai, mesmo sem dizer ‘eu te amo’, sempre teve muita sensibilidade”, conta.
“Eu sou pai e assumo as responsabilidades e atribuições de cuidar dos meus filhos”
Wellington se tornou pai solo de seu filho mais velho, Miguel, que perdeu a mãe no ano passado. A sensibilidade, o carinho e o amor dedicados para cuidar sozinho do primogênito são especiais, mas compartilhados também com o pequeno Tedros, fruto de outra relação de Wellington.
Num país como o Brasil, onde as configurações de criação solo são majoritariamente exercidas pelas mulheres – com 11 milhões de mães solo, segundo dados do Instituto Locomotiva de 2020 -, Wellington é uma das exceções masculinas que se divide entre cuidar dos filhos e dar aulas em escolas públicas de São Gonçalo e São João de Meriti, cidades que ficam a 50 quilômetros separadas uma da outra, por rodovias e pelas águas da baía de Guanabara.
A experiência de paternidade solo ganhou novo olhar com o lançamento recente do filme “Paternidade”, estrelado pelo ator afro-americano Kevin Hart, disponível na Netflix. No longa, ele interpreta Matt, um homem que fica viúvo com a morte da esposa ainda no hospital após o parto da primeira filha (Maddy). O filme é baseado na obra autobiográfica do escritor Matthew Logelin, autor de “Dois beijos para Maddy: uma história real de amor e perda”, e apresenta as dificuldades pelas quais ele passou durante a jornada da criação, dos conflitos familiares com parentes, as questões profissionais, de um novo relacionamento afetivo e da rede de apoio.
Há casos também em que o “pulo” de uma geração transforma e aproxima ainda mais as relações entre pais e filhos de forma definitiva. É o caso do servidor público Marcelo Oliveira Santos, o Marcelo Zig, 47, de Salvador (BA).
Criador do perfil Afrodeficiente, no Instagram, por meio do qual promove a conscientização anticapicitista e antirracista, Zig relata que a notícia de que seria pai veio num momento de travessia traumática pessoal, meses após um mergulho em águas rasas que o levaram a precisar de uma cadeira de rodas.
“O acidente aconteceu em janeiro de 1995 e meu filho nasceu em julho de 1996. Eu ainda estava tentando me entender”, relata. Depois do impacto inicial, ainda teve que lidar com outros medos.
“Eu acreditei que não poderia ser pai por conta do racismo, do capacitismo e também do machismo”
“Eram muitas as violências que me atravessavam. Eram ‘construções’ que diziam que meu filho não poderia ter uma tatuagem, um tipo de cabelo, que deveria estar dentro de casa em determinados horários.”
Segundo Zig, foi graças aos grupos de apoio e coletivos que ele passou a revisar os próprios conceitos, que ganharam ainda mais impulso com o nascimento do neto Tiê, hoje com 3 anos.
“É muito importante poder ressignificar e recriar a relação com o meu filho por meio do meu neto. Para nós, pessoas pretas, a referência vem de outro lugar. Nós somos coletivo. Somos comunidade. Nós criamos filhos, primos, sobrinhos. Temos a questão da matrigestão [relacionado à potência criadora presente em todos os seres dado por meio do feminino] e da paternidade. Essa relação é uma oportunidade de amadurecer e aflorar o aprendizado de ser pai e filho. É uma experiência incrível”, destaca Zig.
As vivências da paternidade são amplas e têm potência para “quebrar” paradigmas cis, heteronormativos ou coloniais. Para o músico paulista Omo Afefe, 23, a paternidade pode ser descrita como uma “dádiva”. Homem trans e pai do pequeno Malcon, 4, ele juntamente com a esposa, a travesti Matuzza Sankofa, criam um filho com referências descolonizadas e de muito afeto.
“Somos um casal hetero, mas construído por corpos trans. Por isso, de alguma forma, Malcon já está em outra construção”, explica Omo, que na língua yorùbá, na qual não há distinção de gênero para nomes, significa “filho(a) do vento”. Ele destaca que sua paternidade é parte da “tecnologia trans preta”, ressaltando que em diversas origens africanas não existem as mesmas regras normativas presentes em fundamentações ocidentais europeias.
“Por mais que ele seja ou não cis no futuro, nosso filho já tem um outro olhar por estar sendo criado por pessoas trans”
Para Omo, a paternidade trans lhe proporcionou sentimentos únicos. “É um momento mágico poder acompanhar o crescimento de uma criança que está se desenvolvendo, poder dizer que eu pari e estou podendo paternar o meu filho. Existem outras formas de viver e criar as nossas crianças”, afirma.
Parte dessas transformações de pensamento citadas por Zig e Omo passa por grupos que discutem o papel da paternidade a partir de referências negras. Um deles é o Coletivo Pais Pretos Presentes, que reúne mais de 85 mil famílias, entre pais e mães com diversas configurações – casados, solos, pretos ou interraciais. Criado em 2018 pelo educador, professor de inglês e consultor Humberto Baltar, juntamente com a sua esposa, a engenheira química Thainá Barbosa, o coletivo surge inspirado na gestação do primeiro filho do casal, Apolo, hoje com 2 anos.
A ideia inicial de Humberto era saber se alguém conhecia algum pai preto para compartilhar experiências. A partir dos contatos iniciais com outros pais, o grupo criou um ambiente para trocas de experiências na plataforma WhatsApp. O movimento cresceu e hoje ultrapassa as fronteiras nacionais, tendo membros na Europa e no continente africano.
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Atualmente, o Coletivo Pais Pretos Presentes conta também com perfis nas redes sociais (Facebook, Twitter, Instagram, grupo de estudos no Telegram, canal no YouTube) e periodicamente são realizadas rodas de conversas virtuais (durante a pandemia) entre pais, mães e também mistos. No caso do grupo de pais, muitas trocas buscam debater o papel da paternidade preta a partir de referências ancestrais africanas e os efeitos das masculinidades tóxicas criadas no modelo ocidental, mas também servem para trocas triviais, como melhor creme de cabelo para as crianças, temas de festas infantis, indicações de profissionais de saúde, escolha de instituições de ensino e até compartilhamento de fotos de nascimento.
“O coletivo atua como uma rede de apoio, escuta ativa, partilha de vivências e cura. A ancestralidade africana nos ensina pela experiência de diversos povos e etnias que todo conflito pode ser encarado como uma dádiva em potencial para enriquecer não só a vida dos envolvidos como também de todos os presentes na aldeia”, expõe Humberto.
“Essa tem sido uma das mais importantes funções do coletivo: proporcionar o resgate de vivências ancestrais e tecnologias culturais africanas”
O psicólogo Robson Douglas relembra que o processo da escravidão colonial no Brasil deixou “feridas abertas e cicatrizes mal fechadas”, afetando as questões familiares e ocasionando a perda das referências de cultura, amor e respeito, que foram atravessadas pela violência, pelo silenciamento do homem negro e pelo uso da “lei do mais forte”.
“Estamos caminhando com bons passos para essa cura. São muitos movimentos e muitas famílias revendo esses conceitos e resgatando o amor e respeito, com lembranças de afetos que os mais velhos tinham por nós. Ensinamos isso desde cedo para as nossas crianças e o compartilhamos entre mulheres e homens de uma geração de adultos já formados. A tendência é que nossos filhos, filhas e netos resgatem cada vez mais a nossa ancestralidade”, conclui.
O fisioterapeuta Erick Olgim Alves Bernardes, 35, morador de Porto Alegre (RS) e pai de Vicente, 5, é integrante e moderador do coletivo. Ele tem a sorte de presenciar seu filho conviver com o avô Sidnei e o bisavô Juvenal, o que possibilita uma série de trocas de conhecimentos, experiências, afetos e vivências riquíssimas que marcam de forma fundamental as vidas de bisavôs, avôs, filhos, netos e bisnetos.
São quatro gerações de homens pretos da linhagem paterna – algo nada comum dentro do contexto da longevidade da população negra no Brasil. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre as pessoas com mais de 60 anos no Brasil, 7,9% são pretas, 35,3%, pardos e 55,1% são brancos.
A descoberta da gravidez de um menino fez Erick pensar nas construções que seriam necessárias para que fosse um exemplo, sem adotar modelos machistas. “A gente demonstra pelos nossos atos e diálogos que essas coisas não vão se perpetuar. Ensinamos para o Vicente que não tem cor só de meninas. Além disso, buscamos bonecos, revistas e livros de temática infantil com referência negra, para gerar empoderamento”, relata.
O médico Victor Targino, 27, que vive em Camaragibe (PE), se considerava uma pessoa mais introspectiva e fechada nas suas próprias observações. Mas o nascimento da filha Naíme, hoje com 1 ano, mudou completamente esse olhar autocentrado.
“Ela veio pra rasgar a minha afirmação de que eu era o centro do mundo e mostrar um amor que transborda. Cada sorriso e cada choro trazem uma lição diferente e me enchem de diferentes emoções”, confidencia. A chegada da filha também tem lhe proporcionado aprendizados diários, como o regresso à espiritualidade. Filho do meio de uma família que era composta por duas irmãs, ele teve no pai um modelo de criação, mesmo após o divórcio do casal.
“Ele foi maravilhoso. Nunca deixou de estar presente comigo e com as minhas irmãs. Levava e buscava a gente na escola, passávamos os fins de semana alternados entre ele e minha mãe”, lembra, com carinho.
São pais que estão aprendendo ou reaprendendo os vários sentidos da paternidade. Que se redescobrem a cada dia, que aceitam as suas imperfeições de não serem oráculos de conhecimento, que não precisam ser fortes o tempo todo, que choram, se emocionam e buscam estabelecer diálogos com filhos e filhas; e que, às vezes, levam broncas de “gente miúda”.
Pais como o que redigiu essa matéria entre momentos de servir almoço, lanche, brincar e ser o “botão F1” que ajuda nas partidas de Xbox do Lilo, nosso pequeno Murilo, de 6 anos recém-completados, que veio dar mais sentidos à nossa vida. Simplesmente pais.
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