O puerpério ainda é um assunto distante do mundo masculino, mas pode gerar sofrimento às mães e até insegurança nos pais
O papel de apoio dos homens às mulheres que passam pelo puerpério é fundamental, mas esse momento também pode gerar neles sentimentos confusos de angústia e insegurança.
Era uma manhã de sábado, há algumas semanas, quando Cássio de Almeida Pereira, 33, vivenciou uma dessas cenas que, por mais cotidianas que pareçam, nos tiram do prumo. Ele se viu diante de sua companheira, Vanessa Ramazzini, 32, em lágrimas, com o pequeno Augusto no colo enquanto tentava em vão amamentar o recém-nascido. O momento foi um choque para o pai, que ficou sem saber o que fazer. “Quando passou a euforia inicial, caí na real que agora a vida era outra e esse foi o momento mais tenso do pós-nascimento”, comenta Cássio.
No caso de Rômulo Arbo Menna, 39, e Bianca Menna, 37, o parto da primeira filha do casal, Flora, que nasceu em 2018, foi um momento sublime, mas, ao mesmo tempo, difícil física e psicologicamente para a parturiente. Rômulo conta que Bianca teve um parto doloroso e ainda passou por uma episiotomia, técnica cirúrgica que consiste em uma incisão no períneo. Esta marca trouxe muito sofrimento no pós-parto. “Eu estava ao lado dela, eu vi a força que foi, contra o que ela estava lutando, mas nem imagino o que sentiu”, relata Rômulo.
Longe de serem exceções, essas histórias dão a dimensão do quão complexo e longo pode ser o puerpério, fase que começa com o pós-parto e causa uma série de transformações físicas, hormonais e psicológicas às mães.
“O puerpério é um período em que a mulher começa a vivenciar o retorno do seu organismo às condições pré-gravídicas, experimentando um momento de profundas transformações e uma série de alterações fisiológicas”, explica Ellen Machado Arlindo, médica plantonista da Emergência Obstétrica do Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre. “Acreditava-se ser um período de seis a oito semanas após o parto, porém sabemos que é um momento de duração imprecisa, que se estende até a completa recuperação das alterações determinadas pela gestação e parto”, complementa.
O silêncio sobre o puerpério que impera em boa parte do mundo masculino solidifica o pouco caso da sociedade, em geral, aos cuidados com as mulheres durante o pós-parto. A atenção com as mamães nas primeiras semanas e meses de vida dos recém-nascidos é um tema, ainda que urgente, tratado com desconhecimento. Termos como “puerpério”, e outros como “baby blues”, “depressão puerperal” e “depressão pós-parto”, estão longe de figurar como palavras constantes no vocabulário masculino.
Tanto Cássio quanto Rômulo jamais haviam ouvido falar sobre puerpério, até que receberam a notícia de que seriam pais. “‘Puerpério’ foi uma palavra que entrou no meu vocabulário durante o pré-natal. Entendi que era um período em que a mulher precisava se curar, não só de corpo, mas de mente e espírito. Um momento de adaptação em que passa a viver um turbilhão de mudanças”, descreve Cássio. “Fui conhecer [a palavra puerpério] pela boca da Bianca, mas não de forma muito técnica, apenas vagamente como um ‘período depois do parto’ mais sensível à mulher”, salienta Rômulo.
Ambos nunca receberam uma só recomendação de um profissional da saúde durante todo o pré-natal e após o parto sobre o tema, mesmo tendo participado de consultas onde deveria haver oportunidade e abertura de se debater o puerpério. Todos os envolvidos, inclusive os recém-nascidos, tiveram que “descobrir” na prática o que é esse momento e como ele é difícil de lidar, o que acabou trazendo insegurança para os pais e, não raro, um injusto sentimento de culpa às mães, que precisavam de cuidado e acolhimento.
“O companheiro é a principal rede de apoio dessa mulher no puerpério”
“Quando temos um ambiente muito bem cuidado, como uma casa organizada, alguém para fazer comida, cuidar das roupas, cuidar das questões financeiras e de trabalho, essa mulher lida melhor, porque consegue se vincular ao bebê sem outras preocupações. Saber que o bebê está bem, saudável e se desenvolvendo é a recompensa que a mãe tem, emocionalmente falando”, explica Waleska Jerusa de Souza Mendonça, psicóloga assistencial e referência do centro Materno-Infantil do Hospital Moinhos de Vento.
É natural que pais de primeira viagem se sintam inseguros nessa hora, afinal o puerpério pode ser também um momento de sofrimento psíquico para os homens, naqueles casos em que eles assumem, de fato, o papel de pais e todas as responsabilidades nele implicadas. Ainda que ele não sofra as alterações hormonais, a relação com o mundo e o núcleo familiar é completamente transformada. Em meio a tudo isso há a necessidade de se construir um entorno confortável à mãe e ao bebê.
Uma coisa é uma rotina sem filhos já estabelecida. Outra coisa é uma nova rotina, uma nova vida. Tudo isso ocorre com maior intensidade, e por questões hormonais e fisiológicas, a mulher está mais fragilizada”, ressalta a psicóloga.
“Na Psicologia, costumamos dizer que o nascimento de um filho é, na verdade, uma crise vital. Traz desconforto e desequilíbrio”
Essa mudança tem impactos mais profundos na vida das mulheres, mas a consciência dos pais sobre todos esses processos é fundamental para que eles não sejam um fator a mais de desestabilização de mães e filhos recém-nascidos. Isso porque, em que pese não haver mudança hormonal, o momento de “crise vital”, como descreveu a psicóloga, atinge toda a família.
Não à toa, Cássio conta que os últimos meses foram intensos, de aprendizado, trabalho e cansaço. “Uma criança é um ser que precisa de atenção e envolvimento. É uma questão física inclusive, porque acorda cedo, levanta de madrugada, lava e estende roupa e tudo isso somado à nossa rotina pessoal e à nova rotina dele”, observa o pai de primeira viagem. “Outro aspecto é a mudança na casa: tem a cadeira de alimentação, alguns brinquedinhos, o carrinho que fica no meio da casa e outras coisas. Muda toda a dinâmica”, pontua.
Waleska chama atenção para estes aspectos relatados por Cássio e acrescenta sobre o que muda na relação.
“O casal também passa por mudanças, de um casal sexual para um casal sexual e parental, o que traz diversas alterações na família”
“A gente precisa abrir espaço para esse novo ser chegar e se concretizar. Além disso, são feitas diversas organizações dentro desse espaço, que pode ser físico, na casa; emocional dentro da gente; financeiro, de organização e de logística; e ainda lidar com alguém totalmente dependente, o bebê”, contextualiza a psicóloga.
Alguns estudos, destaca a especialista, afirmam que homens têm depressão puerperal, muito embora na maior parte dos casos isso ocorra em associação à mãe, quando ela é acometida pela doença. “Há a mudança do ‘filho’ que vira pai, as preocupações de organização financeira, restrição do tempo para si próprio e tudo isso diante da responsabilidade de cuidar de uma criança”, exemplifica a psicóloga.
Repetindo o gesto descrito por Ferreira Gullar em seu poema “Traduzir-se“, é necessário que os homens migrem do estado do choque, da vertigem, para o estado da escuta, do diálogo e da formulação deste momento crucial, mas radicalmente instável, na vida da família.
Rômulo conta que muitas aflições e medos da companheira Bianca haviam passado despercebidos durante o puerpério. “Sinto que na tentativa de lhe dar carinho e confiança posso ter ouvido menos do que poderia. Aquela coisa de dizer, de maneiras diversas, ‘vai passar, amor’ ou ‘isso logo vai melhorar’, em lugar de estar com a escuta mais ativa, de valorizar os menores reclames para poder ajudar mais”, completa.
Apesar de às vezes não ter praticado a escuta ativa de que se arrepende Rômulo, ele conta que procurava, sempre que possível, deixar sua companheira mais segura. “O meu papel foi o de dar confiança de que ela podia fazer o que desejasse e de que eu estaria ali para dar toda força quando eventualmente ela ‘não pudesse’. Às noites, eu sempre acordava quando a Flora chamava para tentar dar o máximo de descanso a ela”, relembra Rômulo.
Waleska Mendonça classifica o puerpério como um período extremamente difícil, com todas as mudanças hormonais e físicas pelas quais as mulheres passam. “É um período de intensas emoções, de muito choro na maioria dos casos e pode ter irritabilidade, ansiedade, e por vezes as mães até podem passar por sintomas que são semelhantes ao baby blues ou depressão puerperal, em casos mais graves”, descreve a psicóloga. “Nesse período, a mulher está em amadurecimento, não só para o papel de mãe, mas também desse reposicionamento dentro dos diversos papéis que ocupa – amiga, profissional, mãe, filha.”
Muitos desses sentimentos são compartilhados por mães e pais, mas nem sempre formulados no segundo caso. Isso tem a ver com uma série de fatores, o que inclui um certo machismo latente, no qual os homens precisam sempre parecer fortes. Daí a importância deste tipo de relação ser o mais franca e aberta possível. “O diálogo é a base para sustentação de um filho. Pai e mãe vêm de origens diferentes, criações diferentes e por isso eles precisam construir a forma deles de criar e ensinar seus filhos. O ideal é não reproduzir a criação que pai ou mãe teve, por exemplo, mas construírem um ‘terceiro’ elemento, um outro modo: uma junção dos valores da família de ambos que servirá de referencial para a criação da criança que nasceu”, sugere a psicóloga.
Antes do nascimento de Augusto, Cássio e Vanessa planejavam ter mais filhos, mas, durante o puerpério, o casal repensou os planos e deixou para decidir sobre isso daqui um tempo, quando o bebê da casa estiver maior. Apesar dos atropelos e das angústias, há toda a beleza de ter um filho pequeno e tentar aprender, dia a dia, a ser uma pessoa melhor. Se pudesse entrar em uma máquina do tempo e dar a si mesmo um conselho, Cássio diria: “Tente não ser tão ansioso, não olhar tão à frente, aproveite mais as coisas do dia de hoje, sem ficar pensando somente em coisas como ‘quando a cólica do bebê vai passar?’. Isso pode parecer meio bobo, mas tem uma lógica”, sublinha.
Rômulo menciona algo parecido sobre o que diria a si mesmo depois de entrar nesta hipotética engenhoca de volta ao passado. “Meu conselho para aquele Rômulo? Cuida de ti, seja melhor para ti, para poder ser também melhor para os outros. Quando se é pai é isso que se quer, ser melhor nas relações.”
Os versos finais do poema de Gullar, “Traduzir uma parte / na outra parte / – que é uma questão de vida / ou morte – / será arte?”, trazem um pouco do puerpério, da necessidade de transformar a vertigem, da rotina bagunçada de um casal com um recém-nascido, em linguagem, para alimentar o acolhimento da família. É fazer do sofrimento momentâneo um período de compreensão, companheirismo e fortalecimento físico e emocional às mulheres que recém deram à luz, mas também aos pais que podem se sentir inseguros diante das novas e urgentes responsabilidades.
Por isso o apoio familiar é essencial. “A rede de apoio da família cuida da mãe. Porque se a mãe está bem cuidada, terá energia e disponibilidade para cuidar bem do bebê”, frisa a especialista no tema. Uma rede de apoio mais ampla também ajuda os pais a se tornarem mais confiantes. Porém, vale lembrar, que os erros e sentimento de incompetência são normais em um período de aprendizado para todos e que sempre é possível aprender e melhorar. “Acertar e errar, ter desconforto e insegurança são sentimentos esperados da paternidade e da maternidade. Então, está tudo bem se sentir assim!”, complementa a psicóloga.
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