A episiotomia de rotina deveria ser extinta. Entenda o porquê

Pelo Código de Ética, não se pode realizar qualquer procedimento sem a autorização do paciente, exceto se houver risco evidente de morte

Camilla Hoshino Publicado em 30.11.2017
Foto em preto e branco mostra mulher deitada na maca, com as duas mãos no rosto.

Resumo

Popularizada como método para acelerar partos vaginais e evitar lacerações perineais graves, a episiotomia pode e deve ser extinta. É o que defendem alguns obstetras.

Ao chegar à maternidade em trabalho de parto, logo se iniciam os procedimentos de rotina: medicamentos na veia e exame de toque para acompanhar a dilatação. Em caso de alterações, métodos de aceleração podem entrar em cena, como a aplicação de ocitocina sintética e o rompimento manual da bolsa aminótica. Durante o período expulsivo, (segunda fase do parto, da dilatação cervical total ao nascimento do bebê) a mulher se deita de costas e começa a fazer força até médicos realizarem a episiotomia e o bebê ser retirado para aspiração e limpeza.

A descrição direta e objetiva da rotina de um nascimento hospitalar pode causar certo estranhamento e estar distante das recomendações de organizações nacionais e internacionais de saúde, mas retrata a realidade de 53,5% dos partos vaginais, em que médicos realizam a episiotomia. Os dados são da pesquisa “Nascer no Brasil: Inquérito Nacional sobre Parto e Nascimento”, de 2014, que também apontava a prática de cesáreas em 52% dos partos no país.

“A episiotomia é uma incisão cirúrgica, na região perineal (entre a vagina e o ânus), com o objetivo teórico de facilitar o parto”

É o que esclarece a obstetra Melania Amorim, pós-doutora em Tocoginecologia pela Unicamp e em Saúde Reprodutiva pela Organização Mundial de Saúde (OMS). No entanto, de acordo com ela, não há evidências científicas que comprovem sua necessidade.

Ao lado de outros obstetras que defendem a humanização do nascimento, a médica acredita que seja possível nunca realizar o procedimento. “Mesmo podendo questionar a metodologia utilizada pela OMS que ainda aceita a episiotomia em 10% dos casos, se a taxa no Brasil é de 54%, não estamos seguindo as recomendações. O que significa que muita gente ainda está fazendo episiotomia de rotina”, diz Melania Amorim, que abandonou a prática há décadas.

Entre as consequências da episiotomia em curto prazo, segundo o obstetra e  Conselheiro da Rede pela humanização do parto e do nascimento (REHUNA), Braulio Zorzella, estão a dor, as chances de infecção e a formação de hematoma na região. “Em longo prazo pode ficar cicatriz ou fibrose [aumento das fibras do tecido], que às vezes deixa dor na relação sexual ou muda o aspecto estético da vulva”. Além disso, ele ressalta que pode haver desdobramentos psicológicos como a sensação de mutilação durante o nascimento do bebê.

“Fui violentada”

Esse foi o sentimento apresentado pela empresária e terapeuta holística Thaís Alvarez Ribeiro, de 29 anos, ao dar a luz ao filho Martim, hoje com cinco anos. “Fiquei magoada, sentindo uma impotência gigantesca e não voltei para fazer o acompanhamento pós-parto”, conta a mãe, que, na época, avisou ao seu ginecologista que não gostaria de realizar a episiotomia, por considerar agressiva e desnecessária.

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arquivo pessoal

Thaís Alvarez Ribeiro, de 29 anos e o filho Martim, de cinco anos.

“Conversamos superficialmente e ele me garantiu que não seria necessária [a episiotomia], então eu fiquei tranquila”, conta Thais, que, em 2012, se mudou para a cidade de Marília, interior de São Paulo, justamente para tentar garantir um parto humanizado e estar perto da família.

“O médico já estava impaciente, pois precisava cumprir outra agenda. Eu estava deitada, de barriga para cima, o que já dificulta muito. Me colocaram numa maca. Mas, na hora do parto, você se entrega e deixa as coisas passarem, pois só está concentrada em se conectar com o bebê.

“Como a dilatação total demorou em torno de 1 hora, o médico fez a episiotomia sem me consultar, mesmo sabendo que eu não queria”

Como o corte começou a coçar e doer muito, Thaís foi a outra ginecologista e descobriu que estava infeccionado. “Não conseguia fazer xixi, nem me sentar. O que era para ser uma semana com 100% de cuidado ao bebê, se tornou um tormento, pois meu corpo estava doente”.

Após a retirada dos pontos e a cicatrização, que durou semanas, ela conta que ainda sentia dor e havia restado uma cicatriz, que só sairia meses depois. Apesar disso, outras marcas se mantiveram na memória da terapeuta: “Sinto que fui extremamente violentada”.

Origem

“A episiotomia coincide com o advento da hospitalização, da concepção de que o parto era perigoso para a mulher e do pensamento de que o corpo feminino era essencialmente defeituoso”, explica Melania Amorim. A intervenção médica, portanto, foi introduzida por se acreditar que a mulher ou o bebê poderiam sofrer danos graves, mesmo sem evidências.

A obstetra e pesquisadora resgata a história da episiotomia: “Ela foi originalmente proposta na Europa, no século XVIII, para ajudar o desprendimento fetal em partos difíceis, mas, naquela época, não havia anestesia ou métodos de assepsia”.

“A episiotomia se tornou popular com a hospitalização do parto, no século XX”

Ela ressalta que em 1990, apenas 50% dos partos nos Estados Unidos eram hospitalares. Em 1940, o número aumenta para 70%. Em seu blog, Melania Amorim discorre sobre o tema e coleta depoimentos de mulheres que se sentiram violentadas pela prática.

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Istock

“A episiotomia coincide com o advento da hospitalização, da concepção de que o parto era perigoso para a mulher e do pensamento de que o corpo feminino era essencialmente defeituoso”.

Já no Brasil, 1976 foi o primeiro ano em que os partos hospitalares superaram os domiciliares, como relembra Braulio Zorzella. “A partir de então, a episiotomia passa a ser muito utilizada, por questão de espaço e para acelerar o parto”, aponta.

O obstetra também explica que, nesta época, como a ciência obstetrícia acreditava que o período expulsivo do bebê precisava ser rápido, por motivos de segurança (aproximadamente 15 minutos), vários métodos de aceleração foram introduzidos, entre eles a ocitocina sintética, o rompimento artificial da bolsa amniótica, a Manobra de Kristeller (pressão na parte superior do útero) e a episiotomia como consequência da manobra, por forçar excessivamente o períneo e aumentar as chances de lacerações de terceiro grau.

“A manobra de Kristeller, que era um dos motivos para o uso da episiotomia, traz mais prejuízos do que benefícios, como a fratura de costelas, lesão de fígado e baço, além de lesão cerebral e ocular”, relata Zorzella. A manobra foi banida pela OMS, pelo Ministério da Saúde e é proibida em diversos países.

“A partir disso, a episiotomia não precisa mais ser colocada como justificativa para a proteção do períneo, já que evidências começaram a mostrar que há um enorme número de períneos íntegros (cerca de 70%) e os 30% que tem laceração, utilizando-se o parto humanizado, são menores do que as causadas por uma episiotomia”, afirma.

Preparo

Braulio Zorzella explica que muitas mulheres possuem naturalmente uma boa elasticidade e consciência corporal – com capacidade de realizar força de aperto e relaxamento -, portanto, não precisam de qualquer preparo para evitar lesões mais graves na hora do parto. “Para mulheres com tensão ou descoordenação perineal, é possível realizar massagens manuais ou com o auxílio de aparelhos fisioterapia”.

O que é Epi-no? É um do aparelho composto por um balão de silicone inflável conectado a um medidor de pressão. Dia após dia, ele é introduzido na vagina e vai sendo inflado lentamente, proporcionando o alongamento da musculatura de forma gradual, melhorando a elasticidade do períneo e simulando a cabeça do bebê

“O Epi-no é apenas um dos aparelhos que existem e é recomendado em alguns casos, não para todas as mulheres”, afirma Zorzella. O médico ainda reforça que essa preparação não está relacionada ao corte, mas à própria metodologia do parto.

Para evitar a episiotomia, Melania Amorim atenta que é necessário, desde o pré-natal, elaborar um plano individual de parto, deixando bem claro ao obstetra os desejos da gestante.

“Pelo Código de Ética não se pode realizar qualquer procedimento sem a autorização do paciente, exceto se houver risco evidente de morte, o que não é o caso”

 

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