Quando “todo mundo já tem”, negar o primeiro celular pode doer — nas famílias e nas crianças. Vicente, de 8 anos, olha para os amigos brincando. Mas não é no escorregador ou na quadra que ele se sente excluído. “Meu filho é a única criança que ainda não tem celular, nem permissão para jogar online”, relata a mãe Tânia de Sousa. “Me sinto culpada por vê-lo triste, mas resisto. Só não sei até quando. Fico na dúvida do que é pior: liberar o celular ou vê-lo nessa situação.”
Essa reportagem faz parte da série “Crianças e celular”, que mostra histórias reais de famílias e traz o olhar de especialistas para falar dos desafios do uso do dispositivo, um assunto que desperta dúvidas, culpa e, sobretudo, o desejo de acertar.
Leia aqui a primeira reportagem da série que fala dos incentivos para regulamentar o setor e mostra a opinião das crianças sobre o tema.
O condomínio com área verde e muitas crianças onde a família de Vicente mora não foi suficiente para impedir a atração pelo celular. Lá, os amigos se reúnem para, cada um no seu aparelho, acessar jogos on-line, conta Tânia. “São jogos de guerra, luta, violentos, com chats online com outros jogadores. Portanto, acho perigoso para uma criança, por isso proíbo.”
Quando a maioria das crianças já tem celular e acesso aos aplicativos mais populares, adiar esse passo faz com que muitas mães e pais se vejam num dilema:
- Permitir o uso e lidar com os riscos à saúde emocional e ao bem-estar;
- Ou negar o aparelho, mas enfrentar o isolamento social, a tristeza e angústia da criança.
Transformando o “não pode” em “vamos fazer diferente”
Rodrigo Nejm, doutor em psicologia social e especialista em educação digital no Instituto Alana, e a pediatra Bruna Cappellano Casacchi sugerem alguns caminhos para acolher a frustração das crianças e também para propor a elas alternativas. Assim, a ideia é encontrar as dicas que se adequem à realidade de cada família.
1. Coloque os riscos em perspectiva
Antes de ceder à pressão ou à culpa, é importante que os adultos entendam que os prejuízos do uso precoce do celular são maiores do que a sensação momentânea de exclusão. Essa consciência ajuda a sustentar decisões mais firmes.
2. Acolha os sentimentos da criança
Valide as emoções do seu filho, reconhecendo a tristeza e a sensação de exclusão sem desmerecer o que ele sente. Dizer “eu entendo que é difícil ver seus amigos com celular” ajuda a acolher antes de impor limites.
3. Reforce os motivos da decisão
Converse e explique que não dar um celular nesse momento é uma forma de cuidado e amor. Mostre que a decisão tem a ver com proteção e equilíbrio, e não com punição. É importante que a criança entenda que cada família faz escolhas diferentes. Isso ajuda a construir segurança emocional e senso de identidade.
4. Lembre que o pertencimento não depende do consumo
Ter amigos não está ligado à posse de um celular, mas à convivência, respeito e troca. Essa é uma boa oportunidade para conversar sobre consumismo e valores.
5. Promova momentos desconectados e divertidos
Crie espaços de diversão em família longe das telas, mostrando que isso é possível. Pode ser cozinhar juntos, andar de bicicleta, montar uma barraca na sala, fazer piquenique. E lembre-se: os adultos devem ser o exemplo.
6. Estimule o brincar livre e a criatividade
Incentive esportes, jogos de tabuleiro e outras formas de entretenimento que favoreçam a imaginação e a socialização. Lunetas sugere algumas opções: brincadeiras para qualquer hora, atividades para fazer em família, brincadeiras indígenas, sugestões para se divertir até cansar e dicas sensoriais.
7. Amplie o círculo social
Quando as crianças do entorno só brincam com telas, busque outras redes de convívio: filhos de amigos, primos, colegas de atividades extracurriculares ou clubes esportivos.
8. Ofereça alternativas
No caso de todos os amigos se reunirem para jogar algo fora da classificação etária, sugira uma tarde de videogame na sua casa, com jogos offline, apropriados para a idade. Se o problema é “ficar de fora” das conversas, combine o uso do telefone fixo ou o empréstimo do celular dos adultos para ligações e recados pontuais.
9. Busque apoio
Converse com outras famílias. Isso pode trazer alívio e até inspirar decisões conjuntas sobre o uso de celulares entre as crianças da mesma faixa etária.
O caminho é coletivo
Nenhuma família deveria enfrentar essas questões sozinha, afinal esse é um problema social e coletivo, segundo Rodrigo Nejm. “É essencial um pacto entre as famílias”, afirma. “A decisão conjunta de não dar celular até determinada idade permite uma entrada no mundo digital mais saudável e acaba com a comparação social e a sensação de exclusão das crianças.”
Portanto, mais do que uma união contra a tecnologia, o objetivo é priorizar o bem-estar e o desenvolvimento saudável das crianças.
“É preciso priorizar a maturidade emocional, neurológica e cognitiva de cada faixa etária e incentivar o uso consciente do celular, tambémentre os adultos”, afirma a pediatra Bruna Cappellano Casacchi. “A criança tem a necessidade de pertencer a um grupo, faz parte do seu desenvolvimento, mas isso precisa acontecer com responsabilidade.”
Movimentos de famílias que se unem para pensar o uso de telas por crianças e adolescentes têm crescido no Brasil e no mundo. Conheça alguns.
Movimento Desconecta
Criado em 2024 por um grupo de mães e pais de uma escola particular de São Paulo, propõe um compromisso entre todas as famílias: adiar o primeiro smartphone até os 14 anos e o acesso a redes sociais até os 16 anos. A ideia é reduzir a pressão social que leva muitos a cederem ao “todo mundo já tem”, incentivando comunidades a criarem pactos locais para adiar o acesso dos jovens às telas.
Smartphone Free Childhood
Após a viralização de um grupo de WhatsApp no Reino Unido, a rede cresceu e hoje reúne cerca de 350 mil pessoas em defesa de uma infância mais saudável. A iniciativa chegou a países como Nova Zelândia e África do Sul, e as famílias já firmaram mais de 157 mil pactos para adiar o primeiro celular em diversas cidades. A mensagem é direta: “resgatar a infância dos gigantes da tecnologia”.
Wait Mate
Na Austrália, mães e pais criaram o grupo para incentivar a espera pelo menos até o ensino médio antes do smartphone. Ele organiza acordos on-line por turma. Quando ao menos dez famílias de uma mesma classe aderem, elas formam uma rede, trocam experiências e compartilham estratégias para sustentar o acordo coletivo.
Quando o pacto coletivo ainda não aconteceu
Para Rodrigo, “não é necessário nem recomendado que crianças menores de 12 anos tenham celular próprio.” Quem já têm, “se expõem a conteúdos impróprios para a idade e a ambientes que podem trazer prejuízos.” Então, ele recomenda manter a decisão de não ceder, mesmo se houver culpa.
A pediatra Bruna Cappellano Casacchi explica que crianças pequenas não têm maturidade para avaliar consequências de longo prazo. Por isso, “é papel dos adultos colocar limites e explicar que tudo tem seu tempo. A mediação precisa vir dos pais, não da percepção da criança.”
“Saber apertar botões é muito diferente de ter discernimento, capacidade crítica e maturidade, tanto cerebral quanto emocional, para usar determinados dispositivos”, explica Rodrigo. “Famílias que resistem a dar um celular aos filhos podem se sentir indo contra a maré, mas essa maré está começando a mudar.”
Então, para o especialista, é preciso compreender “as várias camadas de perigo” envolvidas no uso de telas — que vão muito além do conteúdo acessado. Elas incluem o contato com desconhecidos e o acesso irrestrito a ambientes digitais que exigem maturidade emocional que as crianças pequenas ainda não têm.
O momento certo — ou possível — para o primeiro celular: um FAQ rápido
Qual a melhor idade para dar o primeiro celular?
Não há número mágico, mas abaixo de 12 anos não é necessário nem recomendado ter aparelho próprio. Prefira acesso compartilhado, configurado e curto, com mediação.
E se meu filho sofre por ser “o único” sem?
Acolha, explique os porquês, ofereça alternativas e busque acordo coletivo com outras famílias.
Como garantir segurança online infantil?
Medidas de proteção costumam ser melhores nas versões infantis dos aplicativos, portanto ative os perfis infantis, filtros, bloqueios e limite de tempo; escolha conteúdos por classificação indicativa e evite chat aberto.
Como saber se um aplicativo é ideal para a idade da criança?
A classificação indicativa serve como parâmetro de informação sobre o teor dos conteúdos disponíveis em filmes, jogos e plataformas.
Dá para introduzir tecnologia de forma gradual?
Sim: contatos assistidos em aparelhos dos adultos, tempos curtos, revisões mensais e, aos poucos, mais autonomia — conforme maturidade digital.
Essas recomendações fazem parte do Guia sobre usos de dispositivos digitais, do Governo Federal.
Não é tudo ou nada
Dar um celular não precisa ser uma decisão “tudo ou nada”. Assim, para Rodrigo Nejm, é possível criar um percurso gradual, em que a criança vai aprendendo a lidar com as telas de forma segura e equilibrada.
“Antes de ganhar um dispositivo, a criança pode ter contatos pontuais com a internet pelo aparelho dos adultos responsáveis. Pode ver televisão com streaming ou tablets, sempre configurados de acordo com a faixa etária e por tempos curtos”, indica o especialista. “Criar acessos conforme a criança se desenvolve e amadurece ajuda a incorporar limites, regras e noções de segurança on-line, construindo autonomia de forma saudável.”
Para Bruna Cappellano Casacchi, “quanto mais cedo a criança tem acesso irrestrito às telas, maior o risco de vícios e de perda de interesse em brincadeiras físicas e atividades criativas”. Portanto, o desafio, segundo ela, é “encontrar formas de introduzir a tecnologia sem abrir mão de experiências fundamentais da infância, garantindo que o uso do celular seja proporcional à maturidade, habilidades críticas e digitais da criança”.
Como criar um pacto coletivo na escola do seu filho
O Movimento Desconecta indica um passo a passo para ajudar mães e pais interessados em mudar a realidade da sua comunidade. Pelo site, é possível se inscrever para receber materiais e mais orientações.
1- Forme um grupo de trabalho: convide mães e pais que compartilham da mesma preocupação para formar um grupo;
2- Envolva a comunidade: busque pessoas com filhos de anos e faixas etárias variadas. Quanto mais diversa a mobilização, mais forte será o impacto na comunidade;
3- Implemente a pesquisa: o Movimento Desconecta disponibiliza uma pesquisa online já pronta. A intenção é mapear o uso e conhecer a opinião das famílias sobre o acordo;
4- Busque apoio da escola: agende uma reunião, mostre os resultados da pesquisa e dialogue sobre como a escola pode apoiar;
5- Campanha de conscientização: aprofunde o diálogo com um número maior de famílias da sua comunidade escolar. O Desconecta também ajuda a pensar em ações, eventos e campanhas;
6- Promova a assinatura do acordo: quando o grupo sentir que é o momento de transformar o engajamento em um compromisso, é hora de planejar a campanha para assinatura do acordo.
