Pikler: conheça a abordagem educativa baseada no vínculo afetivo

A psicóloga Rita Góes Bezerra de Moraes, da Rede Pikler Brasil, explica os principais fundamentos desse olhar para a educação infantil e a primeira infância

Larissa Domingos Publicado em 23.06.2016
imagem em preto e branco. Um bebe deitado e sua mãe muito próxima olhando para ele
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Resumo

Para Emmi Pikler, o carinho e o cuidado atento nos primeiros anos de vida é responsável por estabelecer a segurança que vai construir as bases de autonomia da criança até a vida adulta.

O cuidado amoroso, com o qual se cria uma relação de confiança e interação com o bebê, traz benefícios ao desenvolvimento da criança. E é exatamente este um dos princípios básicos da abordagem de educação infantil desenvolvida por Emmi Pikler. Uma pediatra húngara que criou um novo paradigma sobre os cuidados com a primeira infância.

O que é abordagem Pikler?

Nascida em 1902 e falecida em 1984, Pikler deixou como legado educacional uma maneira sensível e ética de cuidar de crianças – principalmente as de zero a três anos – de forma coletiva, ou seja, em creche, escola, maternidade ou abrigo, por exemplo. O trabalho de Pikler tem foco no desenvolvimento neuropsicomotor da criança a partir do movimento livre e, sua abordagem, possibilita que o cuidador entenda a criança e estabeleça um vínculo com ela.

Em 1946, logo após a Segunda Guerra Mundial, Emmi Pikler fundou o Instituto Lóczy, em Budapeste, um orfanato para acolher bebês e crianças pequenas. O orfanato se transformou em uma creche, onde até hoje acontecem atividades de pesquisas sobre a infância. A instituição com o nome da rua onde se encontra (Lóczy), agora é chamada por Instituto Pikler e é dirigida pela psicóloga infantil Anna Tardos, filha de Emmi Pikler.

A chamada abordagem Pikler-Lóczy, junção dos nomes da pediatra com a de seu instituto, ficou conhecida pela maneira de cuidar de crianças em ambientes coletivos com foco na atenção e interação, bem como na liberação dos movimentos do bebê e orientação de sua autonomia.

Para falar de forma mais aprofundada sobre tal abordagem, seus princípios e ensinamentos, conversamos com Rita Góes Bezerra de Moraes. Ela é psicóloga clínica que se divide entre o atendimento em seu consultório, no Rio de Janeiro, e seu trabalho com a Rede Pikler Brasil. A instituição acompanha iniciativas Pikler em diferentes partes do país. Além de fazer a ponte entre o Brasil e a Rede Pikler Nuestra America (da América Latina), a Associação Pikler da França e o Instituto Pikler de Budapeste. Confira abaixo a entrevista!

Princípios relevantes da abordagem Pinkler

  • O bebê é um sujeito competente que necessita vivenciar a liberdade de movimentos, ou seja, as conquistas motoras se dão de “dentro para fora”, respeitando seu tempo e seu ritmo;
  • Para que a criança possa aproveitar esses momentos de atividade espontânea e livre é muitíssimo importante que ela tenha momentos de encontros com a figura de referência nos momentos de cuidado corporal. É muito importante ter clareza que o bebê se constitui psiquicamente sustentado pelo corpo e pela relação com o adulto, sua figura de referência. Aliás, o corpo é a via régia pela qual o sujeito vai começar a se relacionar com o outro;
  • É preciso de estabilidade e continuidade para que, aos poucos, o bebê possa nascer psiquicamente. Por isso, os momentos de cuidados corporais, troca de fralda, banho e alimentação são de suma importância. A dobra do olhar, os gestos e a voz dão um suporte e convidam o bebê a entrar gradativamente em contato com o adulto e descobrir o prazer de estar junto. Assim sendo, nesses momentos de encontro com o adulto é como se o bebê recebesse um aleitamento relacional, que lhe dá o sentimento de segurança e confiança para seguir adiante nos momentos em que precisará ficar sem o adulto por perto;
  • O engajamento e trabalho de equipe por parte dos profissionais que atuam com os bebês e profissionais. Uma grande ênfase é dada ao trabalho de observação do bebê. Para trabalhar com crianças tão pequenas é preciso saber observá-las e saber o que esperar delas, de acordo com a fase de desenvolvimento;
  • Não existe um cuidador sozinho, é preciso que haja uma rede de apoio para sustentá-lo para que ele possa desempenhar de forma profissional e respeitosa sua função. Um dos recursos que o Instituto Pikler utiliza muito para o estudo é o registro audiovisual, que permite que uma cena ou um gesto do educador seja trabalhado com cuidado. Esses vídeos são extremamente ricos, pois ilustram na prática esses conceitos.

Entrevista com Rita Goés Bezerra de Moraes

Lunetas – Há quanto tempo você estuda e trabalha com a abordagem Pikler-Lóczy?

Rita Góes Bezerra de Moraes – Em 2006, quando fui a França fazer um Master em desenvolvimento da criança, tive a oportunidade de conhecer o psiquiatra infantil e psicanalista Bernard Golse, que vem a ser o presidente da Associação Pikler-Lóczy França. Essa associação trabalha desde no início dos anos 80 formando e capacitando profissionais da primeira infância. Em 2007, voltei para o Brasil e, aos poucos, fui criando laços com as pessoas que estudavam a abordagem aqui no país. Em 2011, fui a Budapeste fazer um curso sobre a abordagem e conhecer in loco o Instituto Pikler. E, em 2012, defendi o mestrado em saúde coletiva, tendo sempre a abordagem como postura ética na forma e enquanto pessoa e psicóloga.

Quais são os principais aspectos e características da abordagem Pikler-Lóczy? Ela pode ser considerada como um método de educação?

RGBM – A abordagem Pikler foi inicialmente criada depois da segunda Guerra Mundial para bebês e crianças pequenas que precisavam ser acolhidas no Instituto Pikler, localizado na rua Lóczy, em Budapeste. O objetivo era acolher de forma cuidadosa esses bebês de zero a três anos, em um ambiente coletivo. Assim, um rigoroso trabalho foi sendo implementado pela fundadora e pediatra Emmi Pikler, promovendo de forma visionária um novo paradigma acerca da primeiríssima infância.

Hoje, a abordagem Pikler está longe de ser um método ou uma técnica. É uma concepção e uma postura ética do cuidar.

Esse modo de educar perante o bebê pode ser praticado na creche, na maternidade, em grupos de psicomotricidade ou na formação do profissional da primeira infância.

No sentido de desenvolvimento infantil, por que esta abordagem diz que é importante deixar que a criança se movimente livremente?

RGBM – Atualmente, vivemos em uma cultura da antecipação. Muitas vezes escutamos “o bebê ainda não levanta a cabecinha, ainda não rola, ainda não engatinha, ainda não anda”. Cria-se, infelizmente, uma ideia de que o bebê ainda não é. Quando, na verdade, deixa-se de olhar e perceber o quão ativo que é esse bebê. O bebê está exercitando inúmeras habilidades, ele não está preocupado em conquistar novas etapas, ele vive. O bebê nasce com uma tendência inata ao desenvolvimento e à socialização. Mas, para isso, é preciso que o ambiente seja seguro e favorável. De forma que ele possa fazer seu “trabalho de bebê”. E conquistar – no tempo dele – novas posturas e o sentimento de confiança e competência.

É importante que o adulto transmita ao bebê o sentimento de competência, respeitando seu ritmo e tempo.

Como estabelecer um espaço seguro para dar liberdade ao bebê? Berços, “chiqueirinhos” ou cercados, por exemplo, tiram essa liberdade da criança?

RGBM – Trata-se de uma concepção em torno do bebê de que ele é um sujeito competente. Mas é preciso que ele esteja em um ambiente seguro e que não ofereça riscos e perigos. Não se trata de deixar o bebê ou a criança pequena sozinha.

O adulto precisa estar por perto e atento sem, no entanto, interferir continuamente e invadir o tempo do bebê.

O adulto não precisa estimular o bebê. Pois se o ambiente estiver bem preparado é esse espaço que será um convite para que o bebê explore os brinquedos, objetos e outras crianças. Um chão seguro e estável é a base para que ele se sinta em confiança para, aos poucos, explorar novas posturas. O bebê repete inúmeras vezes, em diferentes momentos, os movimentos que estão despertando curiosidade.

Por isso, um ambiente estável e firme é essencial. Deixar o bebê em um chão mole ou acolchoado pode parecer seguro para o adulto, que tende a achar que ele não vai se machucar. Por outro lado, a criança tem uma base instável. O que dificulta que ele tome coragem para experimentar novas posturas.

Assim sendo, colocar o bebê em “chiqueirinho” ou parquinho cercado pode ser, na verdade, bastante enriquecedor pois ele está em um ambiente seguro. Existe um contorno onde ele pode explorar os seus brinquedos preferidos que estão ao seu redor. É importante, para que esse momento seja proveitoso, que a criança esteja bem disposta e alterne encontros com o adulto de referência.

O bebê ou criança pequena só consegue explorar o ambiente se tiver recebido uma segurança afetiva para dar conta desse momento de exploração.

Às vezes, criamos uma ideia equivocada relacionada com a cerca, como se ela desse o sentimento de liberdade. Esse conceito é um pensamento de adulto que atrela a ideia de prisão com grade, de falta de liberdade, cerceamento. Mas, na verdade trata-se de um ambiente que proporciona um contorno, uma continência, um sentimento de segurança e proteção.

O que deve ser feito para se respeitar o tempo dos bebês em relação às atividades psicomotoras?

RGBM – É muito importante não antecipar posturas que ele ainda não conquistou por conta própria. Por exemplo: colocar o bebê sentado, quando ele ainda não descobriu por conta própria essa posição. É como colocar uma pessoa para andar de bicicleta sem antes ter experimentado andar de bicicleta com rodinhas. Como o bebê não se sente seguro em uma posição, ele vai se tornar tenso e se curvar para sustentar sua coluna, que talvez ainda não esteja pronta para tal postura. Quando estamos inseguros não podemos prestar atenção ao nosso redor. É preciso se sentir seguro na postura para poder relaxar e ter a possibilidade de explorar o ambiente.

Além do mais, é muito mais rico ter o sentimento de que se conquistou a postura do que ser auxiliado/invadido pelo adulto (que muitas vezes é ansioso). E não aguenta ver o bebê trabalhando e descobrindo novos movimentos. Para se colocar de bruços, o bebê demora dias, ou até semanas, e repete os movimentos inúmeras vezes. Ele chega a suar, o que não significa que não esteja sendo prazeroso.

Muitas vezes, o que acontece é o adulto ‘dar uma forcinha’ para ele rolar e se colocar de bruços, não dando a ele a oportunidade de descobrir por conta própria.

O que diz a abordagem Pikler-Lóczy sobre o brincar?

RGBM – É preciso disponibilizar brinquedos que despertem naturalmente a curiosidade e o prazer de agir do bebê. O primeiro brinquedo de exploração e descoberta do bebê pode ser um pequeno lenço quadrado de bolinhas, por exemplo. Sendo leve, o bebê consegue apreender o lenço, trazê-lo para perto do rosto sem se machucar, fixar o olhar nas bolinhas e repetir diversas formas de interagir com ele.

Em um primeiro momento, o bebê brinca com seu próprio corpo e explora o rosto do adulto, ou suas próprias mãos podem ser uma brincadeira riquíssima. Olhar e estar perto pode ser de uma grande riqueza para sua constituição psíquica e sentimento de ser alguém. Em um segundo momento, o bebê começa a interagir com brinquedos. Uma pequena bola fácil de agarrar, figuras de pano ou pelúcia, bacias leves, pequenos potes brilhosos que servem de espelho, potes para brincar de esvaziar e depois encher, esconder/aparecer com o pano ou lenço.

É por meio desses brinquedos que a criança pequena vai começar a interagir com o outro. São pequenos encontros quando ela já se desloca no espaço e tira a bola da mão do colega. No princípio, a criança pequena suporta que o objeto seja tirado de sua mão. Mais tarde, ele será alvo das primeiras disputas e conflitos. Uma dica boa para amenizar essas disputas é ter vários brinquedos idênticos. Se houver apenas uma bacia ou bola para um grupo de criança, a probabilidade de surgir disputas é grande. Tendo uma variedade do mesmo objeto, surgem alternativas e a possibilidade de brincar junto, cada um com o seu brinquedo.

A abordagem Pikler-Lóczy se estende aos cuidados e vínculos dentro de casa?

RGBM – A abordagem foi criada e desenvolvida para crianças em ambientes coletivos. Inicialmente surgiu em um abrigo e hoje em dia existem vários desdobramentos, como o trabalho em creche. A vivência de pai e mãe com seu filho, é uma experiência completamente diferente, permeada pela história, valores, cultura de cada um. Atualmente vivemos em uma sociedade em que muitas pessoas sabem o que é o melhor para seu filho: o pediatra, o psicólogo, o psiquiatra, etc. e os pais acabam destituídos de sua função.

É realmente muito importante que os pais acreditem na sua sensibilidade de pais, de que eles são as pessoas mais indicadas para saber o que é melhor para suas crianças.

Momentos de encontros com trocas de olhares e gestos delicados, a constância, a rotina, o prazer de estar junto, o respeito ao tempo do bebê, a espontaneidade. São ingredientes que, sem sombra de dúvidas, enriquecem o sentimento de confiança, continência e cumplicidade.

Como a relação de afetividade e vínculos pode ser estabelecida em uma creche ou escola?

RGBM – O fato do bebê ou criança pequena estar em uma creche ou escola não é tarefa simples para ela! Diferentemente do ambiente familiar, na creche ela precisa descobrir o que é estar em grupo e como conviver com outros. Se para nós adultos estar em grupo pode ser um desafio (lembrem das viagens em grupo e/ou excursão), para a criança pequena, que ainda não tem clareza do seu sentimento de unidade de ser, pode ser muito complexo, principalmente porque ela já tem noção de que precisa do adulto para estar bem. Assim sendo, o fato dela ter um só educador, que é uma figura de referência e que ela sabe que pode contar, é realmente muito “assegurador”.

Quando existem muitos adultos em um mesmo ambiente, a criança pode ficar confusa de não saber com quem contar efetivamente.

O fato de ter momentos especiais a dois, como o momento da troca de fralda ou da refeição, podem ser extremamente prazerosos e de segurança. É preciso que sejam momentos de qualidade.

Um dos princípios desta abordagem é saber “ouvir” o bebê ao cuidar dele, como também saber responder ao seu “pedido”. De que forma essa assistência deve acontecer?

RGBM – A observação profunda dos gestos, da direção do olhar, das expressões faciais. E, claro, dos sons de satisfação ou insatisfação de um bebê, desde o momento em que nasce, é a verdadeira escuta. E, ao ouvir o bebê, podemos ponderar e falar com firmeza. Os bebês recém-nascidos escutam a forma que nos dirigimos a eles. Desde o quinto mês da gestação, eles ouvem sons. Com carinho e firmeza podemos ser claros e respondermos às demandas da criança.

A abordagem Pikler-Lóczy é usada por muitas escolas no Brasil? O que falta para que ela seja mais conhecida e implementada em mais instituições?

RGBM – O Instituto Pikler em Budapeste toma muito cuidado com o conteúdo e como é transmitido o conhecimento. Consequentemente, a Rede Pikler Brasil tem se preocupado bastante em acompanhar as diferentes iniciativas em torno da abordagem Pikler no Brasil. Pelo fato de a abordagem Pikler ser densa e complexa, e por questões que esbarram com fatores culturais e institucionais, é realmente fundamental que a abordagem sirva de inspiração para reflexão, estudo, concepção e construção do trabalho com bebês de zero a três anos.

Ainda se pensa em professores só para o trabalho pedagógico, e nos auxiliares para os cuidados.

A abordagem Pikler não pode e nem deve ser replicada de forma idêntica. Seria um grande equívoco. Talvez, o que seja o mais difícil para instituições que queiram se inspirar na abordagem Pikler é a adoção do “adulto de referência”. A estrutura de gestão e funcionamento normalmente muito se ressente de que um único educador tenha todos os cuidados com a mesma criança.

Ainda se pensa em professores para trabalho pedagógico e auxiliares para os cuidados. Aos poucos, e de forma muito cautelosa, a abordagem vem se difundido. Graças ao trabalho incansável dos membros da Rede Pikler Brasil, que tem incentivado as pessoas interessadas com a abordagem a estudarem e se reunirem para discutir o trabalho com os bem pequenos em suas respectivas instituições.

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