Já são 10 casos de racismo e ódio denunciados contra o jogador desde 2021. Como ficam as crianças que assistem a essas cenas e acompanham a repercussão do tema?
Não é um caso isolado: já é a 10ª vez que Vinicius Jr, atacante do Real Madrid, denuncia violências raciais sofridas durante jogos da liga espanhola de futebol. Como ficam as crianças expostas ao racismo nas arquibancadas ou durante as transmissões pela TV?
“Tenho um propósito na vida e, se eu tiver que sofrer mais e mais para que futuras gerações não passem por situações parecidas, estou pronto e preparado”, escreveu o jogador de futebol Vini Jr. em uma postagem no Twitter, nesta segunda-feira (22). Camisa 20 do time espanhol Real Madrid, Vini tem sofrido uma série de ataques racistas ao longo dos anos, em partidas em diversas cidades da Espanha.
Além de ser ofendido por termos como “macaco” ou “negro estúpido”, torcedores já desejaram a sua morte. Entre as imagens registradas pela Agence France-Presse no último domingo (21), enquanto os adultos nas arquibancadas agrediam Vini Jr. com palavras racistas e gestos ofensivos, foi possível ver reações de crianças no estádio perplexas por não entenderem a situação até participações na série de ofensas direcionadas ao jogador.
Ambientes competitivos podem estimular o indivíduo a aderir a movimentos de manada violentos – ainda mais quando há certeza de impunidade, explica Ediane Ribeiro, psicóloga e pós-graduanda em neurociências e comportamento. A especialista lembra que o racismo é um comportamento social aprendido desde a infância, e que as crianças podem desenvolvê-los no futuro ao vivenciarem situações de violência racial no dia a dia. “O adulto não se tornou um racista dentro do estádio. O que constrói alguém racista são experiências cotidianas sutis, como piadas ou olhares diferenciados, ou mais violentas, como essa do estádio”
Para Breiller Pires, repórter e jornalista esportivo na ESPN, o futebol é lar de uma cultura muito tóxica e masculinizada de normalização de violências, com a qual meninos que entram para o esporte têm contato desde cedo. “Nas escolinhas de base dos clubes, a criança é incentivada a se impor na base da força e da hipercompetitividade, que muitas vezes é desproporcional para a faixa etária.”
“Às vezes uma criança é educada para não ser preconceituosa, mas, como no futebol existe essa licença, ela se sente autorizada a reproduzir violências.”
“Sabemos como as crianças aprendem com o exemplo. Não adianta falar sobre educação antirracista, inclusiva, quando na prática excluímos o que é diferente e mantemos uma hierarquia racial”, comenta Juliana Prates, psicóloga e colunista do Lunetas. “As crianças estão entendendo que é possível subalternizar o corpo negro numa violência coletiva e institucionalizada. Isso no mesmo país que pune um jogador com protocolos de proteção contra a mulher, mas que não possui protocolos de proteção racial”.
“Não é suficiente ter políticas educativas que privilegiam o contato com a diferença se no cotidiano esportivo extrapolam todos os limites da civilidade, mostrando mais uma vez essa ideia de que o corpo branco é superior ao negro e pode ser ofendido, e expulso, de um jogo de futebol”, continua Prates. “Nesses conflitos, as crianças também se percebem como pertencentes a uma raça: crianças brancas que assistem a violência vão se constituindo como superiores, aprendem que ser racista é válido; enquanto crianças negras vão se sentindo inferiorizadas.”
Campeonatos de futebol reproduzem cada vez mais o racismo de uma forma violenta. Para Helton Souto, um dos fundadores do Instituto DACOR, organização não-governamental que combate o racismo no Brasil, essa prática ataca não só o atleta mas também demonstra como a ideia da dominação eurocêntrica segue enraizada na cultura de alguns torcedores espanhóis. “A falta de punições efetivas e a omissão por parte de organizações ligadas ao futebol na Espanha acabam legitimando regularmente casos como o de Vini Jr.”
Segundo ele, é preciso ir além do debate do racismo individual, pois ele acontece também dentro de instituições, que “precisam ser punidas, com medidas como o fechamento de estádio ou o rebaixamento de clubes”. O esporte, como um espelho da sociedade, também reflete o racismo em campo. “O futebol não fica à margem de questões históricas que levaram europeus a se considerarem superiores às demais civilizações, levando-os a hostilizar especialmente negros e latinos”, argumenta.
Para Souto, quando crianças acessam informações sobre racismo em campo e outras violências entre torcidas do esporte mais popular do Brasil, é necessário, primeiramente, abordar o respeito à diversidade e a cultura da paz e, depois, trazer exemplos que valorizem a identidade da criança negra. “Casos como esse nos obrigam a falar de racismo com as crianças de uma forma mais precoce. Por isso, a conversa precisa estar amparada na questão da convivência das diferenças e de valorizar a criança negra, para que ela não se sinta ameaçada. Nenhuma criança merece isso”.
Considerando que é na infância que as crianças vivenciam as primeiras experiências de racismo, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e o Instituto Promundo lançaram, esta semana, o material Primeira Infância Antirracista (PIA), para abordar a relação de crianças negras e indígenas com os serviços de saúde, educação e assistência social. O objetivo é evidenciar os impactos do racismo no desenvolvimento infantil na primeira infância e capacitar profissionais dessas áreas de serviço sobre práticas antirracistas em suas rotinas. Também foi produzida uma websérie em que influenciadores e especialistas falam sobre parentalidade antirracista.
Para Pires, mudar o futebol começa na humanização da formação de atletas mirins, que devem aprender que algumas condutas não são aceitáveis. “Ele precisa saber que não vale tudo quando o assunto é rivalidade, clubismo e vontade de vencer”. Além disso, segundo ele, também é preciso romper com a cadeia de poder estabelecida nas lideranças do alto escalão. “Javier Tebas, presidente da LaLiga, é uma pessoa branca ligada a movimentos de extrema direita. Para ele o racismo é algo banal. Ainda mais na Espanha, que tem um histórico de normalização do racismo com medidas punitivas muito brandas.”
“A gente sempre vai ficar andando em círculos se não romper essa cadeia de poder. Isso precisa partir da mobilização da sociedade e dos torcedores.”
É preciso extrapolar as regras básicas do jogo “onde vence o melhor”, diz Neilton Júnior, pesquisador doutor do Grupo de Estudos Olímpicos da USP. “Uma vez a serviço de um sistema que mantém o esporte sob domínio de uma classe, gênero e raça específicos, o futebol não pode mais ensaiar qualquer proposta de alteridade”.
“A violência racial no esporte não é uma contradição, mas uma condição coerente com a estrutura social que se quer manter.”
No bate-papo “Racismo e esporte no Brasil: a (hiper)tolerância do esporte ao racismo e seus porquês”, pesquisadores debatem o esporte como espaço de violências ao passo que ele deveria sensibilizar a sociedade contra as opressões. Já a série documental “O negro no futebol brasileiro”, da HBO, traz entrevistas com grandes nomes do futebol e análises de especialistas sobre o histórico do esporte no Brasil e no exterior.
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Daniel Alves, ex-jogador do time espanhol Barcelona e do time mexicano Pumas, está preso preventivamente na Espanha desde janeiro por uma acusação de estupro.