‘Na volta a gente compra’: como falar sobre dinheiro com crianças

Especialistas mostram como trocar respostas automáticas por conversas francas, ensinando limites e criando bons hábitos financeiros desde a infância

Fernanda Martinez Publicado em 21.10.2025
Imagem mostra menino de pele morena e cabelos pretos sentado no chão de um supermercado. Ao fundo, uma estante com produtos de higiene pessoal, como shampoo e condicionador. Ele veste uma camiseta azul marinho com gola amarela. Imagem representa como falar sobre dinheiro com as crianças.
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Resumo

A frase “na volta a gente compra" é comum, mas carrega uma falsa promessa. Especialistas mostram como falar sobre dinheiro com as crianças fortalece vínculos, estimula escolhas conscientes e ensina valores que vão além das finanças.

A promessa vazia da frase “na volta a gente compra” pode frustrar e abalar a confiança das crianças. É o que diz Clariana Barcelos, pedagoga e especialista em educação financeira infantil. Transformar o “não” em conversa sobre dinheiro de forma aberta pode ajudar a lidar com os pedidos insistentes das crianças para “ter” ou “comprar” algo.

“Educação financeira não é sobre negar ou permitir, mas ensinar a escolher”, afirma Clariana. “É formar bons hábitos, desenvolver responsabilidade e compreender o impacto das nossas ações.”

Para a educadora financeira Mariana Pinto, “conversas sobre dinheiro, quando adequadas à idade e à capacidade de compreensão, ajudam os filhos a aprenderem a partir das experiências da família, incluindo seus fracassos e sucessos”. Além disso, segundo ela, também “ensina que não dá para comprar tudo que a criança quer”. “Negar algo para um filho não é agradável, mas é parte do cuidado imprescindível para educar e contribuir para que se tornem adultos responsáveis.”

Caminhos para o “na volta a gente compra”

De acordo com Clariana, é importante combinar antes de sair o que pode e o que não pode comprar (exemplo: 1 item da lista; até R$ X). “No local, retome o acordo se surgir um pedido fora do combinado. Isso traz segurança, regula o emocional e organiza o cognitivo da criança, porque ela já sabe o que esperar daquele passeio”, sugere. “Se ela pedir algo fora do combinado, os pais e as mães podem retomar o acordo feito em casa.”

O que dizer então?

“Hoje não está nos nossos planos comprar isso. Lembra do que foi combinado?”

“Isso não é prioridade agora. O que viemos fazer aqui hoje? Você sabe, certo?”

“Podemos fotografar e colocar na sua lista de desejos. Depois pensamos juntos quando será a hora de comprar.”

“Que tal traçar um plano para você comprar com o dinheiro do seu cofrinho ou da sua mesada?”

As respostas incluem a criança no processo: planejar, esperar e escolher, habilidades centrais da educação financeira. Dessa forma, ela entende que o dinheiro não serve para ter tudo na hora, mas que envolve um processo de paciência e conquista.

Mariana, 6, começou a juntar dinheiro em um cofrinho no início do ano. Ele foi enchendo com moedinhas que ganhava dos pais e dos avós. Seis meses depois, resolveu que era hora de contar quanto tinha e comprar algo que queria há algum tempo: uma boneca bailarina.

“A surpresa boa, que também serviu de aprendizado, foi que a boneca que ela queria estava em promoção”, conta a mãe, Roberta Assis. “Ela ficou muito feliz ao entender que conseguiria fazer mais coisas com aquele dinheiro por conta do desconto. No fim, levou a boneca e um pacote de adesivos.”

Educação financeira para pequenos

Em cada fase, a criança aprende de um jeito, e a educação financeira precisa acompanhar esse processo. Nesse contexto, a especialista Clariana Barcelos sugere atividades para idades distintas, de acordo com as condições de cada família.

Até os 3 anos – Aprendizado pela brincadeira 

É assim que a criança assimila o mundo. Nesse período, ela começa a entender o dinheiro no cotidiano e percebe que ele serve para fazer trocas. 

Atividades:

  • Brincar de mercadinho;
  • Guardar moedas em cofrinhos transparentes;
  • Ter pequenas experiências de compra com dinheiro físico, sempre mediadas pelos adultos, em momentos simbólicos.

Dos 4 aos 6 anos – Aprendizado concreto

A brincadeira continua sendo o principal recurso, mas é interessante que a criança “sinta” o dinheiro. É hora de começar a participar ativamente de tarefas práticas com a família.

Atividades:

  • Elaborar uma lista de mercado de forma lúdica: desenhar os itens, criar quadros dos sonhos ou listas de desejos;
  • Brincar de mercadinho ou alguma profissão que envolva dinheiro, mas agora introduzindo, aos poucos, valores numéricos.

A partir dos 7 anos – Mesada ou recursos simbólicos 

Com a alfabetização, é possível introduzir conceitos estratégicos e vivências reais de escolhas. 

Atividades:

  • Avaliar início da mesada;
  • Usar recursos simbólicos: juntar fichas e trocar por uma experiência;
  • Registrar em um caderno o uso do dinheiro ou das fichas;
  • Brincar com jogos de tabuleiro que envolvam dinheiro.

Falar sobre dinheiro no dia a dia

Para Clariana, quando a família consegue, a mesada pode ajudar a planejar e fazer escolhas. “É uma ferramenta que ensina a criança a gerenciar o dinheiro, a se planejar, a transformar sonhos em objetivos e objetivos em metas.”

O principal sinal de prontidão para lidar com dinheiro, segundo ela, é quando a criança já está em processo de alfabetização e demonstra que:

1. Entende as abstrações de tempo — o que é dia, semana, mês;

2. Tem domínio de operações matemáticas simples e consegue somar e subtrair pequenos valores.

Quando não há verba para mesada, é possível “usar tempo, escolhas e até alimentos para ensinar as mesmas habilidades”, afirma a especialista. “O dinheiro é só um dos recursos. Por exemplo, ao preparar a lista do mercado, envolva a criança nas decisões do que é prioridade e o que pode esperar. Esse movimento ensina planejamento, organização e propósito.”

Outra ideia é trabalhar com recursos simbólicos, como fichas, pontos ou adesivos, que a criança junta e depois troca por algo que deseja fazer, como um passeio no parque, assistir a um filme com a família ou chamar um amiguinho para brincar em casa.

Para quem opta pela mesada, é importante manter o diálogo. “As famílias precisam conversar sobre a finalidade daquele dinheiro, sobre o compromisso envolvido e sobre como fazer escolhas”, aponta Clariana. “Mesada sem critério gera consumismo.”

A especialista recomenda equilíbrio para estipular o valor da mesada, sempre de acordo com o padrão de vida da família e suas possibilidades. “Nem tão pouco que seja impossível conquistar algo, nem tanto que permita gastar sem pensar.”

Mesada para quem?

Em julho deste ano, 30,2% dos brasileiros tinha dívidas ou contas em atraso, segundo dados da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC). Esse foi o maior nível desde setembro de 2023.

A ausência de educação financeira pode ser um dos motivos que leva à inadimplência, somada ao contexto econômico, à taxa de desemprego elevada e aos altos custos de vida. Segundo a pesquisa, o cartão de crédito é o principal instrumento de dívida, e os juros, a inflação e o fácil acesso ao crédito contribuem para esse cenário.

“O conhecimento financeiro adquirido na infância pode ajudar a evitar problemas com o endividamento excessivo”, afirma Mariana Pinto. “Porque falar sobre dinheiro e possibilidades prepara os jovens para diferentes cenários econômicos.”

Assim, “pequenas lições dessa vivência podem ser compartilhadas com as crianças, com cuidado para não gerar insegurança, mas mostrando como priorizar, adiar um desejo ou valorizar o que já se tem”, diz Clariana. “Muitos pais vivem equilibrando os pratinhos, administrando poucos recursos e fazendo escolhas difíceis todos os dias. Eles carregam, na prática, a experiência de como lidar com a falta de dinheiro.”

O mais importante, de acordo com ela, é lembrar que a educação financeira não depende do quanto se tem, mas de como se conversa e do que se pratica em casa. “Quando a criança entende que cada escolha tem consequência, que existem limites e que é possível planejar, estamos formando uma base sólida, com ou sem dinheiro envolvido.”

Dinheiro em sala de aula

Educação financeira não é uma disciplina obrigatória, mas integra a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) como um tema que deve ser tratado de modo transversal nas redes de ensino dentro de outras disciplinas ou projetos pedagógicos. Por isso, algumas escolas incluíram o assunto na grade. É o caso do Colégio Estadual João Bettega, em Curitiba (PR), que tem a disciplina “empreendedorismo” no ensino fundamental II.

Para uma abordagem lúdica, durante um mês, a escola implementou um jogo interativo em que os alunos deveriam cumprir tarefas e fazer lições de casa de várias matérias. Quanto mais exercícios realizados, mais pontos. Eles também ganharam cartões para acessar um aplicativo que simulava caixas eletrônicos. A pontuação conquistada permitia “comprar” experiências, como, por exemplo, cinco minutos de consulta a materiais durante uma prova ou a possibilidade de fazer atividades em dupla.

“Foi um excelente auxílio para a disciplina, que fica apenas em questões teóricas”, conta Luiz Miguel, professor de empreendedorismo. “O jogo oferece uma perspectiva prática que atrai a atenção dos alunos.”

“Não é só sobre aprender a poupar, investir, fazer planilhas de gastos. É sobre ressignificar o dinheiro como ferramenta de escolhas, de liberdade e até de afeto. É transformar aquilo que foi silêncio em diálogo, principalmente com as crianças, que aprendem pelo que a gente fala e também pelo que a gente esconde.” – Clariana Barcelos, pedagoga, escritora e especialista em educação financeira infantil.

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