No Mato Grosso do Sul, os pequenos se relacionam com os poemas do autor pantaneiro na sala de aula e no teatro
Conheça projetos que levam os poemas de Manoel de Barros para a escola e o teatro, e como as crianças de Campo Grande (MS) se sentem ao estudar o poeta conterrâneo.
“Eu gostei tanto do homem sentado debaixo da árvore e dos passarinhos que ficavam com ele”, lembra Miguel, 4, referindo-se à sua interpretação de “Bernardo é quase uma árvore”, um dos cinco poemas do “Poeta do Pantanal” Manoel de Barros que acompanharam o grupo quatro da Emei Eleodes Estevan, de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, durante um semestre inteiro. De janeiro a junho de 2022, os alunos conheceram também os poemas “Sabastião”, “O menino e o rio”, “Um bem-te-vi” e “Os rios começam a dormir”. Miguel acredita que vai se lembrar para sempre do autor.
“Bernardo é quase uma árvore
Silêncio dele é tão alto que os passarinhos ouvem de longe
E vêm pousar em seu ombro”
Depois de perguntar aos professores ideias de temas para trabalhar em sala de aula, a coordenadora pedagógica Iginia Aparecida Areco Roa não teve dúvida ao escolher Manoel de Barros, “um poeta da nossa terra”, define. “Eu conheci seus poemas e me encantei. É uma alegria poder estudar sobre ele e passar para as nossas crianças”.
A professora responsável pela turma, Angélica Lima da Silva Oliveira, pesquisou muito como aproximar a linguagem poética do autor, de modo que os pequenos se encantassem pelo poeta pantaneiro. “Primeiro, eu explicava o que significava as palavras difíceis; depois, eu explicava as frases que não faziam sentido, como uma corrida de um homem montado em um jacaré, no poema ‘Sabastião’. E assim as crianças foram entendendo”, conta.
Como a turma não é alfabetizada por completo, a professora lia os poemas e era repetida pelos pequenos. Como recurso adicional, todo início de aula, Angélica colocava diversas poesias do autor musicadas em uma linguagem para o público infantil, resultado do projeto educativo “Crianceiras”.
Enquanto a cantoria acontecia, objetos eram apresentados para facilitar a interpretação, inclusive um boneco artesanal criado a partir das características físicas de Manoel. Os alunos podiam observar, pegar e conversar com aquele senhor que eles tanto gostaram. “A gente cantava muito aqui na sala e por toda a escola. Manoel de Barros é um senhorzinho de cabelos brancos e óculos”, ressalta João Arthur, 4, em referência ao boneco. Além disso, Angélica recorreu à criatividade para propor trabalhos manuais sobre o tema das poesias, como fazer o chapéu de Manoel, pintar um bem-te-vi, um jacaré, fazer origami de pássaro, e produzir e colar aranhas em desenhos de árvores.
Certo dia, a mãe de um dos alunos ligou para a coordenadora Iginia muito brava porque o filho estava perguntando o que era “ordinário”, palavra que teria ouvido em sala de aula. “Como eu sabia sobre os poemas que a professora estava trabalhando, prontamente expliquei a ela em qual contexto a palavra foi usada e onde estava escrito. A mãe ficou muito feliz em saber que o filho estava aprendendo a linguagem poética e como as palavras podem ser utilizadas de forma diferente”, lembra.
“Naquele jacaré ele apostava corrida com qualquer peixe
Que esse Sabastião era ordinário!”
Ao final do semestre, foi realizada uma exposição para os pais e a comunidade local, ocasião em que os próprios alunos explicaram aos visitantes sobre os trabalhos feitos a partir dos poemas de Manoel de Barros. “A exposição foi muito legal. As pessoas vinham e olhavam tudo, perguntavam e a gente falava com elas. Tinha até um mural com toda a história e fotos dele e da família aqui em Campo Grande e lá no Pantanal”, comenta João Arthur.
Manoel Wenceslau Leite de Barros nasceu em Cuiabá, Mato Grosso, em 19 de dezembro de 1916. Passou a infância no Pantanal mato-grossense e a adolescência em um colégio interno em Campo Grande, onde escreveu suas primeiras poesias. Anos depois de receber o prêmio Jabuti com a obra “O guardador de águas”, em 1889, o autor voltou para a fazenda da família no Pantanal, onde se dedicou à criação de gado até falecer, em 13 de novembro de 2014.
Apesar da idade avançada, Manoel mantinha a infância por perto. Tanto que, durante um evento em comemoração aos 90 anos do autor, uma menina de sete anos perguntou à arte-educadora Ramona Rodrigues se Manoel de Barros era uma criança. Diante da resposta negativa, a menina seguiu inconformada ao saber que era um senhor que escrevia aquelas palavras mais para serem sentidas do que entendidas.
Quando Ramona ganhou o primeiro livro de Manoel, “Matéria de poesia”, também ficou encantada com a escrita dele. Foi o passo inicial para adquirir outros livros e virar uma estudante de suas obras. “Quanto mais eu lia, mais eu ficava encantada com a forma dele falar de assuntos profundos através das coisas mais simples. Daí eu comecei a apresentar para as crianças e elas foram gostando”.
Por mais de duas décadas, ela recita seus versos à frente da oficina de teatro do Ateliê Ramona Rodrigues, em uma atividade chamada “Varal de poesia Manoel de Barros”. Cada participante estuda um poema e apresenta de forma criativa aos colegas de turma. Depois, essas peças são expostas em varais instalados nas ruas, praças e escolas públicas de Campo Grande, “para que o público em geral conheça essas obras tão importantes”, narra.
Theo, 11, que participava do projeto, escolheu seu poema preferido: “Linhas tortas”. Para ele, Manoel de Barros faz jus à alcunha de “Poeta das crianças”, porque “mostra muita criatividade, representando as pessoas através de desenhos e objetos, e linguagem diferente, que não se entende tão fácil logo na primeira leitura”.
“Prefiro as linhas tortas, como Deus. Em menino eu sonhava de ter uma perna mais curta (só pra poder andar torto). […] Eu seria um destaque. A própria sagração do Eu”
Desde sua participação na oficina, Theo não deixou mais de ler obras do autor. O menino levava o assunto para dentro de casa e conversava muito sobre poesia em família. “Minha mãe me acordava todos os dias com a música ‘O menino e o rio’ e até fomos assistir ao espetáculo ‘Crianceiras’ com meus avós”, recorda ele.
Keli Cristina Pedroso Spínola, a mãe de Theo, adora ver as participações do pequeno em declamações de poemas e o incentiva, porque acredita que isso vai fazer com que ele torne o mundo muito melhor. Como ela não teve oportunidade de estudar em sua infância, defende que esse tipo de texto seja mais acessível em todas as escolas. “Fico muito feliz do Theo poder ouvir, expressar e se encher de doçura, o que deveria ser vivenciado por todas as crianças e suas infâncias. Meu filho se torna um menino mais doce, sensível e desperto ao universo ao seu redor, elaborando melhor seus sentimentos”, enfatiza.
Na cidade pantaneira de Aquidauana, desde 2015, também acontece o projeto de extensão dos alunos de Pedagogia da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) “Os despropósitos da poesia: criança e infância com Manoel de Barros”, que tem o objetivo de resgatar o interesse pela leitura entre os alunos das escolas públicas da cidade. Por meio de músicas, leitura e dramatização das obras, brincadeiras e até a confecção artesanal de brinquedos, 236 alunos têm contato com Manoel de Barros e aprendem a gostar de poesia de forma lúdica.
“O contato da criança com o mundo da poesia pode acontecer de diversas formas e todas elas são fundamentais, pois despertam a curiosidade, a sensibilidade, e melhoram o conhecimento”, defende a psicopedagoga Marineusa Rodrigues Leitão.
“Os textos de Manoel de Barros ajudam a criança também a usar a imaginação e apresenta atividades do cotidiano com muita fantasia”
Além de ser um autor local, “seus versos destacam a natureza, as vivências no Pantanal e acontecimentos do dia a dia, com muita simplicidade”. Isso permite que “as crianças de Mato Grosso do Sul se identifiquem com as histórias das poesias”.
Marineusa ressalta que, por mais que a linguagem de Manoel seja de difícil compreensão, ela contribui para a interação da criança com o mundo da escrita. “Mesmo que não saiba ler ainda, a criança já vai tendo contato com as palavras e o significado delas. Quem ensina os poemas às crianças precisa estar ciente de que as histórias são imaginação e sempre ter um dicionário do lado para poder explicar as palavras mais difíceis. Quando a criança começa a entender melhor, ela passa a querer ler sempre mais e mais”, finaliza.
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Em acréscimo à Lei Municipal 3.598/98, que torna obrigatório ter livros de autores locais na biblioteca das escolas, a nova lei 10.364/21 diz que cada escola da Rede Municipal da cidade deve ter em sua matriz curricular, pelo menos, dois livros de autores com domicílio em Mato Grosso do Sul. Além de Manoel de Barros, as crianças terão mais acesso a obras de autores regionais, como Raquel Naveira, Glorinha Rosa, Paulo Coelho Machado e Theresa Hilcar. “São escritores que falam da nossa história, do nosso turismo e da nossa gastronomia. É muito importante que o município tenha um orçamento separado para adquirir esses livros, permitindo que as obras destes autores sejam conhecidas pelos conterrâneos”, declara o vereador de Campo Grande, Ronilço Guerreiro, autor da lei. Para ele, Manoel de Barros é uma inspiração.