Garantir que a internet seja um espaço de mais oportunidades do que riscos, onde as crianças e os adolescentes possam se expressar criativamente e participar de movimentos de cidadania, em vez de só consumir ou compartilhar conteúdo. É esta a meta de quem defende que o ambiente digital precisa de regulamentação. E é em direção a esse resultado que o Brasil deu um passo importante no último dia 5 de abril, quando aprovou no Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) a Resolução 245, que coloca a proteção e a garantia de direitos de crianças e adolescentes no centro do debate.
Além de considerar normas nacionais e internacionais sobre direitos on-line, essa resolução parte de uma seleção das leis em vigor para proteger crianças e adolescentes que também se aplicam ao ambiente digital. E todas as suas recomendações adotam como premissa a ideia de proteção, e não de proibição. Isso quer dizer que todas as crianças e todos os adolescentes devem poder acessar sites, redes sociais, aplicativos, jogos e demais conteúdos e serviços que sejam compatíveis e seguros para sua idade.
A resolução passa a priorizar direitos como os de desenvolvimento, liberdade de expressão e exercício da cidadania. Além disso, quando 96% das crianças e dos adolescentes brasileiros, entre 9 e 17 anos de idade, usam a internet, segundo a pesquisa TIC Kids Online 2023, eles poderão buscar, receber e difundir informação “segura, confiável e íntegra”.
Trata-se de “uma resposta ao desafio de pais, mães, familiares e educadores com relação aos riscos do ambiente digital sem qualquer regulamentação ou padrões mínimos de segurança”, diz Ana Claudia Cifali, coordenadora jurídica do Instituto Alana e conselheira do Alana no Conanda. “Ao mesmo tempo, visa ampliar os meios de conexão e de acesso à informação.”
A resolução reforça o compromisso das plataformas digitais com a transparência, a devida diligência e permite o controle social efetivo de suas ações. Desse modo, o objetivo é privilegiar, em quaisquer decisões, o melhor interesse da criança e do adolescente.
Assim, seus direitos no ambiente digital devem seguir os seguintes princípios:
- da não discriminação;
- do direito à vida, à sobrevivência e ao desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social;
- do respeito à liberdade de expressão e de consciência, ao acesso à informação, à autonomia progressiva e à escuta e participação da criança e do adolescente;
- e da promoção de um ambiente digital saudável e seguro, livre de assédio, discriminação e discursos de ódio.
Inclusão, acessibilidade e conectividade significativa
“Em um país com mais de 12 milhões de famílias monoparentais, essa responsabilidade não pode recair principalmente sobre as mulheres que criam sozinhas seus filhos. São elas que enfrentam diariamente a escassez de tempo e a sobrecarga dos trabalhos com o cuidado”, afirma Cifali.
Uma vez que a garantia dos direitos de crianças e adolescentes é uma responsabilidade compartilhada, como previsto no artigo 227 da Constituição Federal, empresas de plataformas e serviços digitais também devem assumir esse dever constitucional.
Segundo o texto, as autoridades e empresas provedoras de serviços digitais devem adotar medidas para combater a exclusão digital, o capacitismo, a discriminação ilegal ou abusiva direta ou indireta (baseada em gênero, deficiência, crença e culto religioso, situação socioeconômica, sexualidade, origem étnica e racial). Assim, essas medidas visam assegurar a inclusão e acessibilidade digital e a conectividade significativa de todas as crianças e de todos os adolescentes.
Também está proibido usar dados pessoais de crianças e adolescentes para fins comerciais e direcionamento de publicidade. Segundo Ana Cifali, as plataformas digitais escolheram priorizar a exploração comercial como negócio, em detrimento da defesa e proteção dos direitos de crianças e adolescentes.
Nesse sentido, a resolução detalha “princípios e leis em vigor para o desenvolvimento de plataformas e serviços digitais. Em especial das redes sociais, nas quais há troca de conteúdos entre crianças e adolescentes”, afirma Cifali. Isso é feito a partir da Constituição Federal, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e do Comentário Geral nº 25 sobre direitos da criança em relação ao ambiente digital, que detalha a Convenção sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas.
Uma resposta aos ataques nas escolas
Diante das ameaças de ataques a escolas que circularam livremente nas redes sociais, disseminando o medo entre as famílias, e da atuação de grupos de ódio articulados, em diálogo entre o Ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania do Brasil, Silvio Almeida, e o Conanda se discutiu a necessidade de ampliar a proteção de crianças no ambiente digital e responsabilizar as empresas. Em 2023, foram nove mortes em ataques a escolas, de acordo com um estudo do Instituto Sou da Paz. “É uma resposta aos ataques a escolas e à falta de ação das plataformas para proteger a criança e o adolescente”, ressalta Ana Cifali.
Além disso, há outros riscos de exposição dessa população em um ambiente digital sem qualquer regulamentação governamental. Um estudo revelou, por exemplo, que 84,3% dos jovens já encontraram algum conteúdo violento e/ou vídeos discriminatórios, de humilhação ou perturbadores nas redes sociais.
Por outro lado, o ambiente digital oferece oportunidades para as múltiplas infâncias. Tem o potencial de ampliar os meios de conexão e de acesso à informação, bem como reforçar direitos constitucionais. Entre eles, o direito à educação, à saúde, à convivência familiar e ao brincar.
“Violência sexual, exploração comercial, discurso de ódio e recrutamento para grupos extremistas são alguns desafios que devem ser enfrentados com urgência. Só assim a internet pode ser um espaço de mais oportunidades do que de riscos”, diz a coordenadora do Alana. Nesse sentido, “o poder público deve orientar e comunicar a sociedade sobre temas como proteção de dados, educação midiática e o uso seguro da internet”.
A importância do Conanda
O Conanda é o principal órgão do sistema de garantia de direitos de crianças e adolescentes. Composto por 30 membros, reúne representantes do governo e da sociedade civil. Assim, define as políticas e normas gerais para essa área, fiscaliza o cumprimento das ações executadas pelo poder público no que diz respeito ao atendimento da população infantojuvenil, apoia os conselhos estaduais e municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente, e promove campanhas públicas.
Ao longo de mais de 30 anos de atuação, o Conanda aprovou importantes resoluções e recomendações. Por exemplo:
- Em 2000
Aprovou o Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infantojuvenil, que culminou na estruturação de políticas públicas, programas e serviços nessa área. - Em 2004
Atuou para erradicar o trabalho infantil com a criação do Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Trabalhador Adolescente. - Em 2014
A Resolução nº 163 reforçou o caráter ilegal da publicidade direcionada ao público infantil.
Além de incluir temas como proteção, transparência, exploração comercial, liberdade de expressão, direito à privacidade, proteção de dados e responsabilidade das empresas de tecnologia, a Resolução nº 245/2024 propõe a elaboração de uma política nacional para proteger os direitos da criança e do adolescente no ambiente digital, a ser desenvolvida em até 90 dias de sua publicação. “Esperamos então poder ampliar o diálogo para construir uma política que faça frente aos desafios atuais”, diz Cifali. Também está prevista a participação de menores de 18 anos na elaboração de políticas públicas sobre o ambiente digital.