Apesar do peso de mais de 365 dias de luta fora de casa, os filhos também sob seus cuidados dentro de casa são a força para continuar
Ouvimos histórias de profissionais da saúde que, há mais de um ano, estão na linha de frente contra a covid-19. Dentro de casa, eles ainda cuidam de seus filhos e contam o difícil equilíbrio de enfrentar uma pandemia ao mesmo tempo em que precisam maternar e paternar.
A mãe atravessa a sala do hospital com os materiais de higiene para entregar ao filho, que acabara de ser internado por covid-19. Mas não houve tempo nem para a despedida: do corredor, era possível ouvi-la chorando e gritando, inconformada. “Ele tinha 20 anos, idade do meu filho”, pensa a técnica de enfermagem que assistiu à cena.
Após 12 horas de plantão, perdeu oito pacientes. Exausta, começa a tirar a paramentação, que pesa e machuca: sente a cabeça, a coluna e o corpo inteiro doer; vê o rosto ferido pela máscara. Sai do hospital, onde cinco ambulâncias estão estacionadas, esperando por um leito. Sabe que a vaga só vai aparecer quando outro paciente vier a óbito, e isso pode levar apenas alguns minutos ou poucas horas. Passa por bares abertos a caminho de casa, com pessoas aglomeradas, festejando sabe-se lá o que no meio desta pandemia. Não tem como não sentir raiva e tristeza. O peso de estar na linha de frente contra a covid-19 só diminui quando chega no portão de casa: “Mainha chegou! Mainha, mainha!”, grita a menina.
“Como eu consigo ser mãe depois de passar por um dia desses? Não há explicação. Ver minha filha feliz ao me ver chegar dá energia. É uma força superior a você”
O depoimento é de Regina (nome fictício, pois prefere não se identificar), 39, mulher negra, que trabalha em dois hospitais públicos de Salvador (BA), é mãe de uma menina com pouco mais de um ano de idade e de um jovem de 20 anos. Ela trabalha 72 horas por semana e, ao chegar em casa, ainda precisa encontrar forças para os afazeres domésticos, dar atenção à família e cuidar da mãe idosa e enferma. Às vezes, mal consegue dormir as poucas horas de sono que lhe restam, com pesadelos que parecem se alimentar das cenas vividas nos corredores do covidário. “O que dá força e equilíbrio para seguir são meus filhos. No início, tive muito medo, mas precisava trabalhar, trazer sustento para dentro de casa e amamentar minha filha. Precisei criar coragem e seguir em frente”, conta.
Quando voltou da licença-maternidade, em março, a pandemia havia apenas começado. Pouco se sabia sobre a doença e as medidas de proteção que os profissionais da saúde deveriam adotar. “Meu marido logo sugeriu que eu pedisse demissão. Eu chorei muito no primeiro dia, porque tinha medo de levar a doença para minha família”, desabafa. Além da pressão dos parentes, dos conflitos internos e do sentimento de culpa, ela ainda precisava amamentar a pequena.
“Tinha que carregar minha filha no colo, dar mama e fingir que nada estava acontecendo”
Ficou com medo de abraçar os filhos e até de respirar perto deles. “Cheguei a desenvolver um tipo de ‘psicose’, porque lavava direto as mãos com água sanitária, até que me intoxiquei com o produto.” Hoje, com a experiência de mais de um ano na linha de frente, já se sente segura de estar dentro de casa, apesar da exaustão física e emocional tomar conta de sua vida. “Tem vezes que saio do hospital com vontade de não voltar mais”, desabafa.
“Lá, você precisa cuidar do paciente, ser familiar, ser até palhaço para fazê-lo rir, ser um ser humano. Você não trabalha por dinheiro, mas por amor”
“Por dentro, você se sente destruída. Estamos no pior momento da pandemia e, às vezes, acho que vou enlouquecer ou que já cheguei no meu limite”. Contudo, “o que me dá equilíbrio hoje são meus filhos que precisam de mim, e ter esperança de que com a vacina as coisas entrarão no eixo”.
A mais de 3 mil quilômetros dali, em Porto Alegre (RS), uma outra mãe vivencia sentimentos parecidos. Michele Elisa Weschenfelder Hervé, 37, enfermeira do Hospital das Clínicas, e mãe da Martina, de 1 ano e 3 meses, está trabalhando na linha de frente contra a covid desde julho do ano passado, quando voltou da licença-maternidade e pegou o primeiro pico da doença no Rio Grande do Sul. Ela, que havia passado sete meses com a filha, quarentenada em casa, retornava ao trabalho em um momento inédito. “Foram muitos sentimentos: além da insegurança de como a bebê ficaria, eu voltaria em meio a uma situação totalmente diferente do que eu já havia vivido. Era como se eu tivesse acabado de sair da faculdade e fosse meu primeiro dia de trabalho”, conta.
“As duas primeiras semanas foram muito difíceis, porque eu voltava para casa chorando e achando que não sabia mais trabalhar.” Depois de conhecer e se acostumar às novas rotinas, o medo foi substituído pela exaustão emocional.
“Todos os dias estamos nos reinventando e tentando arranjar motivação para nos mantermos firmes, porque a realidade é muito difícil”
Uma realidade que se dá pelo aumento de contaminados e as mais de 3 mil mortes diárias por covid-19 no Brasil, mas também porque ela sente a doença cada vez mais perto de seu círculo social. No dia anterior a esta conversa com o Lunetas, Michele havia perdido uma pessoa próxima e contou que estava cuidando de alguns conhecidos internados no hospital em que trabalha.
“Há três semanas, tivemos de abrir muitos leitos de um dia para outro, mas não havia gente para atuar nesses locais. Passamos o dia inteiro no celular para encontrar pessoas até chegar ao ponto em que realmente não havia mais gente, e constatamos que teríamos de trabalhar com uma equipe menor, o que significa queda na qualidade do atendimento e mais horas trabalhadas”, relata.
Nesse dia, além do cansaço, bateu forte o sentimento de culpa por não conseguir dar atenção à bebê.
“Às vezes, não conseguimos manter o equilíbrio que seria necessário. Também me sinto culpada porque minha filha é muito pequena”
“Por mais que conversemos com ela, não vai conseguir entender que a mamãe está triste ou estressada.” Nessas horas, Michele diz ter sorte de poder contar com o marido, que trabalha em regime home office e consegue apoiá-las.
Passando por episódios de insônia, pesadelos ao dormir e ansiedade, Michele diz que também encontra forças na maternidade. “Às vezes eu chego em casa exausta, mas louca para pegar minha filha no colo e amamentá-la. Parece que tudo que passei lá fora é zerado e esqueço os problemas”, conta. É a necessidade de ajudar que a leva a atravessar novamente a porta do hospital no dia seguinte.
“É um sentimento comum entre os profissionais da saúde: nesse caos, estamos fazendo algo pelas pessoas”
O mesmo sentimento que Filipe Prohaska Batista, 38, infectologista de Recife (PE), compartilha. Ele é chefe de triagem de pacientes no Hospital Universitário Oswaldo Cruz e foi o médico que atendeu o primeiro caso de covid-19 em Pernambuco – por lá já passaram mais de 3 mil internados pela doença. “Em vez das mortes, prefiro pensar que conseguimos mandar 2.700 pessoas para casa”, conta.
Após mais de 365 dias ininterruptos de trabalho, saindo muito cedo e voltando tarde para casa, sem direito a final de semana ou feriados, – “o vírus não tira férias” – ele conta que a fórmula para se chegar até aqui sem desabar é “não olhar para trás”.
“A gente está nos 45 do segundo tempo, chegando a hora de uma vacinação em massa, na pior fase da batalha. Não tem espaço para desistir”
A persistência de Filipe talvez venha não somente da profissão, mas do conhecimento técnico e teórico. Para quem estuda doenças infecciosas e o impacto de epidemias como a Peste Negra (que matou um terço da população europeia no século 14) e a Gripe Espanhola (que causou a morte de mais de 50 milhões de pessoas entre 1917 e 1921), o médico acabou se preparando para o pior cenário. “A primeira coisa que veio à mente com o novo coronavírus foi a epidemia de Sars-Cov-1, que tinha índice de mortalidade de 30%”, conta.
“Por isso, o primeiro dia que tratei um paciente de covid-19 foi o pior momento para mim. Minha esposa perguntou se eu ia voltar para casa ou ia para outro lugar, para não contaminar a família. Eu disse que ‘ou eu volto para casa e tomamos os cuidados, ou só volto daqui a dois anos’”.
“Fiquei pensando sobre os cuidados que deveria ter quando chegasse em casa para não infectar as crianças e também eu não podia me contaminar e espalhar para o hospital”
Filipe também é casado com uma médica-nefrologista, e é pai de Letícia, 7, e de Luísa, de 1 ano e meio. Para as meninas, que estão em casa há mais de um ano, há momentos em que é difícil explicar o que se passa no mundo lá fora e por que os pais precisam ficar tanto tempo trabalhando. “Saio de casa, elas ainda estão dormindo; quando volto, muitas vezes, elas já foram para cama”, conta.
“Eu sabia que seria difícil ser pai e médico, mas nunca imaginei que vivenciaria isso como linha de frente numa pandemia, é assustador”
Ao mesmo tempo em que é muito duro ver a saudade que a primogênita tem dos amigos e a caçula vivendo seus primeiros anos de vida em uma pandemia, ele conta sentir orgulho de como as filhas estão passando por esse momento. “A gente tinha uma preocupação muito maior com a mais velha, porque ela tem transtorno do espectro autista e não consegue acompanhar aulas on-line, mas ela entendeu o momento, usa a máscara corretamente, higieniza as mãos e tem uma alegria fantástica.”
Até hoje, Filipe não teve de enfrentar os efeitos da doença na pele, mas perdeu amigos e colegas de trabalho, inclusive precisou internar e entubar conhecidos, bem como dar a notícia quando uma pessoa não resistiu. “Um dos dias mais difíceis foi quando íamos extubar um amigo médico, mas no meio do procedimento ele teve um infarto. É doloroso avisar a família que em vez de ele ter saído do tubo, ele havia falecido”, relata. Fora o áudio de um amigo de infância pedindo ajuda para o pai que estava com suspeita de covid, mas que não foi ouvido a tempo no meio das milhares de mensagens que o médico tem no WhatsApp para responder. Ou no dia em que perdeu quatro vidas em um único plantão. “A equipe ficou arrasada e além do cansaço e esgotamento, fica a sensação da incapacidade de que não estamos fazendo nada”, conta.
Mesmo quando perguntando sobre os momentos mais difíceis, o médico sempre desvia a conversa para o lado do acolhimento e da resistência. “Se eu ficar agoniado ou desesperado, as pessoas ao meu redor vão desabar. Então eu tenho que passar tranquilidade, não só para a minha família, mas para aqueles que trabalham ao meu redor.”
“Já estamos no nosso limite. Se eu perder o controle e não inspirar alegria e esperança, mas medo e dor, só vou receber medo e dor em troca”
Ao pensar nos desafios que é estar na linha de frente e no futuro de suas filhas, ele deseja que tudo isso faça a sociedade pensar mais como coletivo, e não só no indivíduo. Que possamos, de uma vez por todas, diminuir as desigualdades sociais. Acima de tudo, sabe fazer parte do grupo de profissionais da saúde que está lutando para que as pessoas fiquem saudáveis para poderem abraçar suas famílias novamente. “Se minhas filhas e meus netos perguntarem como foi a pandemia, eu vou dizer a eles que a gente não ficou atrás de um balcão, dizendo como deveria ser.”
“Nós fomos para o enfrentamento, lutamos contra a doença e possibilitamos que muitas pessoas voltassem para suas casas”
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