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Libras é a língua da inclusão e do mundo das crianças surdas 

Imagem mostra um menino aprendendo libras com uma mulher em um parque.

Desde bebê, Walker Serafim, 15 anos, aprendeu a Língua Brasileiras de Sinais (Libras) para se comunicar com os pais. Assim como eles, o estudante é surdo profundo, por isso foi natural aprender Libras dentro de casa. “Em uma família de ouvintes, os adultos oralizam, o bebê escuta e vai aprendendo. Em uma família de surdos é a mesma coisa. Eu olhava como os meus pais sinalizavam e fazia igual. Não tinha nenhuma dificuldade para mim”, conta à equipe do Lunetas, que teve o auxílio de uma intérprete para a entrevista.

Embora essa aprendizagem tenha sido espontânea na rotina de Walker, nem sempre é um processo comum para crianças surdas. Os colegas Rafael, 17 anos, e Mellany, 16, lembram que demoraram um pouco mais para aprender a se comunicar com os sinais corretos da Libras.

Enquanto Mellany iniciou os estudos em uma escola regular de ouvintes, já que, apesar de surda, oraliza com a família, Rafael recebeu o diagnóstico de surdez após os três anos. “Sou o único surdo. [da família] Eles faziam gestos, eu observava, mas não eram fluentes em Libras. Tinha essa dificuldade na comunicação, então fui aprendendo praticamente gestos.”

Os três adolescentes são alunos da Escola Municipal de Educação Bilíngue para Surdos (EMEBS) Helen Keller, de São Paulo. Fundada há 73 anos, a escola é pioneira na oferta de ensino médio na rede pública no país e se tornou uma referência em educação para surdos. Atualmente, 268 alunos surdos estudam na unidade e 20% deles possuem outra deficiência associada.

Reconhecida como meio legal de comunicação e expressão pela Lei 10.436, a Libras é um direito da comunidade surda, sobretudo para a inclusão dentro das escolas. Para lembrar a importância dessa população, a data da sanção da Lei, dia 24 de abril, se tornou o Dia Nacional da Língua Brasileira de Sinais (Libras). Além disso, o decreto 5.626, de dezembro de 2005,  regulamentou a formação de tradutores e intérpretes de Libras. O direito à comunicação por sinais contempla mais de 10 milhões de pessoas com deficiência auditiva no país, sendo 2,7 milhões com surdez profunda, conforme os dados do IBGE.

Lei garante o ensino de Libras nas escolas

De acordo com o governo federal, o Brasil possui apenas 64 escolas bilíngues para surdos. Na cidade de São Paulo, há seis EMEBS e mais duas escolas regulares que possuem salas exclusivas para estudantes surdos. Todas seguem um currículo específico para a educação de 600 alunos com algum grau de surdez. Segundo o Censo Escolar de 2022, o Brasil possui mais de 62 mil alunos matriculados na educação básica com alguma deficiência auditiva.

Para esses estudantes, aprender Libras como língua principal e ter o ensino das outras disciplinas traduzidos é um direito legal. Além de estar previsto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), em 2021, a Lei 14.191 determinou a educação bilíngue como uma modalidade de ensino independente. Portanto, a Libras deve ser a primeira língua e o português escrito, a segunda.

Desse modo, as escolas bilíngues possibilitam que meninas e meninos surdos desenvolvam habilidades além das técnicas. Segundo Felipe Venâncio Barbosa, professor de Linguística da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador em Língua de Sinais e Cognição, ao aprender a se comunicar em Libras, os estudantes desenvolvem o autoconhecimento, a construção de identidade e o entrosamento mais efetivo na rotina escolar e em espaços frequentados pelos ouvintes.

Para Barbosa, essa língua proporciona uma experiência que toda criança surda deveria ter, principalmente pela convivência com seus pares. “A escola bilíngue é muito importante até porque é bastante comum receber alunos surdos com outras deficiências. Ou seja, é uma educação especial dentro da educação especial. Tem um olhar ainda mais sensível para deficiências como o transtorno do espectro autista, paralisia cerebral, síndrome de Down, deficiência mental”, explica. “Seria um desafio muito grande fazer algo parecido em uma escola regular.”

Uma linguagem que abre o mundo para as crianças surdas

Na escola Helen Keller, que leva o nome da ativista norte-americana surdocega, os adolescentes dizem que se sentem acolhidos e felizes por encontrarem seus pares, além de aprender, conversar e aproveitar todas as etapas da vida escolar. “Aqui é o meu mundo”, diz Walker. “É difícil lá fora porque não tem comunicação, mas aqui na Helen Keller essas preocupações acabam, me sinto feliz em estar aqui”, complementa Rafael.

Todos os 40 professores são fluentes em Libras e alguns, inclusive, também são surdos. As avaliações são aplicadas tanto no modelo clássico, com provas impressas, quanto em forma de apresentação. Ou seja, os professores se reúnem em uma banca e os estudantes precisam responder em Libras as perguntas projetadas no telão. Eles são avaliados pelo domínio do conteúdo e habilidades como criatividade e desenvoltura.

Outros projetos e atividades comuns da escola são a produção de jornal, competição de slam e a formação de um grêmio estudantil. Um dos destaques são as “aulas expandidas”, que desenvolvem conteúdos de ciências humanas com visitas a bairros e pontos turísticos dentro e fora de São Paulo. Nessa atividade, os alunos são incentivados a observar características arquitetônicas e analisar as políticas públicas existentes.

“Tudo que o surdo aprende, entra pelos seus olhos. Por isso procuramos oferecer o máximo de oportunidades”, diz Sandra Farah Azzi, assistente de direção que atua há mais de 40 anos na escola. Ela explica que Libras é a primeira língua adquirida pelos surdos e esta base é necessária para que ele consiga desenvolver a língua portuguesa.

Os estudantes Rafael, Mellany, Walker e o professor Danilo fazem parte da comunidade surda e recordam como foi importante aprender Libras ainda na infância para se identificar e se comunicar.

Escolas precisam reconhecer a Libras como primeira língua dos surdos

Antes da língua de sinais chegar às escolas, as crianças precisavam aprender a ler lábios e a oralizar para se comunicar em sala de aula. Para os educadores, quanto mais oralizado o estudante é, mas ele vai conseguir acessar a língua portuguesa. Porém se é negado o direito de desenvolver a Libras, pode haver um impacto emocional e psicológico importante.

“Há a destruição de uma identidade, pois significa não permitir que aquele indivíduo construa uma identidade surda. Ou então, que ele se organize como grupo cultural”, pontua o pesquisador Felipe Venâncio Barbosa. Segundo ele, quando o estudante não tem oportunidade de aprender Libras, pode ficar “refém de uma língua que não consegue processar completamente.”

Já o professor de Libras, Danilo de Oliveira, que é surdo e dá aulas na escola Helen Keller, lembra como foi difícil oralizar em sala de aula durante a infância e adolescência. “Sofri muito porque não tinha intérprete em lugar nenhum. Na época, não tinha comunicação, então eu ficava prestando atenção no que as pessoas diziam e tentava escrever”, recorda.

Danilo precisou aprender Libras com outras pessoas surdas que conhecia fora da escola. Somente no 5º ano do ensino fundamental teve um instrutor surdo, que iniciou a interpretação do conteúdo para Libras. A partir dessa experiência, Danilo despertou sua vontade de ser professor.

Para ele, a escola bilíngue traz “conforto linguístico” para os surdos, pois eles podem sinalizar na sua primeira língua e aprender a segunda língua escrita, o português. “A gente não ensina tudo misturado porque são métodos com estruturas e sintaxe diferentes”, explica.

Ao mesmo tempo, Felipe Venâncio Barbosa afirma que crianças surdas que usam a língua de sinais são potencialmente bilíngues porque processam uma língua internamente, mas estão em uma sociedade que usa outra. Além disso, serão impactadas por livros, placas e textos escritos o tempo todo.

Reconhecida como a comunicação oficial da população surda no Brasil, a Libras é um direito dos alunos da Escola Municipal de Educação Bilíngue para Surdos Helen Keller, em São Paulo, e de mais de 62 mil estudantes com deficiência auditiva no país.

Ensino de Libras demanda mais professores

Em São Luís (MA), a professora Claudia Pereira dá aulas nos anos iniciais do ensino fundamental na Escola Municipal Integral Bilíngue Língua Portuguesa e Libras. Segundo ela, como a criança surda não faz a correspondência sonora das palavras, há a necessidade de treinar a memória para garantir bons resultados na aprendizagem.

“É um desafio, até porque a maioria chega na escola sem saber nada de Libras, pois muitos pais demoram para aceitar a surdez e a procurar uma escola bilíngue. Mas eu acredito muito nos meus alunos e faço tudo para que eles possam se apropriar da língua, avançar e sair alfabetizados.”

Claudia faz parte de um conjunto ainda tímido de professores licenciados em Libras, que dão aulas para crianças e adolescentes surdos no país. Segundo o Censo da Educação Superior, em 2022, havia 15.444 alunos matriculados nas graduações de Letras Libras. A demanda ainda não supre a necessidade das mais de 180 mil escolas públicas do país.

A professora Claudia Pereira dá aulas em Libras no ensino fundamental da Escola Municipal Integral Bilíngue Língua Portuguesa e Libras, em São Luís (MA). Para ela, o desafio maior é quando a criança surda chega sem saber a língua de sinais.

Para os educadores, é essencial contar com profissionais especializados para o letramento e alfabetização das crianças surdas. Por isso, a necessidade de dar mais visibilidade às faculdades de licenciatura desta área. “Este é um curso de uma importância muito grande. Não só porque aborda especificamente o ensino de línguas na licenciatura, mas devolve para a sociedade profissionais com uma capacitação aprofundada nos estudos surdos”, pontua Felipe Venâncio.

Segundo ele, a licenciatura em Libras “pode ser um propulsor e um gerador de políticas públicas para a educação de uma forma geral”. Desde o ano passado, o Ministério da Educação incluiu a educação bilíngue de surdos nos programas Compromisso Nacional de Criança Alfabetizada e Escola em Tempo Integral.

Além de ampliar o direito à inclusão, ter mais educadores qualificados em Libras se justifica na necessidade de aplicar métodos que atendam a diversidade cognitiva das crianças surdas. Para Sandra Farah Azzi, diretora da escola Helen Keller, “o aluno pode até ser um pouco oralizado e se esforçar para se comunicar em português, mas a Libras é a língua legitimada, que é a cultura e identidade deles”.

“O surdo tem uma alma surda, pois muitos nunca ouviram na vida e eles querem sinalizar porque acham bonito a Libras. Eles têm orgulho da língua deles.”

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