Jovens contam como adiar o fim do mundo em ‘Ancestrais do Futuro’ 

Nova temporada de websérie produzida por jovens periféricos de cada região do Brasil mostra iniciativas para o cuidado de uma sociedade mais justa e sustentável

Célia Fernanda Lima Publicado em 26.11.2024
Imagem mostra cena da série Ancestrais do Futuro com uma vó e neta, uma mulher e uma menina negra, sentadas no chão em meio a objetos de barro.
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Resumo

Em cinco episódios, jovens das periferias de cada região do país mostram soluções e movimentações para conter a crise climática. Os vídeos contam com narrativas, documentários e ficção.

Como refletir sobre os impactos ambientais de hoje para o futuro que já está acontecendo? A questão foi o ponto de partida para as produções audiovisuais de jovens da periferia de diferentes regiões do Brasil na websérie Ancestrais do Futuro. Guiados pelos ensinamentos de Ailton Krenak, os episódios propõem mostrar em diversas linguagens “iniciativas para adiar o fim do mundo”, conforme o tema desta quarta temporada. 

Em cinco episódios disponíveis no canal Enfrente, da Fundação Tide Setubal, no YouTube, coletivos audiovisuais de jovens socialmente engajados apresentam como cada território está impactado pelas emergências climáticas. Além disso, mostram como a comunidade se mobiliza para enfrentar juntos os impactos sociais. Pará, Pernambuco, Mato Grosso, São Paulo e Rio Grande do Sul participam com cada coletivo.

Os episódios têm contextos e narrativas distintas. Eles vão de ficção científica a performance de dança. Ao mesmo tempo, tem documentários que mostram a movimentação nas periferias urbanas, conversas sobre o direito à terra e o olhar de uma menina para o ecossistema que habita. Tudo a partir do protagonismo juvenil, que direciona a compreensão do presente e alerta para um futuro mais justo e sustentável.

Conexão com a natureza no presente para o futuro

De Cuiabá (MT), o grupo Bora Fazer Filmes apresenta no curta-metragem “Nossos Sonhos pela Janela” um futuro distópico no centro-oeste brasileiro. Na ficção, cinco crianças precisam encontrar um tesouro perdido em uma escola abandonada. Enquanto isso, no tempo presente, os mesmos personagens aprendem como preservar a natureza e a pensar o futuro.  

“A proposta do projeto é também passar conhecimento e perspectiva para as crianças”, explica o produtor Luan Mello. Um dos principais pontos abordados foi a importância dos povos indígenas na preservação da floresta. “Mostramos que há um problema mas também existem pessoas no mundo pensando soluções. Portanto, precisamos nos mobilizar pela mudança ao invés de somente aceitar o destino inevitável”, defende. 

Para as crianças do projeto, o contato direto com a natureza serviu para entender os impactos que já estavam sentindo. “Em Cuiabá, passamos três meses debaixo da fumaça intensa das queimadas. Portanto, a experiência permitiu que elas olhassem para além da normalidade e entendessem o que causa esse problema”, diz Luan. 

Já no episódio “De Bará a Oxalá”, produzido pelo Cine Kafuné (RS), a dança foi a linguagem poética escolhida para tratar do assunto climático. O cenário de floresta, onde um portal para a dança e a espiritualidade afro-brasileira se juntam, é uma espécie de refúgio após as enchentes que devastaram o estado este ano. 

Segundo o coletivo, “a videodança celebra a resiliência das comunidades de terreiro e a capacidade de adaptação em tempos de crise climática”. Por isso, a performance convida a olhar para o trágico e o belo ao mesmo tempo. Além disso, chama a celebrar os elementos naturais junto às tradições afro-gaúchas. “É um gesto para harmonizar nosso existir com a pulsação da Terra e reconhecer uma linguagem universal de resistência e esperança”.

Imagem mostra cena da série Ancestrais do Futuro em que um ator negro, d ecabelos amarrados dança em meio à floresta.
Do Rio Grande do Sul, o Cine Kafuné produziu um episódio onde a dança ancestral é um manifesto sobre a natureza.

Olhares geracionais de um mesmo cenário

A vivência de mãe, filha e neta às margens do rio Capibaribe, em Recife (PE), se entrelaçam na rotina de ver o mesmo ambiente com olhares diferentes. É desse modo que o curta “No tempo do Sonho”, dirigido por Carol Canuto, do coletivo Coquevídeo, apresenta a rotina de Dona Biu, Jheniffer e Cauane em um território de mangue.  

“O filme fala da ancestralidade ainda presente nas periferias por pessoas descendentes de indígenas e afro-brasileiras. Por isso, a ideia é mostrar a importância da espiritualidade e da escuta da natureza como o único caminho para adiar o fim do mundo”, conta a diretora. 

A relação entre avó e neta no cuidado com os caranguejos do mangue do Capibaribe é o ponto alto para sentir a força dessa conexão. “A menina continua se relacionando com a avó, sem necessariamente chorar sua morte. Transformada em caranguejo, ela apenas entende que Dona Biu mudou de forma”, explica Carol. “O filme apela, então, para a conexão com os encantados e a transformação da própria vida numa encantaria como forma de segurar as bordas do céu”. 

Olhares geracionais para a emergência climática também estão presentes no episódio ‘Da Terra ao Clima’, do coletivo Gueto Hub (PA). É da periferia de Belém, cidade que vai sediar a próxima COP para as mudanças climáticas, que jovens do bairro do Jurunas falam de suas lutas e dos que vieram antes deles. 

Nesse sentido, o curta mescla depoimentos de líderes comunitários do presente, seus pais e avós, assim como os adolescentes que estão envolvidos nas programações atuais sobre a crise climática. “A memória, assim como o conhecimento, é poder. Porque a sociedade só pode avançar se a gente compreender o nosso passado e o presente”, diz Josué, arquivologista do centro comunitário.     

O direito à terra no fim da vida

Assim como em Belém, as vozes da periferia urbana paulistana contam histórias sobre como adiar o fim do mundo. O Núcleo Aota produziu no curta “Onde a Terra Ferve” uma narrativa que discute a preservação da memória da comunidade da ex-coveira Ururaí. A linha apresenta um ritual de passagem e percorre bairros periféricos para ouvir as lutas e as estratégias para cuidar da terra e da cultura. 

“A proposta estética explora a periferia urbana de São Paulo, presente e futura, usando seus próprios elementos visuais e sonoros”, explica o roteirista Lico Cardoso. “A narrativa parte do genocídio da juventude preta e pobre para refletir sobre o direito à terra e o impacto da privatização dos cemitérios, onde o direito ao luto já é negado para muitos. Ou seja, não temos o direito à terra nem para a nossa morte”, ressalta. 

Na produção, o universo periférico ganha uma cara futurista e, ao mesmo tempo, ancestral, com a referência a Itan de Iku, orixá da morte. A proposta de uma narrativa “híbrida”, como menciona Lico, é mesclar a história e os depoimentos para destacar como a periferia sempre esteve atenta às questões climáticas. “Em um único bairro, vemos projetos e moradores engajados e conscientes sobre a preservação da natureza. Existe um preconceito proposital que coloca as mazelas da sociedade nos nossos corpos e territórios. Mas, entrando nesses locais, fica evidente que estamos, e sempre estivemos, em constante movimento, atuando em projetos de preservação e conscientização com os nossos”, diz.  

“É urgente que outras camadas da sociedade brasileira enxerguem o trampo sério que a periferia faz. Estamos em movimento o tempo todo e sempre estivemos no corre pela terra. É uma luta ancestral.” 

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