Dizer que uma atitude é ‘infantil’ acaba confundindo as limitações do desenvolvimento que fazem parte da infância a violências de certos adultos
Ser “infantil” ou “agir como criança” não deveria ser ofensivo: colocar as crianças em um lugar inferior reforça uma conduta adultocêntrica, que despreza a infância e suas peculiaridades.
Quando definimos uma atitude como “isso é coisa de criança”, essa atribuição aparentemente inofensiva carrega consigo uma série de premissas adultocêntricas que colocam as crianças em um lugar inferior, menor, baixo. Termos relacionados têm igualmente um peso negativo ou depreciativo: “você está sendo infantil” ou “você age como criança” são geralmente usados como xingamento e, além de revelarem a mesma intenção de condenar a partir de uma suposta superioridade do adulto, também são um desrespeito com as crianças.
Para Juliana Prates, psicóloga especializada em estudos da criança, esse comportamento reforça a tendência do adulto em “tratar as crianças como objetos que respondem a seus interesses, ao invés de reconhecer nelas uma pessoa, legitimando suas expressões e sentimentos”.
“Tudo o que a criança faz é ‘inadequado’ quando o molde da adequação é o comportamento adulto”
“Em geral, tomamos as atitudes de um adulto como ‘infantis’ quando demonstram uma dificuldade de lidar com a autorregulação dos impulsos agressivos, com o adiamento dos desejos imediatos e com a empatia que tira o indivíduo do centro de sua percepção do mundo”, comenta Tatiana Koschelny, psicóloga e consultora educacional. Segundo ela, a “imaturidade” de uma criança, enquanto um ser que depende dos cuidados ofertados pelos adultos para se desenvolver, fortalecer e constituir suas capacidades físicas, cognitivas e emocionais, diz respeito aos limites que ela apresenta em gerir a si mesmo no mundo, o que é totalmente esperado. Agora, o adjetivo “infantil”, quando utilizado para descrever adultos, atribui um signo de “atraso” ou “falha” no desenvolvimento maturacional, uma vez que, em tese, já deveriam apresentar as capacidades emocionais constituídas.
É nesse sentido o posicionamento da artista Thais Trindade diante da repercussão de um vídeo produzido no ano passado pelo comediante Marcelo Adnet cujo tema é “Lugar de criança não é na presidência“, uma paródia que coloca o atual presidente Jair Bolsonaro como uma “criança mimada”.
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No cenário pós-eleições, quando alguns eleitores do partido derrotado nas urnas não aceitam o resultado, ignorando as regras do jogo político democrático, surgem comentários e memes com a intenção de retratar o candidato não escolhido pela maioria como “criança birrenta” ou “infantil” pela demora em reconhecer a vitória do seu oponente. Mas, qual é a mensagem que estamos passando às crianças?
A mensagem é clara: “se perder, não aceitamos e pedimos prorrogação”. Isso autoriza as crianças a reproduzirem em outros espaços o modelo que lhes é ensinado como natural, hostilizando colegas em sala de aula, por exemplo. Ao acompanharem adultos responsáveis por elas em atos políticos, como os recentes bloqueios nas estradas – ocasião em que as crianças foram usadas inclusive como barreira e escudo, como foi denunciado -, e quando se permite que participem vestindo as cores “da sua bandeira”, fazendo arminha com a mão ou reproduzindo gestos nazistas, sem uma conversa prévia sobre os reais significados do fascismo, as crianças estão sendo estimuladas a adotar um comportamento que ignora e violenta a existência do outro.
“Quando a gente chama adultos irritados, perversos ou agressivos de ‘garotos’, a gente também está desculpando-os e os infantilizando no sentido de proteção, o que demonstra uma seletividade diante de nossas empatias, pois geralmente são destinados a homens brancos, héteros, cis”, aponta Prates.
“É a noção de impunidade, a ideia de ser perdoado por tudo que faz, com certa benevolência em relação ao seu comportamento – ao contrário da criança, que é punida”
Além disso, infantilizar atitudes de adultos quando eles, na verdade, estão sendo imaturos ou irresponsáveis ao praticarem ações potencialmente capazes de prejudicar o próximo leva à reflexão sobre a necessidade de uma reeducação urgente para a vida em sociedade, com respeito a opiniões diferentes e a diferentes formas de existir no mundo.
Ao invés de inferiorizar a criança, o adulto pode aprender com as crianças à sua volta e mesmo com a criança que um dia foi ao observar suas vulnerabilidades, fragilidades e necessidades, recomenda a psicóloga Tatiana Koschelny. “Assim como as crianças, nós adultos precisamos de bons modelos de ‘humanidade’ para poder nos educar, lembrando da importância de desenvolver e preservar nossas capacidades de sentir, falar, expressar, cuidar e se relacionar.”
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