Crianças vivem as memórias e o medo dos incêndios no Pantanal

Incêndio florestal histórico que destruiu 27% do Pantanal e desabrigou famílias inteiras até hoje impacta a saúde e o modo de vida das crianças ribeirinhas

Juliana Zanlorenzi Publicado em 17.09.2021 Atualizado em 06.01.2023
Silhueta de duas crianças, de costas, de mãos dadas, olhando para um incêndio
OUVIR

Resumo

Os incêndios no Pantanal em 2020 foram devastadores e históricos. Crianças precisaram deixar as casas junto com suas famílias e os pais tiveram que recomeçar a vida após perderem a principal fonte de alimentação e subsistência.

É setembro de 2020 e uma nuvem de fumaça invade o céu. Cerca de 25 famílias deixam suas casas e atravessam o rio para fugir do fogo, enquanto crianças assustadas ficam tossindo sem parar. Mães e pais procuram proteger seus filhos e sentem-se impotentes diante daquela situação. Os militares do Corpo de Bombeiros pedem pressa e tentam ajudar no que podem.

Esse é o retrato da cena ocorrida na Barra de São Lourenço, na Serra do Amolar, em Corumbá (MS), no Pantanal sul-mato-grossense. Segundo dados de integrantes do Ecoa – Ecologia e Ação, que convivem no local, a comunidade contava com 110 pessoas, entre adultos e crianças, e eles enfrentaram, juntos, o ano mais seco dos últimos 60 anos.

Uma das pessoas que viveu essa história foi Esdras, 7, que morava na comunidade de São Francisco, na região de Paraguai Mirim, com os pais e o irmão. Por conta do incêndio que destruiu tudo, eles precisaram se mudar para outra vila a mais de três horas de distância e ainda não conseguiram retornar, pois a plantação não pode ser reconstruída pela seca permanente que assola a região.

“Eu sinto muita falta de poder tomar banho de rio, brincar com meus amigos. Sinto saudades do meu quarto e da minha antiga casa. Quero que isso melhore logo pra eu voltar com minha família para nossa casa de verdade”, manifesta. 

“O fogo devastou tudo e contaminou a água, não posso nem brincar no rio. Mas nossa família não desiste. Queremos voltar a morar lá e viver felizes”

Image

Arquivo pessoal

Esdras, 7, e a família tiveram de deixar sua casa no incêndio que devastou aproximadamente 27% do Pantanal, no ano passado. Até hoje, eles ainda não voltaram para lá. Na foto, eles estão na chalana, em sua antiga casa, preparando-se para mais um dia de pesca

O pai de Esdras, Daniel Maciel, relembra com muita tristeza os momentos que viveu com a esposa e os filhos. “O fogo começou a uns mil metros daqui. Quando eu vi que ficou muito forte, mandei minha família para casa de familiares e fui ajudar a apagar as chamas”, relembra. 

“Foi tudo tão rápido. O fogo destruiu toda a minha renda, a beleza do lugar, os animais… tudo”

O desequilíbrio ambiental foi muito grande na região. Hoje, a gente não consegue plantar nada lá. Surgiram novas pragas, como os ratos. Já que as cobras morreram com o fogo, aumentou a quantidade de outros animais. A gente planta e eles destroem tudo”, ressalta.

Ele conta que o fogo afetou diretamente a saúde da família. Todos tiveram crises de tosse, dor de cabeça, falta de ar e até hoje sentem os efeitos daquela fumaça. O atendimento médico é escasso na região, então eles se viram como podem. A renda da família caiu praticamente a zero.

“Com o incêndio veio a seca e os peixes morreram ou sumiram. Hoje, nós vivemos da ajuda de amigos, vizinhos e ONGs”, acrescenta.

Image

Divulgação/Ecoa

O incêndio histórico no Pantanal destruiu quase 1/3 do bioma, causou desequilíbrio no ecossistema, gerou prejuízos econômicos e sociais e afetou a subsistência, renda e saúde das famílias locais

Image

Divulgação/Ecoa

O incêndio histórico no Pantanal destruiu quase 1/3 do bioma, causou desequilíbrio no ecossistema, gerou prejuízos econômicos e sociais e afetou a subsistência, renda e saúde das famílias locais

Paisagem e memória: as marcas dos incêndios no Pantanal

O Pantanal é um dos biomas mais importantes do Brasil e do mundo. Rico em flora e fauna, está localizado entre os estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, e também abrange áreas da Bolívia e do Paraguai. Dados do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) apontam que há mais de 1,2 mil espécies de animais nativos e dezenas deles estão em extinção. 

De acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o ano de 2020 foi considerado o pior da história em relação às queimadas. Foi o ano com mais focos de incêndio registrados desde 1998, sendo 210% a mais do que em 2019. Estudos do órgão também apontam que o número de focos de incêndio registrados entre os meses de janeiro e agosto de 2020 equivale a tudo o que já queimou no bioma entre 2014 e 2019. Já este ano, o fogo consumiu 261,8 mil hectares do Pantanal, resultando em uma área devastada maior que a média histórica (e abaixo do que foi registrado em 2020). Entre 1° de janeiro deste ano e o mês de agosto, 3.910 focos de calor foram contabilizados.

Image

Divulgação/SOS Pantanal

O ano de 2020 foi considerado o pior ano da história em relação aos incêndios florestais no Pantanal

Image

Divulgação/SOS Pantanal

O ano de 2020 foi considerado o pior ano da história em relação aos incêndios florestais no Pantanal

O tenente-coronel Luciano Alencar, comandante do Corpo de Bombeiros Militar de Corumbá, conta que todo o efetivo da unidade esteve empenhado no trabalho de monitoramento e resposta. Ao tomarem conhecimento da situação, eles utilizaram viaturas, embarcações e até helicópteros das Forças Armadas para o combate direto às chamas e, quando necessário, era feita a evacuação das pessoas afetadas.

“Vimos pessoas de todas as idades sofrer com a fumaça proveniente da queima, que causa prejuízo imensurável à saúde respiratória. As famílias também testemunharam a perda de flora e fauna locais”, enfatiza. 

“A devastação das matas e os animais mortos são situações que nunca serão esquecidas por essas crianças”

Outra família que viveu momentos de pânico foi a de Naiara Vitória, 12. Ela mora com sua mãe e o irmão de 9 anos na Área de Proteção Ambiental Baía Negra, localizada na rodovia estadual MS-480, em Ladário (MS), que fica à beira do Rio Paraguai.

Um incêndio florestal que começou no dia 27 de abril de 2020 se estendeu por vários quilômetros de estrada e chegou próximo à casa de Naiara e de outras famílias que vivem na região. A menina teve que sair de casa pelas crises de asma e foi morar com sua madrinha, na área urbana.

“Eu senti uma tristeza enorme ao ver todo aquele fogo. Fui atendida pelos médicos e precisei ficar separada da minha família, isso me deixou muito chateada. Eu só pude voltar para casa quando acabaram os incêndios”, lembra. 

A garota conseguiu manter os estudos porque foi morar na área urbana onde o acesso à internet é melhor. “Eu consegui estudar, mas sentia falta de brincar com meu irmão, na canoa”, conta.

“Eu brincava também de esconder no mato, mas agora não podemos mais. A baía secou e o mato queimou com o fogo”

A pescadora e agricultora, Zilda dos Santos, mãe de Naiara, recorda o momento de desespero quando o fogo chegou próximo de sua casa. Por ser cozinheira, ficou no local para alimentar bombeiros e brigadistas que atuaram no combate às chamas.

“Eu tive falta de ar e crise de pressão alta por conta do nervoso que senti. O fogo é destruidor, ele passa de um lado para o outro da estrada com muita facilidade. Eu nunca vi algo parecido com o que vivemos no ano passado”, relembra.

Zilda perdeu boa parte de sua plantação e não tem mais tanto acesso aos peixes da região. Com isso, a alimentação da família e o modo de subsistência foram impactados.

“Eu tinha plantação de mandioca, abóbora, verduras… mas o fogo acabou com tudo. Agora estou tentando plantar na beira do rio para conseguir me alimentar e alimentar minha família. Por enquanto, estamos comprando comida e gastando dinheiro com isso”, observa.

Image

Arquivo pessoal

Naiara, 12, e sua família, dependiam da plantação que foi destruída pelo incêndio, em Ladário (MS)

A relação dos incêndios no Pantanal com as mudanças climáticas

Segundo dados de outubro de 2020 do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Lasa/UFRJ), o fogo consumiu mais de 27% da área do Pantanal, chegando a mais de quatro milhões de hectares – 147,4% a mais em comparação a 2019. Isso corresponde a dez vezes a área dos municípios de São Paulo e do Rio de Janeiro somadas. Um  estudo apresentado pelos ministérios públicos do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul provou que, em 2020,  quase 60% dos focos de incêndio no Pantanal foram provocados por ações humanas.

“Um dos principais impactos dos incêndios para o clima são os milhões de toneladas de CO2 [gás carbônico] jogados na atmosfera e a perda de espécies de animais e vegetais, que é incalculável”, salienta o biólogo do SOS Pantanal, Gustavo Figueiroa.

Os incêndios reduzem a capacidade da floresta de armazenar o carbono e também são responsáveis por liberar uma grande quantidade de CO2, um dos principais gases responsáveis pelo efeito estufa na atmosfera. Segundo o fundador e presidente da ONG Save Cerrado, Paulo Bellonia, quanto maior é o desmatamento, mais gás é emitido, gerando mais calor e menos chuvas, em um ciclo que se retroalimenta.  

A sucessão de anos com poucas chuvas, vento seco e baixa umidade do ar na Bacia do Alto Paraguai, onde está localizado o Pantanal, foram fatores determinantes para a propagação dos incêndios do ano passado. Os grandes rios do Pantanal receberam pouca água entre 2019 e 2020, o que reduziu suas áreas de inundação, deixando mais espaço para desmatamento, queimadas e propagação de incêndios.

Em síntese, além dos incêndios no Pantanal agravarem ainda mais a emergência climática pela intensificação da emissão massiva de CO2 no ar, simultaneamente, eles também se configuram em uma consequência direta da mesma crise. À medida que o desmatamento na região aumenta, isso afeta o índice de chuvas e prolonga o período de secas. Ou seja, causa e efeito estão profundamente ligados.

Image

Frico Guimarães/SOS Pantanal

Brigadistas tentam controlar o incêndio no Pantanal em 2020, durante os maiores incêndios florestais da história na região

Impactos dos incêndios florestais à saúde das crianças

O coordenador do Departamento de Pneumologia Pediátrica da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT), Luiz Vicente Ribeiro, explica que a poluição do ar, agravada pelos incêndios no Pantanal, afeta diretamente o sistema respiratório.

“No caso das fumaças de queimada, a exposição a material particulado em grande quantidade gera uma série de sintomas agudos em bebês e gestantes. Crianças e bebês são mais suscetíveis aos efeitos tóxicos da fumaça por terem os mecanismos de combate a essas substâncias menos desenvolvidos. Além disso, os pulmões ainda estão em desenvolvimento, com intensa formação de alvéolos”, salienta. 

Lígia Burton Ferreira, mestre em psicologia e psicanálise de crianças, adolescentes e adultos, propõe o exercício de imaginar como seria perder completamente, do dia para a noite, o seu lar e a fonte de renda que poderia ajudar a reconstruir esse lugar. 

“Se tentarmos compreender esses elementos perdidos, veremos que o trabalho, no sentido histórico, sempre fez parte da vida humana e nos ajuda a construir significados. Nossa casa, enquanto um lugar de proteção e acolhimento, é o espaço para onde voltamos diariamente e vivemos momentos simbolicamente importantes. O próprio Pantanal é esse grande lar, que queimou durante meses” enfatiza.

Lígia ressalta que é comum ouvir de crianças e adultos relatos de sonhos com fogo ou chamas, além de perceber aumento de ansiedade, mudanças de humor e depressão na população local. É uma situação traumática, que envolve a perda de um lugar que sustentava inúmeras vidas e cuja reconstrução é impossível a curto prazo.

“Sabemos que é possível reconstruir o mundo material, mas nos resta a dúvida de como iremos contar esse momento trágico da história e elaborar essa memória sem apagá-la”, afirma.

“É necessário continuarmos falando sobre isso, olhando e escutando essas pessoas para que o mal-estar encontre um destino possível, mesmo que ainda intraduzível”, completa.

Como começam os incêndios florestais?

O tenente-coronel Valdemir Moreira Júnior, assessor militar da Secretaria de Meio Ambiente, Desenvolvimento Econômico, Produção e Agricultura Familiar (Semagro) de Mato Grosso do Sul, explica que o incêndio florestal pode iniciar por causas naturais (raios) ou por consequência de ação humana, que é a maioria.

Um incêndio florestal que começa entre julho e outubro é muito mais difícil de combater, por conta de variáveis mais críticas, como ventos, temperatura e umidade do ar e da vegetação.

“Para controlar essas ações foi instituído o Plano Estadual de Manejo Integrado do Fogo (PEMIF), por meio do Decreto nº 15.654, de 15 de abril de 2021, que pretende desenvolver ações de prevenção, preparação, resposta e responsabilização aos incêndios florestais antes deste período crítico”, enfatiza.

Leia mais

Comunicar erro
Comentários 1 Comentários Mostrar comentários
REPORTAGENS RELACIONADAS