A cada dia, Marias de todo o Brasil levam seus filhos para a escola, de manhãzinha, e vão trabalhar. No fim do dia, após um longo trajeto de ônibus e metrô, voltam para buscar as crianças. Apesar de cansativa, é uma rotina funcional. No entanto, nos meses de julho e janeiro, as férias escolares alteram esse sistema. Com elas, a principal rede de apoio de muitas Marias fecha as portas. Como dar conta de tudo? Como conciliar trabalho doméstico, as demandas profissionais e a missão de entreter e ter tempo para os filhos?
Embora as crianças amem e, obviamente, precisem de férias, para os cuidadores, especialmente para as mães, que, na maioria das vezes, ficam com a tarefa do cuidado, esse pode ser um período desafiador. É nessa hora que fica latente a importância de uma rede de apoio a quem recorrer, empresas flexíveis para negociar acordos e políticas públicas que considerem a economia do cuidado.
Escola: uma importante rede de apoio
Para muitas famílias, o ambiente escolar não é somente o local de aprendizado de seus filhos, é também onde eles deixam as crianças para ir trabalhar. Porém, chegadas as férias, essa rede de apoio primária deixa de ser uma opção por algumas semanas, que parecem mais duradouras se demandar ainda mais malabarismos para conciliar trabalho dentro e fora de casa.
Andreia Convento, psicóloga e psicopedagoga, especialista em saúde mental e atenção psicossocial, explica que não existe um modelo ideal para essa conciliação, mas caminhos possíveis. “É preciso que cada família se estruture e se organize de acordo com sua rotina. “No modelo híbrido ou home-office, os pais vão ter que lidar com o fato de estarem trabalhando no mesmo ambiente que a criança e explicar que, mesmo assim, não estão disponíveis o tempo todo para dar atenção para ela.” Um espacinho isolado, com acesso restrito, para cumprir horários e rotina, ajuda a manter as demandas separadas.
“Conciliar trabalho, casa e filhos não é uma tarefa fácil, as cobranças são muitas de todos os lados. Ao tentar lidar com essas demandas é possível que alguma dessas tarefas seja comprometida. É importante a organização ou realizar concessões: em algumas situações, a criança vai precisar mais de você e, em outras, o trabalho.” Nesse caso é bom poder contar com uma rede de apoio e ter com que dividir as atividades, para evitar a sobrecarga de um dos cuidadores, sugere a especialista.
Cinara Carina Verni Rocha trabalha presencialmente, em horário comercial, e precisa recorrer às avós e à tia, alguns dias, para ficar com os filhos Filipe, 13, Pedro, 10, e Rebeca, 4, durante as férias. Embora sobre pouco tempo para dar a atenção que as crianças precisam, ela e o marido conseguem encontrar um tempo em comum para “distrair e sair um pouco da rotina de dias corridos”, conta. “Brincamos de jogos educativos, baralho, dominó. Tem uma pracinha perto da minha casa, que é bem arborizada e iluminada. Lá, as crianças costumam brincar de bola, pipa, skate e bicicleta.”
Já para Aline Pereira Tavares, mãe da Marcela, 6, a opção é tirar férias no mesmo período que a filha. “Eu trabalho no modelo híbrido: três vezes por semana, no presencial. No período letivo, a Marcela fica na escola em tempo integral. É um pouco mais caro, mas é a única opção que temos já que ela não tem avós ou tias que moram perto. Nas férias de julho e janeiro, eu sempre tiro férias para poder ficar com ela, pois a escola, mesmo sendo integral, fecha por 15 dias.”
Quem cuida não tira férias
Não há como falar de recesso escolar e alternativas para os pais sem tocar no assunto da economia do cuidado e o trabalho invisível – e não remunerado – que principalmente mulheres desempenham, embora movimente 11% do PIB (Produto Interno Bruto) brasileiro, de acordo com dados da ONG Think Olga, que trabalha com questões de gênero e intersecções. As protagonistas na economia do cuidado continuam sendo inviabilizadas nessa hora.
Cuidar do outro requer tempo, energia e muito equilibrismo, especialmente porque ter os filhos em casa geralmente não exclui todas as outras demandas: a mãe vai continuar precisando entregar os relatórios do trabalho, fazer o almoço, entreter as crianças, participar das reuniões…
As horas de cuidado somam cerca de 12 bilhões de horas por dia, segundo o relatório “Tempo de cuidar”, da Organização Oxfam, que atua em mais de 90 países promovendo soluções para o enfrentamento da pobreza, desigualdade e injustiça. Isso equivale a 24 vezes mais do que o trabalho do Vale do Silício, região que abrange diversas empresas de tecnologia majoritariamente masculinas. O Google, uma das maiores empresas por lá, tem 69% de funcionários homens, segundo dados da Big Tech sobre índices de diversidade.
Talvez, a questão seja entender que férias escolares não significam apenas “o que fazer com as crianças nesse período”, mas “como ajudar esses cuidadores”, não somente no recesso, mas durante todo ano letivo. Por isso, “empresas e governos podem fazer a diferença criando lugares mais inclusivos, permitindo assim que pais e mães encontrem o espaço que também merecem”, comenta a psicopedagoga.
Os ajustes na rotina em lares mais carentes dependem principalmente de políticas públicas. “O poder público poderia contribuir muito com soluções na área educacional, com leis trabalhistas, objetivos legais que apoiassem esses pais”, diz Convento. Entre as ações públicas destacadas pela psicóloga estão “a implementação de atividades de férias em escolas públicas para receber as crianças, projetos gratuitos que as recebessem durante esse período e creches abertas no recesso.”
Avanços para quem tem filhos e atua no mercado de trabalho formal
Pela Lei 14.457/2022, quem tem filhos de até 5 anos e 11 meses e faz parte do regime CLT tem direito ao auxílio-creche ou pré-escola. Além disso, pessoas com filhos, que tenham enteados ou pessoas sob sua guarda judicial de até 6 anos têm prioridade nas vagas de teletrabalho e trabalho remoto. Nos casos de crianças com deficiência, não há limite de idade. Empregados com filhos de até 2 anos têm ainda o direito a horários de entrada e saída mais flexíveis. Quem tem filho pequeno também pode contar com período de férias, mesmo antes do período previsto pela CLT.
Além das garantias legais, empresas podem criar políticas internas e iniciativas com diferenciais para os pais, sobretudo para atender colaboradoras mães, para que consigam conciliar demandas profissionais e a maternidade, sem que nenhuma delas precise deixar de existir. Algumas instituições contam com creches internas, horário diferenciado, flexibilidade para o home-office e até colônia de férias oferecida pela própria empresa. Mas essas ainda são exceções.
Na programação, muitas memórias afetivas e um pouco de tédio
É nessa fase de férias escolares que se ampliam as memórias afetivas construídas ao longo da vida do pequeno: o parquinho vira quintal de casa, dá para comer brigadeiro no fim de tarde de uma terça-feira e os dias são preenchidos com brincadeiras e passeios diferentes. Mas, muitas vezes, a solução é recorrer aos eletrônicos para entreter as crianças.
Isso é totalmente compreensível, desde que haja limites de uso. Ou seja, a tela não é a inimiga: a questão é o tempo que se fica nela. “Por mais que seja um recurso que atinja o resultado desejado no momento, tanto nas férias como fora dela, deve haver uma rotina, para que não afaste as crianças de outras brincadeiras e não cause danos ao desenvolvimento infantil se for um uso prolongado”, explica Convento. “Jogar videogame, desenhar, assistir TV podem provocar reflexões. Cada um tem o seu ‘fazer nada’ e é preciso respeitar.”
Quando a criança diz a famosa frase: “mãe, não tem nada para fazer!”, é hora de lembrar que, em vez de correr para pensar em algo para os filhos fazerem, o tédio pode ser muito bem-vindo. Ele permite que a criança tenha uma liberdade de vivência e pode, inclusive, ser importante para a saúde e a criatividade quando a escola e diversas atividades extracurriculares preenchem praticamente todo o tempo das crianças no restante do ano.
Apesar disso, em uma sociedade que vive uma busca infinita por produtividade, o ócio pode ser motivo de desespero, como se o tempo livre fosse tempo não aproveitado, e isso acaba sendo estendido às crianças. “Quando percebo que eles não estão fazendo nada, indico que brinquem entre eles no videogame, celular ou na TV”, conta Rocha. “Isso me incomoda um pouco, mas às vezes é a única saída. Sempre repito uma frase que ouvi: ‘ter 3 crianças é como ter um liquidificador sem tampa andando pela casa’.” O mesmo acontece na casa de Tavares: “Quando minha filha fica sem fazer nada, vai para o tablet ver vídeos na internet ou jogar Roblox. Ela não tem paciência para brincar sozinha.”
“As férias, assim como a infância dos filhos, passa em um piscar de olhos”, lembra a psicóloga. “Se os pais entenderem o quanto a lembrança é efetiva – além do fato de que contribui para um crescimento cognitivo e emocional saudáveis – vão fazer o possível para fortalecer esses momentos com os filhos.” Então, vale arrumar um tempinho para ficar com eles, mesmo que seja no fim de semana, entre uma tarefa e outra, ou na hora do jantar, quando todos estão em casa. Dia após dia, nas férias ou fora dela, é tempo de cuidar das crianças, sem esquecer que, por trás de toda infância bem cuidada, tem também um adulto precisando ser visto.
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Andreia Convento dá algumas dicas: