Entenda como as discussões sobre o fim da jornada de trabalho com uma folga por semana mobiliza a sociedade e influencia diretamente nos direitos das crianças
Questionar a escala 6x1 influencia diretamente a luta pelos direitos das crianças. Para especialistas, protegê-las implica cuidar das condições de trabalho dos adultos que cuidam delas, sendo a conta mais pesada para as mães que enfrentam duplas jornadas.
“Eu queria ter mais tempo de qualidade com o meu filho”, diz Rafaela Silva, atendente de uma loja de departamentos. O desejo dela é também o de muitas mães e pais trabalhadores, que se encontram em rotinas exaustivas de trabalho na escala 6×1 – quando o empregado tem direito a uma folga a cada seis dias trabalhados. Rafaela é mãe solo de Davi, 8 meses, que ainda mama, “mas só no fim da tarde quando eu chego em casa e de manhã cedinho ao acordar”, conta.
Ao pensar o que poderia fazer se tivesse mais dias de folga além de ficar com seu bebê, ela cuidaria do próprio bem-estar. “Eu gostaria de treinar algo, andar de bicicleta e continuar a faculdade de Recursos Humanos que tive que largar”, afirma. Mais tempo com a família e possibilidades de fazer planos pessoais são argumentos presentes nas discussões atuais sobre o fim da escala 6×1.
Destaque nas redes sociais, o assunto mobilizou a sociedade a partir da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que prevê uma revisão na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), e que ainda será protocolada. Embora não haja decisões concretas, a ideia já está em pauta na esfera política e social. Além disso, após protocolada, a PEC passará por comissões especiais na Câmara e no Senado para aprovação.
Para Pedro Hartung, diretor de Políticas e Direitos das Crianças do Instituto Alana, “proteger as crianças implica cuidar das condições de trabalho dos adultos que cuidam delas”. Ele defende que o compromisso deve envolver tanto as empresas quanto o Estado, com políticas que “evitem jornadas exaustivas e promovam um equilíbrio saudável entre vida pessoal e trabalho”.
Do mesmo modo, Hartung explica que essa dinâmica afeta diretamente os direitos e o bem-estar das crianças. “Esses modelos restringem o tempo que mães, pais e cuidadores podem dedicar aos filhos, impactando o direito da criança à convivência familiar e comunitária, previsto em tratados internacionais e na própria Constituição”, diz. Segundo ele, a falta de convivência próxima com a família pode gerar prejuízos no desenvolvimento emocional, psicológico e social das crianças.
“Momentos de interação e afeto são essenciais para a construção de vínculos seguros e saudáveis. Portanto, mães, pais e cuidadores exaustos podem ter dificuldade em participar ativamente na vida dos filhos, desde o acompanhamento escolar até o suporte emocional”, afirma.
“Em uma sociedade em que as crianças dependem dos adultos para orientação, educação e segurança, assegurar que mães, pais e cuidadores tenham condições adequadas de trabalho significa garantir que elas cresçam em um ambiente saudável e apoiador”
No caso das mulheres, as jornadas duplas ou triplas de trabalho muitas vezes não entram na conta da remuneração no fim do mês. Mesmo assim, lotam a agenda e causam uma sobrecarga mental. Conforme a pesquisa da InfoJobs, plataforma de divulgação de vagas de emprego, 83% das mulheres entrevistadas vivem dupla jornada de trabalho, com a ocupação das atividades domésticas e serviços de cuidado com crianças e idosos. Além disso, 45% não contam com uma rede de apoio ou com a ajuda de parceiros.
No cronograma de Rafaela, apenas o domingo é o dia em que consegue passar mais tempo com Davi e olhar para as tarefas acumuladas da casa. “Se eu trabalhar no domingo, tenho um dia de folga durante a semana. Mas, nessa folga, não sei se arrumo a casa ou descanso”, diz. A jornada é de oito horas por dia, com entrada às sete e vinte da manhã, pausa para o almoço e saída às quatro e quarenta da tarde. “Porém, não almoço em casa porque moro longe, então, como na loja. Só vejo meu filho de manhã, quando acordamos juntos, e no fim da tarde, quando vou buscá-lo na casa da minha mãe”, conta.
Se Davi precisa ir ao médico – lembrando que bebês têm consultas e vacinas todos os meses -, é a avó que leva. Ou seja, Rafaela não consegue acompanhar de perto essa etapa. “Quando minha mãe não pode levar, eu vou com ele, mas preciso mudar o horário no trabalho e entrar no que a gente chama de ‘fechamento’, que é começar ao meio-dia e sair às nove e vinte da noite”, explica.
A psicóloga Fátima Macedo, especializada em Psicologia da Saúde Ocupacional e que presta consultorias em diversas empresas do setor comercial, diz que a diminuição na jornada de trabalho seria positiva principalmente para as mães solo. “Elas enfrentam desafios particulares relacionados à chamada ‘economia do cuidado’, que envolve tarefas não remuneradas, como afazeres domésticos e cuidados com filhos e familiares”, afirma.
Nesse cenário, tendem a manifestar um estresse crônico, “que pode levar a dificuldades de concentração, tomadas de decisão ineficazes e, assim, a uma sensação de incapacidade. Isso tudo resulta no aumento da ansiedade e de sintomas depressivos”. O sentimento de culpa por não estar fisicamente e emocionalmente disponível para os filhos também é uma das consequências do tempo excessivo no trabalho.
“Dados do Ministério da Saúde indicam um aumento nas licenças médicas relacionadas a transtornos mentais. Isso acontece especialmente em mulheres com filhos pequenos, reforçando a necessidade de repensar essas rotinas de trabalho”, argumenta.
A maior presença dos homens nas tarefas de cuidado com os filhos também seria uma das consequências da diminuição da jornada de trabalho. As atuais defesas das políticas de ampliação de licenças parentais, como a licença-paternidade, evidenciam benefícios para toda a família. Isso porque promove a distribuição equilibrada do trabalho de cuidado e permite que o pai esteja mais envolvido nos primeiros meses de vida das crianças, período fundamental para a formação de vínculos e para o desenvolvimento físico e emocional.
A mobilização nas redes sociais levou o tema “escala 6×1” a se tornar um dos assuntos mais comentados da internet, segundo os “assuntos em alta” do X, antigo Twitter. Do mesmo modo, usuários da rede social Linkedin, voltada para a divulgação e informações sobre trabalho, debateram sobre a PEC. A publicitária Amanda Rodrigues, por exemplo, questionou: “A quem interessa lucrar com o cansaço da população? A quem interessa distrair as pessoas com trabalho incessante, impedindo-as de pensar?”.
A inquietação gerou interações a favor de mais dias de descanso para o trabalhador e sobre a jornada de 44 horas semanais “não ter sido criada para a rotina das mulheres”. Amanda contou, ainda, como era a dinâmica na época em que trabalhava na 6×1. “Eu acordava às seis horas, pegava um ônibus para deixar minha filha de três anos na escola e ia pra faculdade já atrasada. De lá, ia direto para o trabalho e seguia até às 22 horas.”
Para os representantes políticos, a discussão envolve outras camadas, como o impacto na economia e a informalidade do trabalho. A advogada especialista em Direito e Processo do Trabalho, Juliana Mendonça, explica que, a curto prazo, ter mais tempo para a família seria positivo. No entanto, ela alerta para a possibilidade da jornada de quatro dias na semana gerar a mecanização do trabalho, contratação com baixos salários e maior informalidade. “A longo prazo, isso obrigaria o empregado a trabalhar nos dias de folga em outros lugares”, diz.
Fátima Macedo reitera que há o risco de trabalhadores utilizarem o tempo adicional em outro emprego e minimizar os benefícios esperados. “Para evitar esse problema, seria importante, então, acompanhar de perto as políticas de gestão e criar incentivos para o uso do tempo de folga em atividades de lazer, descanso e desenvolvimento pessoal”, reforça a psicóloga.
Por outro lado, Pedro Hartung defende que a economia e o mercado de trabalho só têm a ganhar ao priorizar políticas trabalhistas que considerem o bem-estar das famílias. Isso porque “sem uma rede de proteção efetiva e um suporte adequado para quem exerce o cuidado, a sociedade como um todo é prejudicada”.
Ele ainda ressalta que adotar novos modelos de jornada e flexibilização no trabalho é uma necessidade urgente. “É um passo fundamental para garantir que os adultos possam cuidar de si mesmos e de suas famílias. Portanto, o compromisso coletivo é essencial para o bem-estar das crianças, para a valorização do trabalho de cuidado e para a construção de uma sociedade mais justa e equilibrada.”
No Brasil, a escala 6×1 é mantida principalmente para trabalhadores no setor do comércio, como em bares, restaurantes, supermercados, farmácias e outros serviços de atendimento. No entanto, mais de 15 empresas começaram a testar a semana de quatro dias desde o ano passado. A iniciativa faz parte de um estudo da organização 4 Day Week Global, que conduz testes mundiais sobre a carga horária de trabalho reduzida.
Um estudo de instituições de emprego americanas e francesas mostrou que 73% dos brasileiros acreditam que “uma semana de 4 dias de trabalho melhoraria a produtividade”. Desse modo, as consequências seriam também a redução do estresse, e “maior lealdade à empresa”, com a diminuição das faltas, como diz o texto.
Segundo Pedro Hartung, modelos com menor carga horária, flexibilidade e ampliação das licenças parentais são avanços comprovados. “Em muitos países, isso tem possibilitado que as famílias passem mais tempo de qualidade juntas. Então, esse tipo de política permite que os adultos sejam mais presentes na vida das crianças, auxiliando no seu desenvolvimento e criando um ambiente mais estável e acolhedor”, explica o diretor.
Entre 2015 e 2019 o maior teste piloto de semanas de trabalho mais curtas foi realizado no Reino Unido e na Islândia. Segundo a CNN Business, esses testes apontaram que não houve queda na produtividade mas sim o aumento no bem-estar dos funcionários. Portugal e Inglaterra são outros exemplos que têm empresas na escala 4×3 por meio de experimentos sociais.
Já na Escócia, o assunto foi pauta de promessas políticas em que os trabalhadores terão as horas reduzidas em 20% sem sofrer redução de salários. O Governo apoiará as empresas participantes com mais de 11 milhões de euros. De acordo com uma pesquisa do Institute for Public Policy Research, no país, 80% das pessoas disseram que o programa melhoraria muito sua saúde e felicidade.
A advogada Juliana Mendonça lista o que as mães trabalhadoras têm direito atualmente no país e orienta que, em caso de alguma violação, elas devem procurar um especialista para ajudar a ter esses direitos garantidos na prática. Saiba quais são:
Lactantes:
Gestantes:
Adotantes:
Todas:
O Ministério do Trabalho e Emprego afirmou, em nota, que acompanha o debate e que a redução da jornada é “plenamente possível e saudável”. Porém, a pasta ressaltou que o assunto deve ser tratado em acordos coletivos entre empresas e empregados. Entenda o que diz a lei atual:
Como funciona hoje?
A CLT permite um dia de folga para cada 6 dias trabalhados, com o limite de 44 horas de trabalho semanais.
Como ficaria?
A PEC propõe que a escala de trabalho mude para o modelo 4×3, com três dias de folga para cada quatro trabalhados.