Na capital mineira, pais, crianças e coletivos discutem as dificuldades de promoção e acesso à arte, cultura e lazer nos bairros periféricos da cidade
Ativistas, pais e artistas de Belo Horizonte debatem como a falta de acesso a atividades culturais e de lazer nos bairros periféricos da capital mineira impacta a qualidade de vida das crianças.
“A gente não quer só comida, A gente quer comida, diversão e arte!” Quem não se lembra da canção “Comida”, do Titãs, composta em 1987? Mais atual do que nunca, vale uma carona nesse clássico da música popular para embalar uma reflexão sobre a infância dos pequenos cidadãos brasileiros e o acesso a atividades infantis.
Desde 1988, a Constituição Federal traz em seu artigo 227 o “dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária de toda criança e adolescente”.
Se nem os direitos à saúde, à alimentação e à educação são assegurados a muitas crianças, como fica o acesso à cultura e ao lazer?
Nas periferias e bairros mais distantes dos centros das grandes cidades, a ausência de atividades culturais e opções de lazer e entretenimento é comum no cotidiano dos pequenos. A falta de tempo, principalmente das mães – sobrecarregadas pelas longas jornadas de trabalho e pelo cuidado solitário da casa e dos filhos -, os preços abusivos e a distância das atrações tornam-se obstáculos para garantir o direito das crianças.
Em Belo Horizonte (MG), artistas, ativistas e pais discutem e tentam mudar esta realidade. Segundo uma recente pesquisa realizada pelo grupo Conecta Mães BH, com 225 mães e responsáveis por crianças menores de 12 anos residentes na capital mineira e região metropolitana, 66% das famílias dizem levar os filhos de vez em quando a atividades artísticas e culturais voltadas ao público infantil.
A pesquisa mostra que 42,4% dos respondentes justificaram a pouca frequência da participação dos filhos em eventos infantis devido à falta de tempo, 30,3% devido aos preços abusivos e 14,1% por causa da distância.
A advogada Juliana Guimarães, mãe de dois filhos e uma das responsáveis pelo coletivo, diz que conseguir financiamento para eventos culturais é um dos principais desafios. “Fazer um evento gratuito sem qualquer tipo de financiamento é tarefa árdua. Conseguir pessoas dispostas a doar tempo e trabalho, sem algo concreto em troca, também é um empecilho que dificulta a realização desses eventos com mais frequência.”
A Cia Pé de Moleque, do casal Juliana Daher e Isaac Luís, desenvolve desde 2013 trabalhos artísticos voltados ao público infantil e suas famílias, além de oficinas e formação de educadores em Belo Horizonte. Para Juliana, que também é mãe, o artista que aprova um projeto em uma lei de incentivo à cultura deve ter a obrigação de pensar em ações descentralizadas, já que estamos falando de dinheiro público.
“Acho um absurdo um projeto não circular e não chegar às crianças e famílias dos territórios descentralizados, principalmente quando é aprovado com recurso público”, critica Juliana.
“A cultura é um direito e nós, como agentes culturais, temos que garantir esse direito à população”
O movimento social BH pela Infância incentiva a reflexão sobre a cidade e a criança, integrando o debate sobre educação, cultura, alimentação, saúde e sustentabilidade, por meio de eventos infantis gratuitos. Para Desirée Ruas, co-idealizadora do movimento, é preciso compreender como o direito à arte e à cultura na infância é negligenciado. Segundo ela, a falta de recursos e de projetos gratuitos que atendem a uma melhor distribuição geográfica dos eventos são os maiores obstáculos para a promoção de atividades culturais a todas as infâncias da cidade. Ela defende o protagonismo infantil como caminho para garantir esse direito.
“Os eventos culturais para a infância precisam valorizar os artistas da região e engajar mais as crianças com atividades que escutem o que elas têm a dizer. Que tipo de atração elas gostariam de ter?”
Luciana Gonçalves que é mãe de duas meninas, produtora cultural e moradora da periferia, acha que os eventos culturais infantis não contemplam todas as crianças, possuem pouca diversidade e representatividade – ao não considerar a cultura negra e indígena, por exemplo – e carecem de uma estrutura mais adequada para este tipo de público.
“Sempre tento levar minhas filhas em algum evento ou espetáculo. Mas percebo pouca diversidade. Elas acabam participando de atividades com classificação livre do que aquelas realmente voltadas ao público infantil”, conta.
“Na região em que moramos, minhas filhas nunca participaram de teatro, música, dança ou oficinas exclusivas para crianças”
Ela conta que queria mais parques e um teatro perto de sua casa. “Já fui [a um teatro], mas nem me lembro quando!”
O menino gostaria que houvesse uma pracinha bem grande perto de sua casa para andar de bicicleta, brincar de esconde-esconde com seus amigos e passear com sua mãe. “Queria também uma quadra de futebol perto da minha casa para eu jogar bola!”
As irmãs mostram o quanto as crianças estão atentas ao mundo que as cercam. Para Luiza, seria mais fácil se o teatro fosse perto de casa, porque gostaria de assistir a apresentações de balé. Luana completou dizendo que queria mais laboratórios para “fazer ciência” perto de casa e outros locais para aprender música sem ser com os “instrumentos do papai”.
A assistente social Lauana Chantal, mãe do Caio e da Odara, ressalta que a pandemia enfraqueceu ainda mais este vínculo com a cultura e o lazer. “As crianças terão dificuldade para pensar formas descentralizadas do brincar pós-pandemia já que estão impedidas de praticar diversas atividades e passam maior parte do tempo diante da TV ou de eletrônicos”, argumenta.
Mestre em Ciências Políticas, editora da revista Piseagrama e mãe da Rosa e da Antônia, Fernanda Regaldo explica que, ao considerar várias cidades do mundo onde o poder público atua de maneira positiva, buscando realmente criar situações de proteção à infância e à população, é dever do Estado expandir as possibilidades de recreação e de lazer ao ar livre, principalmente no contexto de pandemia.
Segundo ela, a maioria dos estudos pós-pandemia sobre a criança no contexto urbano citam a importância de acesso a espaços de lazer ou áreas verdes perto de casa (a 10 minutos de onde moram), para que elas possam correr, brincar livremente e se desenvolver. No contexto atual, isso garantiria também que as crianças não ficassem confinadas em suas residências.
“São necessários solução arquitetônica e planejamento urbano para que todas as crianças possam ter acesso a áreas de lazer e consigam passar o momento de pandemia de forma mais saudável”, explica.
Segundo nota enviada pela Secretaria Municipal de Esportes e Lazer de BH (SMEL), a prefeitura afirma buscar a descentralização do eventos infantis, por meio da realização de Ruas de Lazer (ruas abertas para as pessoas aos domingos, das 9h às 13h), e do programa BH É da Gente, disponibilizando espaço para atividades ao ar livre e à promoção de apropriação dos espaços públicos nas regionais Centro Sul, Noroeste, Oeste e Pampulha.
Contudo, vale ressaltar que as regionais Barreiro, Leste, Norte e Venda Nova (regiões periféricas) ainda são pouco contempladas por programas da prefeitura. Em nota, a SMEL informou que as ruas de lazer podem ser solicitadas pelo e-mail recrear@pbh.gov.br e esclarece que “tem trabalhado para descentralizar suas ações e atender todas as regiões de BH, entendendo que é importante estar próximo das comunidades”.
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Na pesquisa realizada pelo Conecta Mães BH, algumas considerações foram pontuadas pelas mães, entrevistadas de forma anônima: