Ouvir alunos, identificar sinais de alerta e combater o bullying são estratégias para cuidar da saúde mental de crianças e adolescentes no ambiente escolar
Para psicólogos, as escolas devem ser espaços seguros de acolhimento para crianças e adolescentes que estão sofrendo. Apesar de ser lei, poucas instituições têm profissionais capacitados para agir em casos de violência nas escolas, bullying e problemas de saúde mental.
Maria Clara, 17, sempre foi uma aluna ativa: participava dos eventos, tinha seu grupo de amigos e boas notas. Com o retorno às aulas presenciais após a pandemia e os conflitos familiares, Maria passou a ter crises de ansiedade no meio das aulas. “Várias vezes eu saí da sala chorando e perdi o ar. Ninguém sabia o que eu estava passando“, lembra. Mas, os professores perceberam a mudança de comportamento e a convidaram para ser atendida por psicólogos do projeto “Adote um estudante”, da escola estadual Joaquim Bastos Gonçalves, em Carnaubal, interior do Ceará. “Quando me chamaram, eu fiquei com vergonha em aceitar porque achava que meus colegas iam pensar que eu estava ficando maluca. Mas foi a melhor coisa na minha vida.”
Assim como ela, Erivan, 17, teve os problemas de saúde mental acolhidos dentro da escola. “Eu tinha dificuldades em demonstrar e identificar meus sentimentos. Era antissocial e não conversava muito, pois tinha medo de julgamentos. Então, guardava esses conflitos comigo mesmo”, recorda. “A realidade de cada aluno é diferente. Tem colegas que enfrentam traumas, ansiedade e até depressão. Por isso, a escola pode ajudar muito no sentido de acolher e cuidar, porque aqui é a nossa segunda casa.”
“Quando a escola olha para a nossa saúde mental, a gente percebe que não somos só um número na chamada ou uma aprovação no vestibular, mas que temos histórias e uma vida que precisa ser cuidada e amada”
Os encontros semanais com mais de 20 psicólogos que atendem on-line e de forma voluntária no contraturno das aulas fizeram diferença na rotina da escola. Além da melhora na autoestima e no autocontrole, os adolescentes ficaram mais interessados nas atividades escolares, mais comunicativos e empáticos com as dores dos outros. O projeto “Adote um estudante” promove a saúde mental por meio de rodas de conversas em piqueniques fora da sala de aula, oficinas de artesanato e trabalhos escolares em que os alunos são protagonistas. Ano passado, a escola ganhou o prêmio de “Melhor escola do mundo”.
As histórias de Maria Clara e Erivan deveriam ser uma regra a respeito do acolhimento de questões de saúde mental por parte das escolas no país. No entanto, a realidade mostra que há um déficit entre o número de psicólogos presentes nas instituições e o volume de estudantes que precisam de atendimento. Até 2022, por exemplo, o Censo Escolar mostrava que a média nacional era de um psicólogo para 1.900 alunos. Ou seja, é insuficiente para suprir as necessidades dos estudantes.
Desse modo, após episódios de ataques violentos em escolas e casos de suicídio de estudantes, o Governo Federal institui, no início do ano, a Política Nacional de Atenção Psicossocial nas Comunidades Escolares. Segundo a Lei 14.819, todas as escolas públicas devem ter ações de promoção, prevenção e atenção psicossocial. Para isso, elas precisam oferecer espaços de reflexão e contratar psicólogos. A responsabilidade é do Governo Federal, que incluiu a política ao Programa Saúde na Escola (PSE), integrando os Ministérios da Saúde e da Educação.
Para o psicólogo Filipe Colombini, mestre em psicologia da educação e terapeuta de crianças e adolescentes, as ações precisam ser sempre coletivas, com espaços abertos para discutir sobre saúde mental e treinamentos antibullying para toda a comunidade escolar. “Eles precisam saber como identificar e denunciar, para quem pedir ajuda e como dar suporte. Não pode restringir a responsabilidade apenas ao psicólogo da escola porque lá não é um consultório, e as questões não são só individuais, mas também institucionais”, defende.
Portanto, quando uma criança ou adolescente está em sofrimento, é necessário perceber os sinais que são verdadeiros pedidos de ajuda. Eles envolvem isolamento na hora das interações, queda repentina no desempenho, falta de interesse, tristeza excessiva ou agressividade.
Segundo Colombini, durante as consultas, os estudantes se queixam de estresse pela cobrança por um bom desempenho na escola e também de bullying, que desencadeia problemas ainda mais sérios. “Eles se sentem presos e sufocados; têm ansiedade, estresse, depressão, falta de motivação e atenção. Tudo isso se materializa no comportamento demonstrando que eles não estão dando conta e precisam ser acolhidos”, afirma. Assim, para se livrarem de um cenário de falta de acolhimento e de validação dos sentimentos, a saída costuma ser a mais drástica”, diz.
“Nunca são os agressores que nos procuram, só as vítimas. Quando um aluno busca ajuda, ele já está adoecido. Depois de passar muitas vezes por alguma situação de agressão – geralmente, sofrendo calado por muito tempo, esse aluno está quase explodindo de maneira violenta. Isto é, está à beira de uma crise ou já está em crise”, conta Audevânia Lopes. Ela é psicóloga escolar e clínica do Instituto Cidadania Através do Esporte, Educação e Cultura (CADES), que leva atividades esportivas e atendimento psicossocial às escolas públicas de São Paulo.
“Alguns alunos e até profissionais da escola acham que o bullying é brincadeira e não têm noção da gravidade e intensidade que isso pode causar na vida do outro”
Uma vez que as escolas são locais de muitos conflitos, preconceito e bullying, Lopes enfatiza a importância de atuar preventivamente. Ou seja, educar desde cedo e de forma constante a comunidade escolar para combater o que ela chama de ciclo do bullying. O ciclo envolve os seguintes atores: a vítima, que sofre calada; o observador, que vê as agressões, mas não fala nada; os apoiadores, que têm medo de quebrar a regra e seguem de plateia; e o agressor, que precisa desse público para se sentir superior, explica.
O apoio psicológico precisa, portanto, atender a todos, mas a vítima em primeiro lugar e, depois, o agressor. No entanto, ela conta que já atendeu “agressores que não se davam conta do mal que estavam fazendo com os colegas”.
No Ceará, os estudantes que tiveram atendimento psicológico e foram ouvidos pelos professores mostram que escolas têm que ser espaços de acolhimento, e não de repressão. Portanto, estar atento às mudanças de comportamento dos estudantes e ter ações efetivas contra o bullying são passos importantes para cuidar da saúde mental nas escolas de maneira sensível.
“Eu não tinha informações sobre onde procurar ajuda e o projeto me ajudou na convivência dentro da escola e em casa. Voltei a falar com o meu pai, a me concentrar nos estudos e isso foi transformador”, conta Maria Clara. Já Erivan conseguiu apresentar trabalhos em público e conversar mais com os colegas. “A terapia e as atividades mudaram minha forma de ver a realidade do mundo e a minha realidade”. Para ele, a escola tem a responsabilidade de formar cidadãos e cuidar da saúde mental dos alunos, “porque a pessoa precisa se conhecer, entender seus sentimentos e aceitar os momentos de fraqueza, não apenas ser o melhor em tudo”.
Na mesma linha, o psicólogo Filipe Colombini enfatiza que “a escola é responsável pela educação de valores humanos, e não só de resultados acadêmicos”. Também é preciso que a escola e as famílias estejam em diálogo com os alunos. Apesar disso, segundo ele, ainda há despreparo dos profissionais. “Não se trata só de fazer campanhas ou promover palestras. Mas atuar todos os dias e dar prioridade para essa questão.”
“Os professores precisam estar atentos e mostrar que não é admissível ter bullying em sala de aula e em outros espaços”, complementa a psicóloga Audevânia Lopes. “A instituição deve tomar as medidas necessárias e não deixar que isso passe como brincadeira, pois a conscientização tem que ser de dentro da escola para fora.”
Um levantamento feito em parceria entre a Fundação Lemann e a organização Vozes da Educação mostrou como alguns países tratam a saúde mental dos estudantes a partir de políticas públicas específicas. As ações vão desde garantir um orçamento para programas de atendimento psicológico para crianças e adolescentes nas escolas até projetos com atendimentos on-line e em clínicas ambulantes. Confira algumas iniciativas que deram certo:
Chile
Escolas de regiões de vulnerabilidade econômica e social do país são atendidas pelo “Programa Habilidades para a Vida“, há 26 anos. Assim, depois de um diagnóstico de cada escola, acontecem intervenções psicossociais e ações coordenadas junto à comunidade para melhorar as habilidades pessoais, a saúde mental e o desempenho escolar dos estudantes.
Canadá
Programas regionais tratam a saúde mental como prioridade na vida de crianças e adolescentes. O projeto “School Mental Health Ontario“, por exemplo, atende alunos de todos os níveis da educação escolar e envolve familiares e professores. Além disso, disponibiliza uma plataforma on-line que informa os locais de atendimento com profissionais, consultas virtuais, por telefone, presenciais e em clínicas ambulantes.
Finlândia
Desde 2014, uma lei determina a garantia do bem-estar dos estudantes a partir da promoção da saúde física e mental. Os projetos devem atender a educação infantil até o ensino superior com a inserção de assuntos relacionados no currículo escolar, equipe multiprofissional e um sistema de apoio psicológico em todas as instituições.
Austrália
Existem dois projetos ativos: o “Seja Você”, que cuida da primeira infância até os 18 anos; e a “Estratégia Nacional de Saúde Mental e Bem-Estar Infantil”, para crianças até 12 anos. Ambos são financiados pelo governo e atendem estudantes, famílias e profissionais da educação. Nesse sentido, além da presença de psicólogos nas escolas, há orientações sobre intervenção precoce e sobre como encaminhar para atendimentos específicos, por exemplo.
Desde 2001, foram 37 ataques violentos às escolas registrados no país. Os anos de 2022 e 2023 concentraram 58% do total. Ao mesmo tempo, um estudo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) mostrou que a taxa de suicídio entre jovens no Brasil cresceu 6% entre 2011 e 2022. Já as autolesões aumentaram 29% entre pessoas de 10 a 24 anos.