Reconhecido como a maior festa de rua do planeta, o Carnaval de Salvador reúne multidões chegando a 11 milhões de pessoas em 2024, segundo o Governo da Bahia. Nesse “verdadeiro chame gente”, conforme canta Armandinho e Moraes Moreira, crianças e adolescentes participam da folia na programação oficial da cidade. Muitos têm o Carnaval como herança e aprendem, desde pequenos, a viver essa cultura todos os outros dias do ano.
É o caso de Pietra, de 9 anos, que toca tambor na Didá, primeira banda afro-percussiva feminina de Salvador, fundada em 1993. Conforme ela mesmo reflete, ser criança dentro desse movimento cultural e de resistência é encontrar um lugar maior na festa. “O que eu vejo de mais especial na Didá é que as meninas e as mulheres podem ser livres para tocar, dançar, escrever, cantar e ser o que quiserem”, diz. Além disso, reforça a vontade de estar nesse lugar. “Como criança ativa, me sinto feliz e honrada em fazer parte desse grupo que é tão especial para o mundo.”
Neste carnaval, Pietra levará para a avenida uma homenagem à ancestralidade, pois o tema da Didá para 2025 é “Rainhas do Samba Reggae nos Mistérios da Roma Negra”. Será, portanto, uma lembrança às matriarcas, Mãe Aninha e Mãe Senhora, do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, pioneiras na resistência e respeito às religiões de matriz africana.
No tradicional Circuito Osmar, no bairro do Campo Grande, ela caminha batucando junto com outras crianças. “Tô na Didá desde pequenininha, levada por minha mãe. Então, ver ela ali me faz querer continuar seguindo o ritmo da música”, conta. A mãe é a vocalista Madah Gomes que, de cima do trio elétrico, dá letra ao batuque da filha e de outras meninas e mulheres da banda.
A escolha da banda em saudar as mulheres que vieram antes também está na base do que Madah ensinou à filha. “Vamos enaltecer as nossas mais velhas, as que abriram caminhos com movimentos, atos políticos e artísticos”. Para Pietra, esse aprendizado não está restrito ao Carnaval porque ela estuda a importância do legado de outras mulheres no projeto Sódomo, mantido pela própria Didá. Lá, as crianças têm aula de teatro, dança, percussão, reforço escolar e aprendem sobre coletividade e cidadania. Em iorubá, Sódomo quer dizer “cuidar de uma criança como se fosse o seu próprio filho”.
“Estar no Carnaval da Didá, tocar na avenida com essas meninas é uma coisa muito empoderada. Vejo que meu cabelo é lindo, que minha pele é linda e que eu sou linda.”
Para as crianças engajadas, o Carnaval é cultura que dura o ano inteiro
Foi por causa do Ilê Aiyê que o Carnaval de Hévila, 15, começou a durar o tempo da festa e mais todos os outros dias do ano. Nascida em Tucano, no interior da Bahia, atualmente mora no Curuzu, bairro de Salvador onde fica a sede do primeiro bloco afro do Brasil. Foi lá que a palavra “ilê” ganhou sentido literal para a menina.
“O Ilê hoje é a minha segunda casa, sinto como se eu tivesse crescido ali”, conta. O plano era se aproximar do bloco logo que chegou na cidade, mas a pandemia fechou tudo. Hévila, então, esperou até um sábado de Carnaval, em 2023, quando viu a saída do Ilê da Senzala do Barro Preto. “Que energia inexplicável! Quando vi as pessoas que estão construindo essa trajetória de existência e resistência há 50 anos, entendi que era onde eu queria estar.”
Ainda em 2023, Hévila conseguiu uma vaga na Band’erê, grupo mirim do bloco. Ano passado, tocou surdo no Carnaval e lembra que a experiência mostrou porque o Ilê é conhecido como O Mais Belo dos Belos. “É diferente de quando você acompanha de fora. O que a gente sente de estar ali, tocando, é uma coisa ancestral. Quando você ouve o batuque dos tambores, sente o pelo arrepiar, na beleza do bloco, na beleza das mulheres, na dança das pessoas. É algo muito, muito lindo”.
Para Hévila, Ilê é casa e escola, já que a Band’erê promove educação musical e formação social, política e econômica, valorizando a cultura negra e a educação antirracista. “É onde eu tenho aprendido sobre empoderamento, sobre a história dos nossos ancestrais e sobre o potencial que nem mesmo eu sabia que tinha”, afirma.
Roberta Reis, mãe de Hévila, conta que também foi por causa do Ilê Aiyê que aprendeu a amar o Carnaval. Além disso, estar dentro do bloco a fez se entender como uma mulher preta e a ajudou a empoderar as filhas. “Fico muito feliz de ver as duas aprendendo sobre essa cultura, tendo as Deusas do Ébano como referência, coisa que não tive quando criança e que poderia ter me ajudado a lidar com o racismo”, conta. Para Roberta, é uma alegria ver que Hévila “respira Ilê”. “Ela vive estudando, ouvindo as músicas e escrevendo, porque também é poeta, tem as aulas, as atividades, os eventos. Participa de tudo e eu sou muito grata por essa oportunidade.”
Movimento se renova e as gerações guardam memórias
A presença de crianças no Carnaval de Salvador é de extrema importância, defende o professor e pesquisador do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Paulo Miguez. Atualmente reitor da Ufba, ele explica que o elo entre a ancestralidade e as formas de brincar o Carnaval se renova com o tempo. Nesse sentido, a própria ideia da brincadeira, sugerida pela festa, é um convite para as infâncias.
“É importante a criança perceber o significado dessa festa grandiosa e saber como a cidade se transforma para esperá-la. Tudo isso faz com que, ao crescer, ela tenha material de sobra para entender o Carnaval, curti-lo e defendê-lo como um patrimônio e como algo que serve, inclusive, para contar a sua história.”
Na avaliação do pesquisador, o Carnaval deveria estar no currículo de todas as escolas, desde a primeira infância, como acontece em Trinidad e Tobago, por exemplo. “O Carnaval contribui com a formação cidadã porque pode mostrar às crianças o território da festa como lugar que carrega memória, resistência e uma relação de respeito à rua, ao espaço público e à história da cidade”, defende.
Sobre as memórias de Miguez da própria infância no Carnaval, as recordações chegam a 1960, quando tinha 6 anos. Em um baile infantil, ele lutava em uma “batalha de confete” e também conta que as crianças daquele tempo brincavam com os tubos metálicos de lança-perfume. “Nenhum menino usava, claro, era um hábito dos adultos. Mas a gente pegava os tubos justamente para ‘lançar’ uns nos outros. Era uma sensação boa em quem recebia o jato gelado, só não podia deixar cair nos olhos, porque ardia.”
Outra memória mais recente do Carnaval é de Alice, 18 anos, que só recorda dos festejos a partir da presença do BaianaSystem, banda de Salvador que juntou a guitarra baiana e o sound system jamaicano. O pai, o guitarrista Beto Barreto, idealizou o projeto em 2009, quando Alice tinha dois anos de idade. “Fui percebendo aos poucos que meu pai trabalhava tocando numa banda. Então aquilo era bem natural na minha vida”, conta.
No começo, ela acompanhava o pai e a mãe, Luty Machado, em shows, ensaios e camarins, onde convivia com a banda e outros filhos. “Com uns quatro anos, lembro que fui num show e eles tocaram ‘Jah Jah Revolta Parte 2’ e ‘Terapia’. Eu achava as letras engraçadas porque não tinham muito sentido mas ficava meio fascinada”, lembra.
Já crescida, Alice entende quando o BaianaSystem canta que “nada vai passar por cima de quem corre atrás” e “ouço a terapia do som que faz bem”. A educação musical foi espontânea e incluiu muita música cantada pela mãe e pelo pai, em um repertório que deu a ela uma visão mais sensível das coisas. “Crescer ouvindo Palavra Cantada, Caetano Veloso, Moraes Moreira e Gilberto Gil foi criando meu senso musical. Por isso, hoje eu entendo muito mais o trabalho do meu pai e tenho muito orgulho e admiração.”
Ao ver a geração de Alice com um olhar mais politizado para o Carnaval, Beto Barreto lembra de como ele construiu essa consciência desde cedo. Foi participando de um bloco sem cordas com o pai e a mãe, na chamada pipoca, e depois atrás de blocos afro, como o Ilê Aiyê, e dos afoxés, agremiações consideradas “candomblés de rua”, como, por exemplo, os Filhos de Gandhy. “A gente entende muito o Carnaval como uma manifestação. Na nossa música, nas nossas pesquisas, falamos disso: da sabedoria dos grandes mestres e da referência aos criadores”, explica.
Ele recorda que levava Alice pequena ao Centro Histórico para brincar em bloquinhos de rua e ver os blocos afro. Po risso, para a família, essa é uma experiência enriquecedora e importante para quem está com crianças no Carnaval de Salvador. Mas, já com a maioridade, Alice decidiu acompanhar este ano a pipoca do Navio Pirata, trio independente do BaianaSystem que arrasta multidões na batida das músicas. “Quero ir atrás dessa pipoca, coisa que meu pai antes não deixava. Este ano eu decidi que já posso fazer isso e vou.”
40 anos de Axé Music e as histórias de trio elétrico
Ritmo genuinamente baiano, a Axé Music completa 40 anos em 2025. Portanto, para quem foi criança quando as primeiras músicas desse movimento começaram a embalar as festas, as lembranças são de completa folia. Era o início dos blocos com os famosos abadás referentes a cada artista que subiria nos trios elétricos.
“Eu ia para dançar, brincar e cantar as músicas que eu adorava. Era catártico para mim”, conta Catarina Ribeiro, que viveu a adolescência na década de 1990, o auge da Axé Music e do circuito Barra-Ondina. Aos 14 anos, ela ganhou um abadá do bloco Nana Banana. Então, pela primeira vez, curtiu sozinha a festa. Na época, gostava da banda Cheiro de Amor com Márcia Freire, da explosão do Olodum e do Araketu, e da rivalidade entre fãs de Asa de Águia e Chiclete com Banana.
Mãe de uma pré-adolescente, ela diz ser difícil imaginar a filha vivendo aquela independência com a mesma idade. “Maria vai fazer 13 e eu não consigo conceber ela saindo sozinha”, revela. Para Catarina, os tempos mudaram e a festa também. No entanto, o sentimento permanece. “Eu sigo indo, mas de outro jeito. Ainda é a minha festa, só que agora, nos meus termos.”
Já para a família Macedo, que dá nome a um dos circuitos, estar no trio elétrico é evento oficial em todos os carnavais. A geração mais nova, de Manuela, 11 anos, mantém a empolgação dessa folia. Neta de Aroldo Macedo e bisneta de Osmar, um dos inventores do trio elétrico e da guitarra baiana, Manu, como é chamada pela família, cresceu ouvindo histórias da invenção que mudou a música brasileira. “Aprendi tudo com minha avó Margarida. Quando eu era menor, ela simplificava as histórias, mas agora que cresci, quero saber mais”, afirma a menina, que atualmente mora em Toulouse, na França.
“Aqui sou só mais uma pessoa comum porque quase ninguém sabe o que é o trio elétrico. Mas quando vou para Salvador é que percebo a importância do que a minha família criou”, diz. O pai, Guilherme Macedo, define: “O Carnaval é o grande evento familiar do ano”. Já a mãe, Fernanda Mecenas, completa com referência ao hino de Armandinho e Moraes Moreira: “Toda festa tem um chame-gente”.
A memória mais recente de Manu do Carnaval de Salvador é do ano passado. “Nunca vi tanta gente junta! Subi no trio e então dava para ver cada cabecinha. Meu avô e meus tios-avôs tocando e eu pensando: ‘Uau, minha família fez isso!'”. Ao mesmo tempo, o avô Aroldo, orgulhoso da neta, fez música para a menina quando nasceu. “Manu é danada, curiosa como o pai quando era pequeno. Outro dia, me perguntou como foi a primeira vez que subi num trio”, recorda. “Então eu disse: ‘Foi no susto! Meu pai, Osmar, me botou lá e falou: toque! Não tinha retorno de som, não tinha nada. Mas tinha a multidão na rua”.
Aroldo ensinou a Manu o que aprendeu do pai naquele dia. “Ele disse ‘É isso o que importa, o povo. A música se faz é com ele!’”. É desse modo que as histórias da família Macedo e seus carnavais fazem Manu imaginar a possibilidade de inventar algo, como fez o bisavô. A resposta dela seria um gravador embutido na guitarra baiana. “Você toca uma parte da música, grava e depois toca junto com você mesmo. Dá para se desafiar e criar novas combinações.”
Todo sábado de Carnaval acontece o cortejo do Ilê Aiyê, que sai da Senzala do Barro Preto em direção ao Campo Grande, no centro da cidade. O bloco tem 41 anos e seu nome significa “casa de negro” ou “mundo negro”. O Ilê é considerado um pioneiro da Axé Music e também valoriza as representatividades femininas conhecidas como “Deusas do Ébano”.