Certo dia, a criança solta a mão dos pais e começa a andar. Noutro, faz perguntas que deixam os adultos sem resposta. De repente, aquele pequeno que corria pela casa e queria estar perto da mãe o tempo todo, fecha a porta do quarto e diz que quer ficar sozinho. Ao contrário do que muitos podem pensar, essa não é uma transição típica da adolescência, mas da crise dos nove anos, também chamada de fase do rubicão.
“É um momento em que a criança se apropria mais profundamente do corpo e ganha um nível de consciência que não tinha antes. A gente costuma dizer que é aquela queda do paraíso, em que a criança sai de uma vida de sonhos, de inocência e de fantasia”, explica a médica ginecologista e obstetra Cátia Chuba.
“O momento do rubicão gera uma crise de tomada de consciência”, diz Chuba.
Transformações
Luzia Aparecida Bacheschi Borges percebeu a transformação quando o filho Vitor, 9, passou a ter vontade de ficar mais sozinho. “Ele sempre gostou de fazer passeios e atividades externas, mas agora prefere ficar em casa e fica mais tempo no quarto. Noto ele mais ansioso e explosivo”, diz.
Da mesma forma, foram as mudanças comportamentais de Caio, 10, que chamou a atenção da mãe Louise Furtado. “Ele sempre foi um menino muito gentil, amável, brincalhão. Desde o ano passado, notei um maior amadurecimento, passando a sinalizar interesse sobre coisas que vão além do nosso dia a dia e do eixo familiar, como questões sociais, financeiras. Além de frisar que não era mais criança. Percebi uma maior proporção em seus sentimentos, como se houvesse uma avalanche dentro dele, seja de alegria, tristeza, medo ou raiva”, conta.
Nesse sentido, a jornalista e escritora, Daniela Toffoli, autora do livro “Pré-adolescente: um guia para entender seu filho”, explica que a fase do conflito coincide com um momento de alto desenvolvimento cerebral. “Esse período, que vai dos sete aos 12 anos [a depender de fatores psicossociais e genéticos], é quando o cérebro mais se desenvolve. Assim, é quando o ser humano faz mais conexões neuronais, até mais do que na primeiríssima infância (dos 0 aos 3 anos)”, afirma.
Para saber mais
Além do livro de Toffoli, “A queda do paraíso”, de Hermann Koepke, é outra dica de leitura para quem quer se aprofundar no assunto.
Primeiros sinais da crise do rubicão
Segundo a psicóloga infantil, Fernanda Dantas, o rubicão é um período natural na vida da criança, mas que pode ser bem difícil de lidar. “Não é somente sua forma de ver o mundo que está mudando. Também é quando se iniciam as primeiras mudanças hormonais, de humor e corporais que irão levá-los para a puberdade. Pode-se dizer que essa crise dos nove anos é o fim da infância, um momento de transição entre fases de desenvolvimento. A criança passa a compreender seu ambiente e a si mesma de forma diferente. Assim como o ambiente passa a tratá-la diferente também”, detalha.
A principal mudança que ocorre nessa fase tem a ver com o comportamento. “A criança começa a ter uma percepção mais realística do que é o mundo. Então, ela se torna mais questionadora, mais observadora. Ela pode apresentar medos que não tinha antes, justamente por começar a observar o mundo de uma outra forma. Podem ocorrer distúrbios de sono, por exemplo, sonhos excessivos, terror noturno, sonambulismo, ansiedade. Ela pode, inclusive, começar a questionar sua origem”, esclarece Chuba, questionando o próprio nascimento e pedindo para ver fotos.
A médica afirma que sintomas físicos também são comuns: graças a toda essa ansiedade e mudanças, a criança pode sentir um pouco de falta de ar, pontadinhas no peito, especialmente em situações desafiadoras. Desse modo, podem ocorrer também regressões de comportamento (diurese noturna) ou oscilações constantes de humor. É nessa fase que os primeiros sinais da puberdade costumam aparecer.
Naturalizando a sexualidade
Além das mudanças comportamentais, emocionais e físicas, as famílias podem notar um interesse maior da criança por assuntos envolvendo sexualidade. Nessa hora, muitos adultos ficam apavorados, sem saber como conversar sobre o tema. “É importante que os pais pensem sobre o que seria falar sobre sexualidade e como esse assunto os afeta”, aconselha Dantas. Nesse sentido, buscar informação sobre o tema pode ser essencial para construir um diálogo saudável, além de entender o que os filhos sabem do assunto, “o que dá um parâmetro do que tem que ser desmistificado e ensinado de maneira correta”.
Esse interesse, muitas vezes, surge em decorrência das primeiras mudanças provenientes da puberdade, como o surgimento do broto mamário nas meninas, por exemplo. “Os pais precisam acolher as perguntas, a curiosidade, responder de forma adequada com relação à idade da criança. Se ela trouxer uma pergunta, antes de responder, indague: ‘o que você acha que é?’ Isso serve para entender até onde pode ir a resposta, para não ir além”, recomenda Chuba. Sobretudo, a médica ressalta que a sexualidade precisa ser tratada com naturalidade, e não como assunto proibido.
Para ela, o segredo é trazer o assunto com calma, sem repreensões, e dando especial atenção ao que a criança acompanha na mídia. “Essa é uma questão importante, pois TV e YouTube são conteúdos facilmente acessados. Com isso, as crianças podem ver coisas que não entendem direito ou que interpretam da forma deles, com o nível de consciência que eles têm nessa época”, emenda.
Soltando a mão, mas permanecendo ao lado
Diante de um cenário de tantas transformações, é natural que as famílias passem por um certo desespero. Sem saber como ajudar, o que fazer e o que evitar, muitas delas acabam ignorando essa fase. No entanto, de acordo com as especialistas, o primeiro passo para ajudar os filhos é reconhecer que a crise existe e que ela pode ser tão difícil para as crianças quanto é para os pais.
“É importante conversar com a criança para esclarecer as dúvidas e os questionamentos que surgem, mas sem avançar demais”, explica a médica obstetra. Nessa hora, os pais precisam estar abertos e ser parceiros. Ou seja, falar a verdade e mostrar que estão ali para o que o filho precisar.
“Esse descortinar do mundo precisa ser mediado e monitorado. A criança precisa se sentir protegida e amada”, afirma Chuba.
Toffoli lembra ainda que a escuta precisa ser intensificada. “Mais do que oratória, a gente tem que exercitar a ‘escutatória’, ouvir a criança para manter essa ponte de diálogo. Caso contrário, durante a pré-adolescência os pais podem ‘perder’ esse filho. Portanto, tem que ter essa informação, paciência e maturidade emocional para entender que não é nada pessoal”, orienta. Para ela, manifestar interesse pelas novas paixões do filho, como uma banda musical, uma série ou atividades de lazer, ajuda a estreitar os laços, nessa fase.
Busca de autonomia
É importante lembrar que, embora a crise dos nove anos marque o fim da infância, os filhos ainda são crianças e não ‘miniadultos’. Assim, demonstrar impaciência ou subestimar seus sentimentos e questionamentos também são erros comuns apontados pelas especialistas. “É contraindicado ser agressivo com o momento que a criança está passando, culpá-la pelas mudanças de humor, compará-la ao que era no estágio anterior ou com outras crianças”, detalha Dantas. Por outro lado, a psicóloga sugere acolher e apoiar a nova versão. “Sua criança precisa de você mais do que você imagina. Não a deixe passar por isso sozinha”, sugere Dantas. “Entender o mundo como ele é pode ser muito assustador. Portanto, treinem a paciência e a empatia para ensinar seus filhos a terem também.”
Na casa de Louise, o apoio terapêutico foi essencial para lidar com esse período. “Caio tem feito terapia para conseguir entender os seus sentimentos, além de outros benefícios para o autoconhecimento”, diz. Já Luzia busca no diálogo uma forma de manter o vínculo. “Sempre que possível, propomos passeios e atividades longe dos eletrônicos. Quanto ao temperamento, quando ele extrapola, procuramos alertá-lo. Ouvimos suas ansiedades, queixas e orientamos sobre se expressar, sem alterar o tom de voz. Assim, entendemos que é uma fase e queremos dar o suporte que ele precisa, sem sufocar a individualidade e autonomia que está desenvolvendo”, conta a mãe.
“Deixar de ser criança e compreender o sentido de crescer, da finitude e do luto pode ser um momento difícil e desafiador”, afirma Dantas. Porém, com muita conversa, compaixão e apoio é possível atravessar o rubicão com gentileza, amor e certeza de que a despedida da infância será mesmo um caminho sem volta, mas que ficará para sempre na memória.
Por que “rubicão”?
Usado pela medicina antroposófica para caracterizar o período que marca os nove, dez anos de idade, a origem do termo remete ao primeiro século antes de Cristo, quando o imperador Júlio César, certo dia, juntou uma legião e atravessou o Rubicão, que é um rio na Itália. O ato significou um caminho sem volta na história do Império Romano e virou uma expressão idiomática para o período que marca o fim da infância. Uma travessia irreversível.