Especialistas afirmam que a tecnologia pode ser aliada no desenvolvimento, mas não deve substituir os estímulos fundamentais da constituição do corpo e da mente
Pesquisas relacionam diretamente o aumento do tempo de exposição às telas com impactos negativos no desenvolvimento das crianças. Apesar disso, especialistas preferem enxergar a tecnologia como aliada, podendo trazer benefícios quando utilizada de forma adequada.
A primeira infância é um momento fundamental para o desenvolvimento motor e cognitivo, fator que diferencia os seres humanos de qualquer outro animal. Essa inteligência singular é adquirida principalmente nos mil primeiros dias de vida, que determinam grande parte do amadurecimento das estruturas e regiões cerebrais. Sendo consequência do tempo, da experiência e das relações vividas pelas crianças durante este período. Em um mundo cada vez mais tecnológico, como pensar o impacto das telas e o desenvolvimento da criança?
De acordo com o psiquiatra e psicanalista Nilson Sibemberg, a exposição às telas tem seus principais pontos negativos no grupo de zero a três anos. “Até os dois anos acontece boa parte da aquisição de conhecimento pelos sentidos. E é quando as crianças vão ganhando consciência do próprio corpo, construindo subjetividade a partir da relação com o outro”. A ideia de usar dispositivos digitais para acalmar ou distrair os bebês nessa idade não é adequada. Segundo ele, pode prejudicar o desenvolvimento neuromotor da criança, a aprendizagem e a própria constituição psíquica de si.
A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) também recomenda evitar a exposição de crianças menores de dois anos às telas. Além de limitar o tempo de uso ao máximo de uma hora por dia, entre dois e cinco anos, com a supervisão de pais, cuidadores ou responsáveis. Isso, porque, como explica o neurologista pediátrico Eduardo Jorge Custódio da Silva, membro do Departamento de Neurologia da SBP, o desenvolvimento do cérebro está relacionado não apenas à nutrição, mas aos cinco sentidos de forma integrada.
“A criança vive de exemplos concretos, por isso é necessário que ela toque na areia, veja os objetivos, ouça, sinta cheiros e gostos”
É assim que ela vai, aos poucos, modelando a arquitetura, a produção e a conexão dos neurotransmissores. Nesse sentido, deve-se garantir a riqueza dos estímulos que ultrapassam o brilho das telas e a virtualidade. Como as experiências diretas do corpo, do brincar ao ar livre, do som da palavra emitida pela mãe, da potência do apego e do vínculo.
A pesquisa “Associação entre o tempo de exibição e as crianças”, publicada em 2019 pela JAMA Pediatrics, mostrou que quanto maior o tempo de exposição às telas, pior o desempenho cognitivo. O estudo acompanhou 2.441 mães e crianças nos marcos de 24, 36 e 60 meses, identificando um tempo médio de exposição nos Estados Unidos de 2 horas e 19 minutos por dia.
Como explica Rodrigo Menezes Machado, colaborador do Ambulatório Integrado dos Transtornos do Impulso (PRO-AMITI), do Instituto de Psiquiatria do Hospital de Clínicas da Universidade de São Paulo, esse tempo pode influenciar a visão e a interpretação audiovisual. E elimina oportunidades de desenvolver outras áreas do cérebro, praticar habilidades interpessoais, motoras e de comunicação. “Ainda não sabemos quais domínios são afetados pelo tempo excessivo de tela, mas sabemos que há atraso no desenvolvimento da criança”, afirma.
É comum nos conectarmos a pessoas de corpo presente, mas psiquicamente ausentes. Quem nunca se frustrou ao tentar conversar com alguém usando o celular e esta pessoa não dar atenção? A clássica frase dos pais “você está com a cabeça na lua” parece ganhar novo sentido na infância digitalizada, levando àquilo que cientistas começam a chamar de “síndrome de astronauta”.
O formato do dispositivo, a verticalização da informação, a saturação visual, entre outras características dos dispositivos digitais podem incidir em um déficit de orientação espaço-temporal, limitando a capacidade de exploração do mundo real, como sinaliza Nilson Sibemberg.
“O exercício físico é fundamental para a aprendizagem do corpo, sendo prejudicado quando não há a experiência de profundidade, já que as telas têm apenas duas dimensões”
Outro fator levantado pelo psicanalista é a relação com o tempo de resposta proporcionado pelas telas de dispositivos. “A vida requer uma perspectiva de futuro, uma construção que se dá em três tempos: o da visão ou do impacto sensorial. O de ler a percepção, entendendo o que viu e fornecendo sentido. E o de conclusão, escolhendo o que fazer com a experiência”, explica. No caso de excesso de uso das telas, esses tempos ficam achatados e preenchidos por respostas imediatas e automáticas.
Não à toa, o Dicionário Oxford, em sua edição de 2015, destacou um novo verbo: visualizar. São aqueles golpes de visão sobre imagens ou mensagens textuais, sem poder elaborar adequadamente aquilo que se viu. Esse mundo inundado de informações e fascínio sensorial pode gerar irritabilidade, impaciência, impulsividade e ansiedade, de acordo com Sibemberg, sintomas vinculados com a impossibilidade de lidar com os três tempos mencionados acima ou com o tempo “da falta”.
“Se isso toma conta muito cedo da vida do sujeito, ele pode ter dificuldades inclusive de manter relações sociais”
Alertas de saúde associados à era digital
(Fonte: Sociedade Brasileira de Pediatria)
Se a presença e os estímulos off-line não podem ser substituídos por telas, também é verdade que a tecnologia não precisa ser vista apenas como vilã, segundo o neurologista pediátrico Eduardo Jorge Custódio da Silva.
“As telas não podem ser o único canal de percepção do mundo externo, mas quando utilizadas de forma adequada, podem ser aliadas do desenvolvimento cerebral”
O neurologista defende que, como estímulo acessório, os dispositivos de mídia interativos podem ajudar crianças a construir novos caminhos para as conexões sinápticas, treinando um cérebro multitarefa, além de estimular o domínio natural de novas habilidades, como a operação de ferramentas tecnológicas.
Para o psiquiatra Rodrigo Menezes Machado, esse cérebro multitarefa é dinâmico e consegue migrar de forma mais rápida entre estímulos do que no passado. “O cérebro se adapta a esta realidade de maior conexão, mas isso não está relacionado, necessariamente, a uma maior produtividade”, pondera.
A tecnologia como aliada
O jogo EndearvorRX é um exemplo de como a tecnologia pode ser aliada. Recém-aprovado nos Estados Unidos, o jogo funciona como uma “terapia digital”, para crianças de oito a 12 anos, diagnosticadas com Transtorno de Déficit de Atenção com hiperatividade (TDAH). “Os estudos mostraram benefícios para crianças que usavam o jogo como forma de tratamento por pelo menos 25 minutos ao dia, um verdadeiro ‘empurrão’ para o cérebro”, explica Machado.
É comum cada aparição tecnológica gerar um misto de fascínio e temor, tanto pela capacidade de melhorar a vida das pessoas, como pela imprevisibilidade de seus efeitos. Na opinião de Sibemberg, durante a pandemia, a tecnologia tem sido um ótimo instrumento para diminuir o distanciamento social, seja proporcionando salas de aula on-line e favorecendo a aprendizagem ou possibilitando a comunicação com amigos e familiares. “Apesar disso, a mediação do adulto é indispensável no uso das telas”, ressalta.
Para explorar o lado positivo da tecnologia na vida das crianças, especialistas defendem que é preciso haver orientações sobre o uso adequado de ferramentas, oferecidas por adultos responsáveis, ou dividindo o tempo necessário para singularizar a experiência viabilizada por dispositivos, que pode acontecer no brincar com outras crianças, quando há o compartilhamento de dramas e fantasias. Uma forma de valorizar as horas do dia, a presença e os próprios desafios. Afinal, não basta passar o dedo na superfície do mundo para alterar a realidade.
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Pesquisas no Brasil
No Brasil, uma pesquisa, realizada pelo Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM-Unifesp), investigou a relação entre habilidades motoras, atividade física, uso de mídia, hábitos de tela e duração de sono em 926 crianças entre quatro e seis anos. Os resultados apontaram que mais de 55% das crianças faziam refeições assistindo televisão. E 28% passavam longos períodos vendo TV, jogando videogame ou usando computador, tablet ou telefone celular.
O estudo relacionou diretamente o uso excessivo de mídias de tela ao aumento da probabilidade de crianças apresentarem habilidades motoras pobres, inatividade física e diminuição das horas de sono. A faixa de onda de luz azul presente na maioria das telas contribui para o bloqueio da melatonina, hormônio que regula o ciclo do sono e da vigília. Necessários para o crescimento corporal e mental, conforme descreve Sibemberg. Isso explica parte do aumento das dificuldades de dormir e manter uma boa qualidade de sono profundo entre jovens. Com mais ocorrências de pesadelos, terrores noturnos e sonolência diurna, além de problemas de memória e rendimento escolar comprometido.