Relatos de crianças indicam que memórias das enchentes são desafio a ser enfrentado em meio à retomada da vida
Crianças de três cidades baianas relembram as fortes chuvas que inundaram casas e arrastaram fragmentos de um cotidiano com o qual estavam acostumadas. Especialistas comentam a crise climática e o racismo ambiental ao qual estão expostas pessoas não-brancas.
No dia em que a família de Gleyber, 7, conversou com o Lunetas pela primeira vez, o menino que vive em Gandu, município da Bahia, estava muito emocionado. Ele não conseguia conversar sobre a noite em que as fortes chuvas provocaram uma enxurrada, destruíram seu quarto e levaram os livros com leituras ainda inacabadas. “Foi triste pra mim. Eu estava viajando, não senti [fisicamente] quase nada, mas chorei [ao pensar em tudo que aconteceu]”, detalha.
Ele e a irmã mais nova, Giulya, 3, assistiram pelas câmeras de segurança da casa o momento em que as águas começaram a subir e, depois, quando a enxurrada arrastou móveis e objetos de todos os cômodos. “Destruiu tudo”, resume a caçula.
A família tinha acabado de chegar a Fortaleza, no Ceará, para aproveitar as férias de fim de ano. “Como estávamos todos juntos, as crianças viram o desespero da gente assistindo pela câmera. Tentamos não passar o terror que realmente estava havendo”, narra Nayara Medeiros Spósito, 37, a mãe do casal de irmãos e de Nayla, 15.
Na casa de Maria Eduarda, 11, em Ubaíra, os familiares precisaram deixar o imóvel às pressas noite adentro. De acordo com a estudante do 6º ano, ela foi levada à casa da tia porque a água já estava subindo e era preciso elevar os móveis para tentar preservá-los.
Mesmo assim, eletrodomésticos como geladeira, fogão e máquina de lavar foram danificados. “Eu gosto de barulho de chuva. Mas parecia um dilúvio”, detalha a menina. “Ficou dois dias e duas noites seguidas chovendo sem parar. Eu nunca tinha visto isso antes”, acrescenta.
“A única coisa que lembrei [de salvar] foi Nina, a minha boneca, e os meus ursinhos porque não poderia perdê-los”, afirma Maria Eduarda. Para ela, os brinquedos têm um enorme valor afetivo.
“Os cadernos da minha escola eu não consegui salvar porque estavam fora da minha mochila”, diz a estudante. A escola onde Maria Eduarda estuda foi um dos poucos locais imunes aos estragos após as chuvas, por estar situada em terreno mais elevado.
Apenas uma rua separa a casa da estudante do rio Jiquiriçá, cujo nível subiu de um jeito nunca antes visto, até mesmo pelos moradores mais antigos. A água ficou a três degraus de invadir a casa da avó de Maria Eduarda, localizada um andar acima dela. “Mas perto da minha casa algumas casas desmoronaram”, relata a filha única de Maricleide Souza, 33.
A mãe de Maria Eduarda afirma que não há previsão de retornar à casa. Apesar do imóvel não ter sido condenado, as paredes estão úmidas, há muita lama e quase todos os itens foram perdidos. “Está sendo uma loucura. Estávamos ali e, de repente, perdemos tudo. O pouco que sobrou, roupa e alguns utensílios de cozinha, ainda estamos tentando organizar”, entristece-se.
“Agora é esperar esse tempo para secar tudo, quebrar, rebocar. Será uma reforma. E a gente não sabe se vai poder fazer isso por conta do local [onde a casa fica]”, lamenta Maricleide. “Se a gente fizer [a reforma] vai ser sem a ajuda da Prefeitura ou do Governo do Estado. Estamos por conta própria, porque eles não estão querendo que a gente continue [aqui]”, revela.
De acordo com a Defesa Civil do estado, com base em informações recebidas das prefeituras, os números referentes à população atingida pelas fortes chuvas indicavam 30.306 desabrigados, 62.156 desalojados, 27 mortos e 523 feridos. O total de atingidos é de 965.643 pessoas. Os números foram divulgados no dia 16 de janeiro.
As chuvas intensas aliadas ao transbordamento de rios estão entre as causas das enchentes na Bahia, segundo a Defesa Civil estadual. Apenas no município de Apuarema foi confirmado rompimento de barragem.
Apesar de não haver um detalhamento por município, o órgão de proteção constatou que, além das casas alagadas, houve vias danificadas, queda de postes e árvores.
Localizada na região sul da Bahia, Itabuna também viveu dias de pavor com enchentes em diferentes pontos da cidade. “Nossa casa foi alagada, o telhado da minha casa caiu, perdi meu sapato, minha boneca…”, enumera Ana Ketley, 8.
A estudante se emociona ao falar das chuvas em dezembro, e como as enchentes afetaram as emoções e o comportamento dos adultos. “Minha avó não está conseguindo comer e dormir por causa da enchente que alagou [tudo]. Meu primo também não está conseguindo dormir. Só Deus sabe”, reflete.
O amigo dela, Jô Marley, 9, diz ter perdido os documentos – segundo ele, o mais essencial dos objetos pessoais -, os sapatos, o dominó e o baralho. “A gente não sabia que ia acontecer isso tudo. Na hora que a água estava enchendo, a gente estava na porta, falaram que a água não iria encher e voltamos a dormir. A luz tinha apagado do nada”, lembra.
O estudante do 4º ano também conta que após perceberem que a água já passava do nível da cama, tiveram que deixar a casa. “A gente saiu debaixo d’água. Fomos para cima, onde a água não chegou”, revive.
De acordo com Jô Marley, os avós vivem agora em estado de completa vigilância. “Na hora que começa a chover, meu avô vai pra porta. Ele fica com medo de isso acontecer [de novo] e a gente não saber porque a casa fica toda fechada”, explica.
Na visão do médico Régis Ricardo Assad, membro do Departamento Científico de Pediatria Ambulatorial da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), eventos como este são um problema de saúde pública, que implica na desestruturação de uma cidade, comunidade ou núcleo familiar e podem ser observadas no curto, médio e longo prazo.
As crianças nesta situação, ele afirma, vivem momentos de medo, tensão e ansiedade que podem causar um estresse pós-traumático, com repercussão na vida futura delas. “As perdas causadas, tanto materiais, sua casa, seus brinquedos, roupas, quanto pessoas conhecidas ou animais de estimação, sua escola, vão causar uma angústia, que pode equivaler a um luto, e as fases desse luto podem durar algum tempo”, esclarece.
A Secretaria de Saúde do estado da Bahia informou que não dispõe de dados específicos sobre o impacto das enchentes para as infâncias. “Contudo, passado o período das chuvas intensas, e no decorrer da baixa das águas dos rios e córregos, os problemas mais importantes identificados na área de saúde são: doenças diarreicas, gripes, saúde mental comprometida, arboviroses (dengue, zica e chikungunya), prevenção da violência nos abrigos”, apresenta a pasta.
Através de sua assessoria de comunicação, a Secretaria de Saúde da Bahia relatou que nem todos os óbitos decorrentes de doenças são de notificação compulsória. Por essa razão, o órgão não dispõe de informações sobre óbitos entre crianças.
“Pessoas de qualquer idade vão sofrer, mas as crianças são as mais suscetíveis a todos esses agravos”, reforça Régis. Para o médico, a melhor forma de prevenir doenças causadas por enchentes inclui evitar o contato com a água e providenciar a limpeza e desinfecção das áreas afetadas (ambientes de casa, utensílios, móveis e outros objetos).
Entre os fenômenos que acentuaram as chuvas, a pesquisadora Juliana Neves, da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), menciona a La Niña, “que afeta o país inteiro pelo excedente de chuvas em algumas regiões e pela ausência em outras regiões”, e a Zona de Convergência do Atlântico Sul (ZCAS), “um corredor de umidade e nebulosidade que se forma todos os anos desde o Sul da Amazônia até a região central/sudeste do Brasil, provocando instabilidade e bastante chuva”.
Para ela, isso se relaciona com as mudanças climáticas globais. “O que mais tem influenciado a ocorrência desses eventos é o aumento ou resfriamento da Temperatura da Superfície do Mar (TSM), mas em escalas de anomalias, o que provoca mudanças na Circulação Geral da Atmosfera e, como consequência, a ocorrência de eventos extremos como as chuvas na Bahia”, sugere. “De modo geral, a temperatura do planeta está subindo, no continente e no oceano. A conta sempre chega”, sentencia.
Apesar das enchentes serem consideradas fenômenos naturais, tanto a pesquisadora Juliana Neves quanto o médico Régis Ricardo Assad, a seu modo, apontam que os alagamentos na Bahia expõem a falta de consciência e de educação ambiental. Para ambos, esses problemas tendem a atingir de maneira desigual as pessoas, conforme seu nível de vulnerabilidade.
Coordenadora-executiva do Mapa de Conflitos envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil, projeto na Fundação Oswaldo Cruz, Tania Pacheco trabalha especificamente com o tema racismo ambiental. Para ela, existe forte correlação entre o termo e o que ocorre entre os atingidos pelas enchentes.
“O racismo ambiental é fruto antes de mais nada de uma concepção de mundo baseada na exploração, no preconceito, na aceitação de atitudes que deveriam nos causar indignação, revolta, mas acabam sendo vistas como ‘normais’, nesta realidade muitas vezes abjetas que estamos vivenciando”, salienta Tania. Dentre comunidades sem acesso a saneamento, serviços de saúde e moradia adequada, as consequências são ainda mais delicadas.
“As atuais enchentes na Bahia, Minas Gerais, Pará e Tocantins, principalmente, fazem parte desse cenário no qual a cor da pele das pessoas faz com que sejam encaradas como ‘inferiores’, ‘sem-direitos’ e ‘dispensáveis’, a não ser para os ofícios menos dignos e recusados por aqueles que se julgam superiores”, problematiza. Ao mencionar a cor da pele, contudo, ela não se refere apenas a negros, mas também aos indígenas e não-brancos de um modo geral.
Na Bahia, e em estados como Minas Gerais e Tocantins, povos indígenas ainda enfrentam dificuldades para recuperar casas, roças e estradas. Ao Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Agnaldo Francisco dos Santos, liderança do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe e coordenador do Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia (MUPOIBA), informou que, apenas no território baiano, 11 mil indígenas, de nove povos, foram atingidos pelas enchentes.
Ainda de acordo com o Cimi, o Governo Federal se omitiu diante de famílias que perderam tudo. “Não houve nenhum planejamento. Continuamos cobrando do governo uma ação nesse sentido”, afirma Haroldo Heleno, coordenador do Cimi Regional Leste.
A Bahia recebeu inúmeras doações vindas de pessoas do Brasil inteiro que, sensibilizadas, arrecadaram alimentos, água, produtos de higiene, entre outros itens essenciais. “Não adianta falarmos de racismo ambiental sem enfrentarmos o desafio de revolucionar a nossa concepção de mundo, refundar dentro de nós a capacidade de indignação, redescobrir a utopia”, acredita Tania Pacheco.
Maria Eduarda, em Ubaíra, criou uma vaquinha virtual para arrecadar doações para a família. A cada nova doação, reverbera a canção “Dispensar”, do músico popular baiano Xangai:
“Olha a chuva molhando, molhando.
Olha o mar do amor se abrindo”
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Gandu está entre as cidades afetadas pelas chuvas e, durante a produção da reportagem, permanecia em situação de emergência, segundo a Defesa Civil da Bahia. No município, além dos alagamentos, o nível do Lago Azul, situado no centro da cidade, subiu e isso elevou os danos às casas, dentre elas a da família Spósito, que está hoje abrigada na zona rural, junto a familiares.
Antes do dia 25 de dezembro, data em que foram relatadas inúmeras enchentes no estado baiano, o Instituto Nacional de Metereologia (Inmet) divulgou boletim com previsão de chuva que poderia ultrapassar os 200 milímetros cúbicos. “As chuvas deverão se intensificar ainda mais a partir do dia 24/12 (sexta-feira)”, trazia o boletim, cinco dias antes do ocorrido com a família de Gleyber e Giulya.
Segundo a Defesa Civil, desde o início das chuvas, em novembro, foram emitidas previsões entre os municípios, além de alertas à população via SMS. “Foi uma medida de prevenção, mas a chuva foi atípica, estava fora da normalidade”, expõe o órgão.
Por essa razão, moradores em cidades como Gandu, Ubaíra e Itabuna e outras 200 cidades não foram capazes de dimensionar o aviso sobre o risco de permanecerem em suas casas durante as chuvas. Não havia como prever alagamentos tão severos.