Subproduto da mineração, a escória com metais tóxicos contaminou crianças, adultos e ambiente da cidade histórica
Considerado um dos metais mais perigosos à saúde, o chumbo é um problema persistente em Santo Amaro (BA). Estudos revelam efeitos desse metal deixado pela mineradora Plumbum, que contaminou ar, água e solo e trouxe prejuízos à saúde de adultos e crianças.
Desde pequeno, os olhos de Paulo Sérgio Rolemberg, 46, sempre fitaram o rio Subaé sustentar os barcos enquanto as águas eram abraçadas por redes artesanais de pesca. Sob o solo lamacento do mangue, observava a eterna brincadeira de esconde-esconde dos siris, aratus e sururus até eles virarem alimento na panela.
“Eu cresci comendo marisco. Meu pai vinha da maré à noite, fazia o pirão mole com farinha da roça, catava o siri, o peixe e eu comia com angu”, relembra Paulo, hoje adulto. Ele não fazia ideia de que os pescados haviam sido contaminados com metais pesados rejeitados pela mineração industrial na região.
A contaminação do meio ambiente e das pessoas na histórica Santo Amaro (BA) é resultado de três décadas de exploração mineral realizada pela Companhia Brasileira de Chumbo (Cobrac), que despejou na atmosfera, águas e solo aproximadamente 500 mil toneladas de escória contendo chumbo e cádmio. Ex-subsidiária da Penarroya Oxide S.A, do grupo Metaleurop, e atualmente parte da organização Trevo, a empresa se instalou na cidade em 1960 e ficou até 1993.
Em Santo Amaro, ocorria o processamento do chumbo. Já a extração do minério acontecia em Boquira, outro município baiano, situado na Bacia do Paramirim. Em função do movimento dos cursos d’água contendo a escória e após as chuvas, os estuários do rio Subaé, que abrange o município de Santo Amaro, eram contaminados, afetando o mangue. “Eu sempre morei aqui, bairro humilde, à beira-mar. A rua não tinha calçamento e fazia muita lama quando chovia. Traziam aquelas caçambas de escória e colocavam na rua [para minimizar a lama]”, narra Paulo.
Paulo Sérgio nunca trabalhou na Cobrac, mas afirma ter sido exposto aos metais desde muito cedo. “Aos 12 anos, eu pegava as bolinhas da escória, colocava na boca e brincava de tiro ao alvo com um canudinho”, conta o representante da associação local de pescadores e quilombolas.
O chumbo é considerado um dos metais mais perigosos à saúde pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Essa foi uma das razões que motivaram professores do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA) a estudarem o impacto no meio ambiente e na saúde da população decorrentes da mineração na cidade de Santo Amaro. Diversos trabalhos científicos foram publicados entre os anos de 1980 e 1990.
“O pessoal da UFBA resolveu fazer uma pesquisa sobre os pescadores, moradores e funcionários e começou a recolher amostras de sangue”, lembra Paulo.
“As amostras mostraram alto teor de chumbo em mim e nos meus dois filhos”
De acordo com Fernando Carvalho, médico e pesquisador da UFBA e um dos maiores estudiosos sobre as consequências da exposição ao chumbo em Santo Amaro, doses de metal foram e continuam sendo adquiridas devido à exposição à escória. Mesmo sem saber, muitas pessoas ainda estão sendo contaminadas, o que pode ter sido o caso dos filhos de Paulo.
Segundo o Ministério Público Federal (MPF), a escória era depositada pela empresa a céu aberto, o que possibilitou sua utilização pela própria Prefeitura Municipal de Santo Amaro na pavimentação de ruas, jardins e pátios das escolas. Desavisada, a população também incluiu o material no reboco de suas casas.
As ações eram estimuladas pelos próprios empreendedores da Cobrac – mais tarde renomeada Plumbum Mineração e Metalurgia – que doavam a escória contaminada. Além disso, os filtros que revestiam a chaminé e retinham materiais particulados e tóxicos eram usados como tapetes dentro das casas.
No bairro da Caixa D’Água, o mais próximo da mineradora desativada, mora Antonio Mário Pereira, 86. Ex-funcionário da Cobrac, ele reside há 67 anos na entrada da fábrica e é personagem comum das narrativas sobre a contaminação por chumbo e outros metais em Santo Amaro:
“Eu trabalhei seis anos e oito meses [na Cobrac] e minha saúde é contaminada”
Segundo ele, quatro filhos menores de idade faleceram sob circunstâncias que indicam exposição ao chumbo. “Infelizmente, foram contaminados em determinadas idades [de suas vidas]. E só soubemos disso pelo último [que faleceu]”, expõe.
Na época, não havia chaminé para direcionar adequadamente a emissão da fábrica e a família de Antonio Mário era constantemente exposta à poluição. “Dois [filhos já] tinham ido embora. O último que foi tinha quatro anos e seis meses”, conta. “A menina foi com oito meses. Teve problema respiratório e não houve jeito”, lamenta.
Na visão de Fernando Carvalho, o ar poluído aspirado pelas crianças da cidade elevaram as doses de chumbo em seus corpos, mas para determinar os efeitos a longo prazo seriam necessários mais estudos. “O chumbo é um provável causador de câncer. Estabelecido, ele leva a uma série de efeitos, como hipertensão arterial, perda de audição e diminuição do coeficiente de inteligência”, enumera.
Quando inalado, o chumbo é absorvido pelos pulmões e atinge a corrente sanguínea. Ao ser ingerido, apenas parte dele é absorvido pelo trato gastrointestinal. De acordo com o Ministério da Saúde, as crianças são mais suscetíveis à intoxicação pela via gastrointestinal que adultos. “O chumbo é um poluente que não degrada, não dissipa, não degenera e que só traz efeitos ruins para a saúde”, assevera Fernando.
Em 2010, o Governo do Estado da Bahia instituiu o protocolo de vigilância e atenção à saúde das populações expostas a chumbo, cádmio, cobre e zinco em Santo Amaro. Segundo o documento, 2.570 famílias estariam expostas ao chumbo à época. Contudo, um estudo publicado em 2019, listou evidências de que o protocolo não vem sendo cumprido, dentre outras razões, pela rotatividade de profissionais, mudanças de gestão e falta de participação do município.
Dentre as pesquisas realizadas por Fernando Carvalho, está uma investigação publicada em 1996, cujos resultados detectaram concentrações de chumbo e cádmio no sangue da população de Santo Amaro acima dos índices permitidos pela OMS.
“Poucos lugares no mundo têm essa exposição como em Santo Amaro”, afirma o pesquisador.
Em Santo Amaro, o estudo da UFBA identificou concentrações de chumbo e deficiência de ferro em 101 crianças residentes em um raio de 500 metros da Cobrac. A pesquisa concluiu que 35% das crianças pesquisadas apresentavam quadro de anemia. A contaminação pode ter origem no ar poluído, no contato com a escória e na dieta com alimentos contaminados.
“Percebi que o problema principal estava no entorno da empresa”, indica o pesquisador. “Os principais afetados eram os trabalhadores, que estavam muito expostos, e as famílias, que moravam perto da fábrica, principalmente as crianças que são reconhecidamente o grupo mais vulnerável devido à idade”, relata.
Estudo mais recente publicado pelo pesquisador em 2018 corrobora resultados obtidos há pelo menos 30 anos. Não só o chumbo e o cádmio são responsáveis pelo risco à saúde humana na cidade, mas também zinco, antimônio, arsênico e níquel.
As crianças, conforme revela o estudo, possivelmente vêm sendo expostas a doses maciças de chumbo desde os primeiros dias de vida e, provavelmente, desde a vida intrauterina.
Em 2003, o MPF e o Instituto para o Desenvolvimento Ambiental (IDA) ajuizaram em conjunto ação civil pública para expor os danos causados pela Plumbum. Segundo o MPF, a ação visa “remediar um dos maiores passivos socioambientais provocados por um empreendimento industrial na história do Estado da Bahia”.
Ao menos 296 trabalhadores da Plumbum morreram após contaminação. Segundo o MPF, o processo metalúrgico adotado não previa o controle seguro sobre os efluentes líquidos e gasosos, o que impactou diretamente nas atividades econômicas da região e na população local.
A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) incluiu o caso de Santo Amaro no Mapa de Conflitos Envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil. Além de reconhecer impactos na alteração do regime tradicional de uso e ocupação do território, poluição atmosférica e contaminação das águas e do solo, o mapeamento considera que os danos à saúde incluem desnutrição, doenças não transmissíveis ou crônicas e piora na qualidade de vida.
Em 2019, a 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) decidiu que a mineradora Plumbum, a União e a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) são culpadas pelos danos ambientais e humanos oriundos da contaminação por chumbo e cádmio em Santo Amaro.
No ano seguinte, o órgão requereu que a empresa pagasse 10% do seu faturamento bruto pelos danos ambientais causados. À União e à Funasa, solicitou a implementação de um Centro de Referência para tratamento de pacientes vítimas de contaminação por metais pesados, bem como para desenvolvimento de ações de prevenção de novos casos.
As vítimas da contaminação por chumbo formaram uma associação e buscaram auxílio da Defensoria Pública, criando um grupo de trabalho para estabelecer ações voltadas à redução dos danos ambientais e à saúde. Joaquim José Filho, 60, é um dos principais articuladores da luta popular para mitigar os danos decorrentes da contaminação no ambiente e à saúde da população, principalmente entre os trabalhadores.
“Houve uma série de audiências públicas e encaminhamentos da câmara federal. Em 2003, conseguimos fundar a Associação das Vítimas da Contaminação por Chumbo, Cádmio, Mercúrio e outros elementos químicos (Avicca)”, afirma Joaquim, ex-conselheiro da entidade. Uma das pautas é a devida indenização às vítimas.
“A demanda indenizatória encontra obstáculo na dificuldade de localizar a empresa responsável pela contaminação, que é estrangeira e foi desativada há muitos anos”, afirma Ana Carolina Castro, Defensora Pública de Santo Amaro. O Lunetas também não conseguiu contato com a empresa.
Segundo a Secretaria de Saúde do Estado da Bahia, em 2007 e em abril de 2020, houve 29 notificações de intoxicação exógena por chumbo e seus compostos em residentes do município de Santo Amaro. Não havia dados compreendendo os anos de 2013 a 2019 e 2021.
“Nosso objetivo é buscar, à luz da ciência, formas de diminuir essa contaminação que continua acontecendo todos os dias e comprometendo a saúde das pessoas”, adiciona a defensora Ana Carolina.
Parceira de pesquisa do professor Fernando Carvalho, a pesquisadora Tânia Tavares, da UFBA, concluiu uma pesquisa que aponta a necessidade de programa de monitoramento atmosférico em Santo Amaro.
Conforme expõe protocolo de vigilância do governo baiano, os dados sobre emissão atmosférica são escassos, pois não havia monitoramento da empresa. “Entretanto, a indústria praticamente não dispunha de sistemas de redução de gases e partículas nas chaminés. Existiam precários filtros de manga, em algumas delas, instalados em fins da década de 70”, informa o documento.
Em 1992, a Plumbum realizou perícia – de autoria do engenheiro José Fernando dos Santos, dos professores Fernando Carvalho e Vânia Rocha, e de assistentes técnicos do Ministério Público da Bahia – e fez considerações sobre a poluição do ar. Segundo o laudo, a mineradora lançava poluentes na atmosfera como gás carbônico (CO2), dióxido de enxofre (SO2) e nitrogênio.
Enquanto o gás carbônico representa a maior contribuição para a crise climática, o dióxido de enxofre presente na atmosfera pode levar à formação de chuva ácida. O pesquisador Fernando Carvalho enfatiza que o maior poluente da Plumbum não era o chumbo. “Era o dióxido de enxofre. Fazia uma nuvem ácida terrível. A população reclamava desse tipo de poluição e da irritação que ela causava”, cita.
A canção “Purificar o Subaé”, escrita por Caetano Veloso, que nasceu em Santo Amaro, ecoa poesia e protesto sobre a contaminação por chumbo na cidade, persistente há décadas. “Os riscos que corre essa gente morena, o horror de um progresso vazio” são versos consagrados na voz de Maria Bethânia, também presentes no discurso de Paulo Sérgio.
Exposto ao chumbo desde a infância, ele se tornou importante ativista socioambiental na região.
“A revolução industrial trouxe o progresso vazio e eu fui vítima. Hoje eu luto em defesa do meio ambiente e da vida”, brada.
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No mundo, 815 milhões de crianças (mais de um terço da população mundial de crianças) estão altamente expostas à poluição de chumbo pela exposição a ar, água, solo e comida contaminados, segundo o relatório “Index de risco climático para as crianças” (Children’s Climate Risk Index – CCRI), desenvolvido pela Unicef em parceria com o movimento juvenil Fridays for Future.