Aparelhos lideram pedidos entre crianças e adolescentes, mas podem trazer riscos sem a supervisão adequada
Dar um celular de presente às crianças tem sido uma escolha crescente entre as famílias no Natal. Diante disso, especialistas alertam para os impactos do uso e a necessidade de supervisão, limites e diálogo.
Em vez de manter a tradicional fábrica de brinquedos com seus duendes ajudantes, talvez o Papai Noel deva investir em uma empresa de tecnologia. Isso porque o celular virou um dos presentes de Natal mais pedidos pelas crianças e adolescentes, e mais procurados pelas famílias.
Nos últimos anos, os smartphones superaram brinquedos tradicionais como bolas, jogos e bonecas, liderando as vendas no período natalino. Uma pesquisa realizada pela Kids Corp mostrou que, no ano passado, 53% dos desejos de crianças e adolescentes em toda a América Latina estavam relacionados a eletrônicos. Para 86% dos pais e mães, a escolha do presente é baseada na preferência dos filhos.
Esse também foi o presente escolhido pela jornalista e mestranda em educação Mayara Penina para o Natal do filho Joaquim, 11 anos. No entanto, no caso do menino, que tem celular desde os nove, a novidade será um aparelho mais básico, sem acesso à internet. Isso representa, então, um downgrade ou um passo para trás no acesso.
Pode até parecer um “presente de grego” mas a decisão da mãe veio depois de muitas tentativas de controlar a exposição e o tempo de uso de Joaquim às telas. Por isso, a intenção é que ele aproveite melhor a infância e a adolescência. “No último aparelho, bloqueei todos os tipos de jogos e aplicativos e deixei somente o WhatsApp, para comunicação com os amigos e comigo, mas não funcionou”, relata Mayara. Apesar de usar aplicativos de controle parental, ela acredita que esses mecanismos ainda têm muitas limitações no funcionamento.
O psicólogo Lucas Freire, especialista em psicologia positiva e bem-estar, explica que, embora as famílias usem ferramentas de controle, “as plataformas estão sempre buscando alternativas para burlar esses mecanismos.” Além disso, muitos cuidadores não conseguem acompanhar a velocidade com que os jovens dominam a tecnologia. “É uma batalha difícil. Por isso, é importante que o debate seja coletivo, principalmente em contextos onde as telas acabam sendo utilizadas por falta de rede de apoio”, ressalta.
Já o neuropediatra e membro da Sociedade Brasileira de Pediatria, Eduardo Jorge Custódio da Silva, recomenda evitar o uso de celulares antes dos 13 anos, mesmo sabendo que a decisão final cabe às famílias.
“Se [o celular] for uma opção, é essencial supervisionar e manter diálogo constante com a criança.”
No caso de Joaquim, a conversa entre mãe e filho foi fundamental para que ele, apesar de contrariado, compreendesse os motivos da decisão. Ao mesmo tempo, para dar o exemplo, Mayara também desinstalou as redes sociais do próprio celular. “Foi uma forma de estarmos em sintonia em casa”, conta.
Para ela, o celular é agora apenas uma ferramenta para garantir os cuidados com Joaquim quando ele está sozinho. “Ele vai à escola, à papelaria, à padaria sozinho e não está todo tempo do meu lado. Então, o celular é importante para eu conseguir falar com ele”, comenta. Mesmo assim, controlar o acesso continua sendo um desafio, já que os amigos do filho tem celular e acabam usando juntos.
Em um mundo cada vez mais conectado, equilibrar o uso da tecnologia na infância requer diálogo, supervisão e, acima de tudo, consciência sobre os impactos no desenvolvimento físico e emocional.
Eduardo Jorge alerta que, mesmo sem acesso às redes sociais, o uso do celular pode ser prejudicial nessa fase da vida. “As crianças que passam muito tempo conectadas tendem a reduzir a atividade física, o que pode levar ao sedentarismo e à obesidade”, diz o neuropediatra. “Além disso, há casos de problemas oftalmológicos, como olho seco, devido à exposição prolongada às telas”.
A popularidade dos celulares como presente reflete uma transformação na infância, especialmente desde os anos 2000, como observa Lucas Freire. “A classe média entrou para os condomínios e as famílias mais pobres ficaram enclausuradas em pequenos espaços”, comenta. Segundo o psicólogo, esse contexto coincidiu com o boom dos smartphones, que viraram alternativas pela falta de espaços e oportunidades adequadas.
Diante do aumento de problemas psicológicos e de violações de crianças e adolescentes, vários países têm apresentado medidas. Na Austrália, por exemplo, foi implementada uma lei que proíbe redes sociais para menores de 16 anos. No Brasil, o Senado aprovou o Projeto de Lei nº 2.628/2022, que regulamenta o ambiente digital para crianças e adolescentes. O PL prevê que as empresas de tecnologias disponibilizem “informações sobre os riscos e as medidas de segurança adotadas para o público infanto-juvenil, incluindo a privacidade e a proteção de dados”. O texto segue para revisão da Câmara dos Deputados
Para Eduardo Jorge, os presentes analógicos ainda podem ser interessantes para essa geração, porque estimulam a imaginação e a movimentação da criança. “Eu fui uma criança que pedia livros e bola de futebol, pois adorava jogar com meus amigos”, relembra o neuropediatra.
Do mesmo modo, o psicólogo Lucas Freire, criador do Playfulness, projeto que defende o brincar como uma das partes essenciais da vida, sugere que o Natal seja mais uma oportunidade para oferecer experiências lúdicas.
Ele explica que essas experiências podem ser limitadas, atualmente, pelo consumo excessivo de telas. “As crianças chegam a achar chato ir à praia e fazer um castelo de areia porque dá mais trabalho do que deslizar o dedo na tela”, afirma.
“A velocidade dos estímulos nas telas torna qualquer brincadeira offline desinteressante.”
Portanto, o psicólogo indica como presentes de Natal para as crianças brinquedos que incentivam a testar, explorar e a construir. “É interessante pensar em quantas horas de diversão aquele brinquedo pode proporcionar. Isso nos ajuda a entender que o ‘fazimento’ vale mais do que qualquer brinquedo pronto”, indica Lucas, que também é autor do livro “O Leão da Bochecha de Balão”.
Na narrativa, os personagens chamam para a brincadeira enquanto a leitura deixa no ar a reflexão sobre o desafio que a tecnologia impõe para as novas gerações:
“Seus amigos animais o vinham chamar,
‘Leão, venha fora, vamos brincar!’
Mas o Leão não queria ir pra praça,
parecia que tudo tinha perdido a graça!”