Autoridade com afeto: quais os limites da parentalidade positiva?

Como as novas abordagens na educação de crianças podem ser aplicadas de maneira respeitosa sem ser permissivas, segundo especialistas

Célia Fernanda Lima Publicado em 09.10.2024
Imagem para capa de matéria sobre parentalidade positiva mostra uma mulher loira sentada no chão de uma casa com uma menina branca de cabelos lisos no colo.
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Resumo

Especialistas defendem que educar crianças a partir de uma criação positiva não significa deixar fazer o que elas quiserem. Mas como não cair na permissividade e exercer autoridade com afeto em casa e na escola?

Ouvir as opiniões da criança, fazer combinados e dar opções de escolha são alguns pontos para alcançar a parentalidade positiva. Esse novo olhar para a criação de meninas e meninos é baseado no respeito à criança como indivíduo em formação.
No entanto, é comum que se confunda a educação positiva ou disciplina positiva com permissividade. Então, de nada adianta tentar esses métodos se pais e professores não estão bem preparados, diz a psicóloga e educadora americana Jane Nelsen, responsável por criar a disciplina positiva, em entrevista ao Lunetas. Ou seja, é preciso primeiro “educar aqueles que estão educando”.

A educação positiva busca valorizar os aspectos positivos e as potencialidades do comportamento humano. Com base na teoria psicológica de Martin Seligman, os adultos são ensinados a ouvir e a respeitar as opiniões das crianças, para então negociar tarefas, por exemplo. Já a disciplina positiva, método baseado nas teorias de Alfred Adler e Rudolf Dreikurs, procura equilibrar gentileza e firmeza. Assim, cuidadores e educadores podem ensinar habilidades sociais e estimular as capacidades das crianças. Nenhuma das abordagens recorre a punições ou castigos.

A neuropedagoga Aline Caporal optou pela educação positiva para criar Raul, 10. “Se meu filho não quer tomar banho, por exemplo, eu não preciso atropelar e brigar. Eu o escuto e digo que também tenho dias que estou tão cansada que não quero tomar banho. Mas isso é algo inegociável porque a higiene é essencial para a saúde”, conta.

Ela acredita que o diálogo é a forma mais respeitosa de pôr limites sem precisar ser autoritário, apenas respeitoso. “Temos a responsabilidade de ser margem, nunca barragem. Ou seja, conduzir os limites das crianças, e não impor”. 

Para exercer uma criação positiva, Aline teve acompanhamento profissional. “Comecei a terapia com uma psicóloga e educadora parental”. Esse ponto é fundamental, conforme explicam os especialistas, já que uma má aplicação pode trazer consequências como:

  • pais confusos entre dar limites e permitir
  • professores cansados em lidar com crianças que não respeitam regras
  • crianças tendo que lidar com responsabilidade de escolhas que precisam ser mediadas
  • falta de resiliência das crianças em enfrentar pequenos problemas
  • incentivo à culpa materna ou paterna

Como educar sem castigos e sem permissividade  

O equilíbrio entre autoridade e respeito, lembrando sempre da hierarquia dos adultos na educação das crianças, é a principal defesa entre psicólogos e educadores. “Crianças precisam de um adulto corregulador, que saiba conduzir o ‘não’ de maneira respeitosa”, explica a educadora parental Priscilla Montes, mentora da educação positiva. “É sobre vivenciar e construir uma relação dia após dia. Não é algo que se aplica de uma hora para outra, como um remédio.”

Sobre “ser permissivo”, Priscilla diz que essa ideia é um grande “mito” em torno da educação positiva. “Permissividade é deixar a criança mandar em suas escolhas e não considerar o que diz o adulto. Isso, então, gera uma criação irresponsável porque elas ainda não têm maturidade suficiente.”

Jane Nelsen explica que “não punir não significa deixar a criança fazer o que quiser, pois a permissividade impede que as crianças desenvolvam crenças em suas próprias capacidades e resiliência ao enfrentar os menores problemas”.

“Firmeza sem gentileza é punição. Gentileza sem firmeza é permissividade”

A educação positiva nas escolas

Em sala de aula, pode ser difícil manter o equilíbrio do “sim” e do “não” para as crianças, afirma Ana Paula Detzel, pedagoga e coordenadora da educação infantil de uma escola particular. “Há uma confusão entre o que é positivo e o que é permissivo.”

Para ela, o outro lado da moeda também se refere mais ao entendimento do adulto. “Muitas vezes, vemos pais ou professores perdidos entre aquilo o que a criança pode fazer, pela potência que tem, e os limites necessários”, aponta. “Por isso, hoje, vemos na escola muitas crianças com dificuldades relacionadas a limites e regras.”

Do mesmo modo, Priscilla Montes defende que se algo deu errado, a conta não deve cair em cima das crianças. “Às vezes é mais fácil achar que a criança é manipuladora do que entender melhor sobre o desenvolvimento infantil”. Para ela, o conflito entre pais e professores pode surgir também quando a escola não oferece aos profissionais oportunidade de aprender esse novo olhar para as crianças.

“O problema não está nas crianças, mas na dificuldade dos adultos em querer controlar o comportamento delas sem ensinar os porquês”

Já para Ana Paula, a providência mais adequada, nesse sentido, é reafirmar o papel da escola como um dos primeiros lugares em que a criança vive em sociedade, e que há regras. “Precisamos deixar claro que existem e sempre vão existir posições hierárquicas, que as crianças não podem tomar decisões sobre todos os aspectos de suas vidas devido a pouca idade, e que as mediações com regras e limites continuam sendo necessárias”, reforça.

Ao mesmo tempo, a pedagoga reconhece os benefícios das abordagens positivas na criação das crianças. “Na educação tradicional, havia a crença de que o adulto precisava ensinar e as crianças reproduziam. Então, a educação positiva trouxe avanços significativos para a infância porque potencializa a autonomia das crianças.”

“Não podemos retroceder a padrões punitivos e até agressivos que vivíamos antigamente. Mas buscar o equilíbrio entre o respeito e o protagonismo infantil, inclusive para identificar os limites necessários para se viver bem em sociedade”

Curar primeiro os adultos para que cuidem das crianças de forma mais amorosa  

Com base no diálogo e na forma respeitosa de dar limites ao filho, Aline percebeu que a educação positiva passa longe dos gritos e castigos que muitos pais de hoje receberam na infância. “Eu venho da educação autoritária onde só com um olhar já entendia que eu não deveria estar me posicionando. Mas por muito tempo isso me limitou e me magoou”, recorda. 

Priscilla Montes explica que para viver a educação positiva é importante “destruir a educação autoritária que tivemos na infância”. Portanto, ao decidir quebrar o ciclo de uma educação mais rígida e até violenta que receberam, os adultos também sentem dúvidas sobre como exercer com suas crianças uma autoridade com afeto. 

“A autoridade é muito importante, mas ela não significa punição”, alerta Jane Nelsen. “Na disciplina positiva, a autoridade é gentil e firme ao mesmo tempo. Por exemplo, você pode dizer ‘eu te amo, mas a resposta é não’”, explica.

Para Aline, descobrir outra forma de educar uma criança foi um acolhimento em meio ao turbilhão da maternidade, mas nem todos os dias são tranquilos. “Me senti acolhida pois me reconheci como uma adulta ferida, com muita vontade de fazer diferente com meu filho”, conta. “Temos muitos desafios, e nem sempre eu ou ele estamos dispostos.” Mas, a mãe sempre tenta reconhecer quando um dos dois passa do limite e, então, saber a hora de pedir desculpas. “A criança não admira o que acertamos, ela admira nosso esforço para conseguir.”

Imagem de mãe entrevistada na matéria sobre parentalidade positiva mostra Aline, uma mulher branca, d ecabelo cacheados, em cima de uma árvore com o filho Raul, um menino branco de cabelos curtos.
A neuropedagoga Aline Caporal decidiu viver a educação positiva com o filho Raul, 10, e diz que se sentiu acolhida ao encontrar outra forma de criação de crianças longe da educação autoritária.

Crianças precisam de autoridade com gentileza 

Após revelar que a punição e a permissividade era tudo o que sabia fazer com os filhos ainda pequenos, Jane Nelsen afirma que nenhum dos dois recursos funcionavam. “Eles apenas ficavam mais zangados e menos confiantes”. Por isso, ao estudar sobre desenvolvimento infantil, entendeu que era necessário criar um ambiente de respeito mútuo para combinar firmeza e gentileza na criação de qualquer criança

  Assim, Nelsen conduz a disciplina positiva com um método que envolve momentos de reunião de família e reunião de classe, onde as crianças participam e dão suas opiniões. “Com a mediação de adultos, as crianças se concentram em propor soluções que respeitem todos os envolvidos. Elas aprendem a respeitar a si mesmas enquanto atendem às necessidades do coletivo.”

Nesse sentido, o principal é manter um ambiente acolhedor e gentil para que as “birras” ou conflitos possam ser resolvidos de maneira inteligente. Sempre lembrando que o adulto é quem precisa mediar. “Eu defendo que as crianças possam fazer escolhas, desde que sejam respeitosas e razoáveis com todos os envolvidos. Elas adquirem mais responsabilidades quando têm oportunidades de aprender habilidades sociais em uma atmosfera de gentileza e respeito”, diz Nelsen. 

Os reflexos de uma educação baseada no respeito e na escuta chegaram de maneira positiva para Aline. Ela conta que Raul já percebe quando outra pessoa, seja um amiguinho ou um adulto, passa do ponto na hora de discutir ou discordar. “É lindo ver uma criança compreendendo os limites de uma boa convivência. Sei que será um adulto seguro e respeitoso com os outros. Então, me sinto orgulhosa ao ver que estou reduzindo danos. Não tem como isso ser ruim, porque as crianças devolvem a gentileza que recebem.”

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