A música conecta mãe e bebê ainda na barriga e acompanha o desenvolvimento físico, social e emocional das crianças
A música é o elemento comum que atravessa essas histórias contadas por Lunetas. Além dos benefícios para o desenvolvimento infantil, a música inspira boas memórias entre as crianças.
Pedro ainda não tinha nascido, mas já estava conectado com a música. Para a hora do parto, as mães Ana Paula Cossa e Silvanny Rodriguez combinaram numa playlist faixas animadas e relaxantes. Ainda hoje, aos três meses de vida, a canção “Afoxé branco” acalma Pedro e o embala na hora de dormir.
Durante a gestação, “o bebê é capaz de ouvir com atenção os ruídos internos e externos, principalmente a corrente sanguínea e o coração da mãe. A música ajuda a criar vínculos entre eles”, afirma Bárbara Xavier, musicoterapeuta e pedagoga. Além de saber diferenciar a voz da mãe, o recém-nascido pode reconhecer padrões de músicas ou histórias que ouvia na barriga.
Na rotina de Xavier com o filho Tomé, de quatro meses, a música está presente “tanto na hora de brincar quanto para acalmar e dormir”. Apesar da pouca idade, ele já tem suas preferências musicais, conta a mãe.
“Ao aprender um instrumento, a criança precisa ser capaz de sustentar a atenção, manter o foco em objetivos e ter uma rotina de estudos. Além disso, trabalha conceitos lógicos e matemáticos através do conhecimento de uma partitura musical. Portanto, essa prática pode desenvolver funções cerebrais relacionadas à memória e à tomada de decisões”, diz Xavier.
O professor de música Isaac Sousa, que trabalha com a musicalização de crianças a partir dos seis meses, observou como crianças que mal se comunicavam “passaram a se envolver e a se expressar melhor”, além das dificuldades motoras de outro aluno terem melhorado significativamente após as aulas.
Além da música ser “um grande e poderoso atalho” para as crianças em desenvolvimento, Elisa Gatti comenta que “ela fortalece vínculos da gente com a gente mesmo e da gente com o outro”. Gatti, também conhecida por “Mãe musical“, começou a compor músicas sobre brincar e explorar conforme sua filha crescia, a partir de memórias e de histórias que lhe contavam. A música foi um apoio para atravessar com mais leveza o puerpério, enquanto também vivenciava o luto do pai e a pandemia.
Nos vídeos que produz, Gatti explora rimas para facilitar que as crianças compreendam temas difíceis, como o divórcio ou o desfralde. “A ideia é que as canções possam ajudar na rotina enquanto também tocam em aspectos sensíveis da vida”, diz.
“A música tem o poder de transformar as relações, porque é uma língua que atravessa qualquer tempo e qualquer idade”
Além de promover “encontros bonitos, harmônicos, poéticos e afetuosos com temas que envolvem o crescimento e a existência no universo adulto”, dizem os palhaços da Orquestra Modesta, a música “é capaz de fazer com que as crianças tenham mais voz ativa e consciência de si próprias. Com a música, a criança aprende a se comunicar e se expressar mesmo antes de falar. Nesta primeira fase da vida, ela está naturalmente aberta a absorver e a assimilar os mais diversos assuntos”.
Ao unir palhaçaria e música em seus espetáculos – uma “deliciosamente errática” e a outra “matematicamente exata” – eles acreditam que a força está justamente na contradição “entre o erro do palhaço e o rigor de uma partitura musical”.
A música deixa Diogo, 13, que toca timbal, menos ansioso. Vitor, 11, que canta e toca bateria, diz que a música o ajuda a prestar mais atenção nas tarefas do dia, além de facilitar sua forma de se expressar. Já Alice, 11, quando toca surdo, se sente leve, “nas nuvens”. De acordo com os três, eles sempre tiveram contato com diversos gêneros musicais – do axé ao samba, do rap ao funk – e isso ampliou o repertório do que gostam de tocar.
“Muitas vezes, privamos as crianças de estímulos quando só colocamos ‘música de criança’ para elas ouvirem. Na verdade, a melhor coisa é que elas sejam expostas a diferentes ritmos e estilos. Música digital, música ao vivo, instrumentos e também bater a tampa da panela”, diz Xavier.
Na infância de Jônatas Marques, 31, a exceção à música gospel que predominava nos ambientes que frequentava, era os chorinhos que o avô tocava no violão. A primeira vez que tocou bateria foi aos cinco anos, com incentivo dos tios músicos que se apresentavam na igreja. Aos 10, estreou em um culto.
Há pouco mais de seis anos, quando deixou de ir à igreja, ele não sente mais a culpa por ouvir música “do mundo” ou tocar algo além dos louvores. O primeiro show que Marques fez fora do ambiente religioso foi com sua banda “Espacialrias”, em março de 2020, pouco antes do início da pandemia.
Apesar dos traumas, Marques agora tenta ressignificar a criança musical e celebrar a infância com o avô que o trouxe até aqui. Em junho, um show em comemoração aos 80 anos do Demônios da Garoa, que tocava no radinho do avô junto de artistas como Adoniran Barbosa e João Gilberto, o emocionou. “A música recupera memórias e mostra como elas são vivas.”
Na Escola Pública de Música Yamandu Costa, em Passo Fundo (RS), a música ajuda a combater a ansiedade e melhorar a concentração dos alunos da rede municipal. Em São Paulo, o Projeto Guri apoia a ressocialização de crianças e adolescentes no sistema socioeducativo por meio da música. Já para crianças com algum transtorno do desenvolvimento, como Transtorno do Espectro Autista ou Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, “a prática musical é capaz de aprimorar a comunicação verbal e não verbal, relacionamento e interações sociais”, afirma Xavier.