O apagão no Amapá: três crianças compartilham suas histórias

Dificuldade para dormir, medo de ficar sem alimentos e pedidos aos governantes marcam olhar de três crianças entrevistadas pelo Lunetas

Alice de Souza Publicado em 26.11.2020
Imagem de uma criança num ambiente escuro é iluminada apenas pela luz de uma vela. Texto sobre o apagão no Amapá
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Resumo

Para entender o impacto do apagão no Amapá, o Lunetas convidou três crianças de lá para contar, a partir de suas perspectivas, como vivenciaram os dias sem energia, luz e água.

Gabriel Chagas estava no computador, jogando on-line com os amigos, quando ocorreu a primeira queda de energia. “Na hora, mana, eu pensei, ‘acho que volta em uma, duas horas no máximo’”. Olhando para trás, tudo o que ele queria era transformar aquela previsão em realidade. Era 3 de novembro, a luz caiu e não voltaria tão cedo. Macapá, onde Gabriel vive com a família, foi uma das 13 cidades do Amapá que viveram o apagão. Um incêndio em uma subestação de energia levou o estado a um dos maiores blackouts já registrados no país, transformando as ruas no que o menino de 12 anos classifica como “cenário apocalíptico”. 

Foram 22 dias até que a Companhia de Eletricidade do Amapá (CEA) e o Ministério de Minas e Energia (MME) anunciassem o completo restabelecimento da iluminação elétrica em todo o estado, na terça-feira (24). A falta de luz levou ao consequente desabastecimento de água e alimentos, e uma sensação de desamparo e incerteza predominava em várias localidades.

Apagão no Amapá e os impactos nas crianças

Entre as crianças, não foi diferente. Muitas delas, já sem aulas por causa da pandemia da Covid-19, se viram em uma encruzilhada de medo do escuro, dificuldades para dormir, doenças provocadas pela ingestão de água salobra e insegurança com o futuro. 

Para entender o impacto dessa realidade, o Lunetas convidou três crianças do Amapá para contar, a partir de suas perspectivas, como vivenciaram os dias de apagão no estado. Acompanhe a seguir cada relato sobre o apagão no Amapá:

Foto de Gabriel ChagasGabriel e a falta de eletrônicos

A história começa com o cronograma de Gabriel, 11 anos, que sabe descrever como foi cada um dos dias que passou sem água em casa, mas decidiu fazer um resumo, pois “seria história para mais de uma hora”. 

No momento em que caiu a energia, a família de Gabriel foi tentar buscar as motivações. A primeira possibilidade que passou pela cabeça curiosa do menino foi a queda de um raio, em função da forte chuva na região. A ideia estava amparada na alegação da empresa Isolux, dona da subestação incendiada, mas foi descartada depois de investigação da Polícia Civil. Logo que se soube das chamas na distribuidora de energia, ficou claro para Gabriel que a luz demoraria a regressar. “Todo mundo achava que o mundo ia acabar. Era chuva, trovoada. Um caos. Calamidade total.” 

A rotina de Gabriel, que vinha usando o computador para se conectar com os amigos e assistir às aulas de inglês, virou “um tédio”. “Como eu estava mexendo muito no computador, o segundo dia foi o pior para mim, passei mal por estar sem ele. Fiquei nervoso, sentindo dores, com crise de abstinência”, conta. Para dormir e aplacar o calor, a família fez uma “gambiarra” dois mosquiteiros antigos para colocar na janela. Durante todo esse tempo, a maior preocupação do menino não foi a energia. “As pessoas estavam quase se matando por água”, revela. A família dele até cogitou buscar água no Rio Amazonas, como fizeram vários conterrâneos, mas contou com a ajuda de um amigo, dono de um imóvel com poço artesiano, e encheu 20 garrafas pet de 1,5 litros. “Ele foi um anjo, sabe?”, classifica o menino.

Para Gabriel, a luz só foi restabelecida por meio do rodízio, implementado no bairro dele no sétimo dia de apagão. Mesmo assim, ele ficou chateado, “pois alguns bairros estavam com energia 24 horas e outras sem energia todo o tempo”.

“Me dava dor no coração, deu uma tristeza imensa ver as pessoas sem luz”

Apesar do sufoco, Gabriel diz que houve aprendizados e momentos felizes ao longo dos 22 dias sem energia, como brincar mais no quintal de casa e passar mais tempo com a mãe e a irmã. “O coronavírus já tinha me ensinado a passar mais tempo com a minha família, o apagão me ensinou mais. Também aprendi a não ficar tanto no computador”, conclui. 

Foto de Kamilly MagaveKamilly e a persistência do calor

O apagão foi para Kamilly, 7 anos, mais uma falta dentre as tantas que rondam a vida dela e da família. Na Baixada Pará onde mora, na periferia de Macapá, sequer há ruas, apenas vielas entrecortadas por pontes. Kamilly vive em palafitas. Por isso, o medo provocado pela falta de energia se somou ao medo ocasionado pelos alagamentos. A falta de luz foi equiparada aos estragos trazidos pela chuva. “Foi muita água e muito alagamento. Não consegui dormir bem, tinha muito carapanã, e muito calor. Durmo com minha irmã, em um beliche, e estava difícil”, conta.

Ela estava dormindo quando faltou luz pela primeira vez. “Acordei com muito medo, tampando os ouvidos por causa do trovão.” O que salta aos olhos da menina é a dificuldade para conseguir alimentos, água e vela, para iluminar a própria residência. “A vela tá muito cara”, conta. Kamilly mora com a irmã, a mãe, um tio e dois cachorros, Melissa e Black. Os animais também dividem a preocupação dela. “A Melissa é um poodle, tem medo de escuro, fica latindo e sente calor.”

A região onde a menina mora é composta por 300 famílias que estão passando por dificuldades e maior vulnerabilidade em função da falta de iluminação. Um cadastro realizado pelos próprios moradores já contabilizou cerca de 1,5 mil crianças precisando de ajuda. “Eu sinto falta de um ventilador, de uma televisão”, conta Kamilly, que fazia aulas on-line, mas parou depois que começaram as quedas de energia no Amapá.

Para passar o tempo, ao longo dos 22 dias sem luz, Kamilly ficou brincando com a cadela Melissa. Mas houve dias também de baixa de humor, sobretudo quando ela começou a ter dores na barriga. Ela foi uma das crianças levadas ao hospital, com diarreia e vômito, condição que elevou os atendimentos no Pronto Atendimento Infantil (PAI), único pronto-socorro pediátrico do estado, e tem sido creditada ao consumo de água de má qualidade e alimentos estragados. Por enquanto, a luz voltou na casa de Kamilly, mas não totalmente, o que a deixa apreensiva. 

“Eu queria pedir aos governantes energia para as pessoas e água mineral”

Foto de Rayssa FerreiraRayssa e o medo de perder a geladeira

Vizinha de Kamilly na Baixada Pará, Rayssa tem 10 anos. Compartilha com a amiga do medo provocado pelos trovões, mas, além disso, vive em uma casa com mais gente, o que tornou os 22 dias sem energia ainda mais complexos. Para ela, um dos piores momentos foi a falta de alimentos para comprar. “A gente chegava no supermercado e não encontrava nada, estava tudo estragado, com um cheiro ruim”, conta.

Para encontrar água, Rayssa foi com a família até o Rio Amazonas. Precisou carregar baldes com os irmãos, o pai e a mãe. “A gente andava muito, carregava água. Nunca tinha faltado água antes assim na minha casa”, compara. Para passar o tempo, Rayssa conta que ficava brincando com duas primas na casa delas, que também estavam na mesma situação. “Foi difícil, muito difícil.” 

Rayssa comemora que a energia voltou, mas o episódio a deixou com receio de um segundo apagão. O medo está pautado em que a família perca parte dos eletrodomésticos, sobretudo a geladeira. “A energia ficava indo e voltando, quase queimou a geladeira da minha mãe. Ficou uma semana parada, fedendo”, diz.

“Não quero que isso volte a acontecer”

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