Nem sempre a tecnologia é vilã. Para crianças com deficiência, recursos tecnológicos podem ajudá-las a se desenvolverem e a participarem da sociedade
Para crianças com deficiência, a tecnologia é fundamental para aprender, para exercer a cidadania e para estimular seu desenvolvimento integral. “O impedimento não está na criança com deficiência, mas nas barreiras sociais que impedem sua participação”.
Quando se discute a relação entre infância e tecnologia, questões como perigos do ambiente digital, excesso no uso de telas e impactos no desenvolvimento infantil se tornam o centro do debate. Mas, para crianças com deficiência, ferramentas tecnológicas não podem ser consideradas somente vilãs, pois a tecnologia assistiva é fundamental para aprender, para se relacionar com outras pessoas, para exercer a cidadania e para estimular seu desenvolvimento integral.
“Tecnologia Assistiva (TA) é a criatividade para a resolução de problemas funcionais de participação e execução de tarefas”, explica Rita Bersch, fisioterapeuta e diretora da Assistiva Tecnologia e Educação, organização formada por especialistas em TA, com o objetivo de apoiar pessoas com deficiência no ambiente educacional.
Segundo a especialista, como o processo de desenvolvimento das crianças passa pela interação com o meio e com o outro, muitas vezes, a criança com deficiência fica privada de informações, conhecimentos e estímulos que estão no nosso espaço de sociabilidade. “Isso acontece pela limitação sensorial, visual e de mobilidade. A tecnologia assistiva busca alcançar a igualdade de oportunidades”, explica. Para ela, o desafio principal é encontrar alternativas às habilidades de cada pessoa.
“Posso ter autonomia no uso do computador com o movimento ocular ou um som. Com os pés, posso colocar uma chave acionadora e um botão para a pessoa ter acesso à digitação. Portanto, a tecnologia assistiva é um recurso, uma estratégia”
Neste sentido, o olhar deve estar direcionado para transformar o entorno, não a deficiência. Para Rita, muitas vezes, a deficiência está no contexto, na falta de conhecimento, na atitude ou na ausência de um recurso. Uma estratégia que pode auxiliar crianças com deficiência não depende necessariamente de uma tecnologia complexa, mas pode ser uma adaptação de espaço, aplicação de material de apoio e, principalmente, mudança de mentalidade e cultura.
“Se uma criança não se desloca, eu posso colocá-la num tapete e fazê-la circular na sala de aula. Se ela não vai até a caixa de brinquedos, posso colocá-la dentro da caixa em meio aos brinquedos. A tecnologia assistiva faz acontecer e faz participar, trazendo riqueza e possibilidade de desenvolvimento que qualquer outra criança tem”, conclui.
Tecnologia assistiva é um direito
A inclusão da pessoa com deficiência é um direito protegido por lei. Alguns marcos legais destacados pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação mostram como a necessidade da Tecnologia Assistiva aparece em decretos e determinações federais ao longo dos anos.
Em 2006, a Organização das Nações Unidas publicou a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Assinada por mais de 160 países, incluindo o Brasil, o documento estabelece uma mudança fundamental, afirmando que não é o limite individual que determina a deficiência, mas sim a combinação entre os impedimentos da pessoa e as barreiras existentes no ambiente.
Em relação à pauta da educação, um dos documentos norteadores é a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva.
Carolina Videira ou Carola, como é conhecida, é fundadora da ONG Turma do Jiló e mãe do João, 11. Ele tem uma síndrome rara chamada Palizaeus-Merzbacher, que afeta o tônus muscular. “João é completamente hipotônico, nunca andou, nunca falou e nunca conseguiu se comunicar verbalmente”, conta.
Diante de um mundo que não estava preparado para o João, sua preocupação principal foi identificar recursos que facilitassem a rotina do filho. “Sempre acreditei que ele conseguiria outros tipos de comunicação e sempre tentei levar a vida o mais normal possível”, relata.
Por isso, a deficiência nunca esteve à frente da possibilidade de encontrar um caminho mais inclusivo. João passou a frequentar a escola aos dois anos. Neste período, Carola identificou que essa relação entre escola e as necessidades do filho seria um desafio. “A escola acreditava que ele não teria um desenvolvimento pedagógico. Por isso, comecei a buscar diversas tecnologias. Só achei uma opção quando ele tinha cinco anos”, conta Carola.
O que ela encontrou no exterior foi um equipamento chamado Tobii Eye Tracking, que funciona por rastreio ocular e conecta os olhos do usuário a uma tela. Assim, ele é capaz de mexer o mouse e se comunicar por meio do computador. Pouco depois de iniciar o uso da tecnologia, João aprendeu as letras de seu nome.
“A tecnologia proporcionou ao meu filho levar uma vida normal. Sem ela, o João estaria preso à sua deficiência”
Toda a comunicação com ele passa por esse equipamento: a professora é responsável por ajustar o conteúdo às necessidades da máquina e os outros alunos interagem com João por meio desta tecnologia. O menino também usa adaptadores para os seus brinquedos: para pilotar o controle remoto do carrinho, por exemplo, aciona um mouse com o joelho ou com a perna.
Após ver a tecnologia funcionar com o seu filho, Carola fundou a organização não-governamental com foco em educação inclusiva. A proposta é levar esse conhecimento para dentro de escolas públicas, promover formações para professores e compartilhar estratégias pedagógicas.
Para Regina Mercurio, professora de educação física, psicomotricista e formadora do Instituto Rodrigo Mendes, o foco da luta pela educação inclusiva é compreender que o impedimento não está na criança com deficiência, mas em minimizar as barreiras sociais que impedem sua plena participação. Ela pontua que, a partir da Convenção Sobre o Direito das Pessoas com Deficiência, houve uma mudança de perspectiva e do próprio conceito da deficiência.
“A tecnologia pode reduzir obstáculos no acesso ao aprendizado e nas expressões das crianças”, explica. “O que temos é uma reorganização em termos de sistema. Desde do Programa de Implantação de Salas de Recursos Multifuncionais, passamos a contar, desde 2010, com as salas de recursos multifuncionais que já trabalham com as questões da tecnologia, que facilitam o acesso à aprendizagem e as expressões das crianças, via recursos como microcomputador, material dourado, laptop, teclado com colmeia, software com comunicação alternativa, lupa eletrônica, alfabeto em Braille, reflete.
Além destas, contudo, outras tecnologias são importantes para que “crianças possam expressar os seus conhecimentos e estar envolvidas na aprendizagem, não só na sala de recurso multifuncional, mas com condições de acessar o currículo na sala comum”, destaca. Daí a importância do professor da sala de recurso multifuncional e o professor da sala comum trabalharem em conjunto, para incorporarem essas mudanças como uma estratégia pedagógica, permitindo ao aluno participar efetivamente do trabalho pautado pela Base Nacional Comum Curricular.
O programa de implantação de salas de recursos multifuncionais, do Governo Federal, disponibiliza às escolas públicas de ensino regular um conjunto de equipamentos de informática, mobiliários, materiais pedagógicos e de acessibilidade para a organização do espaço de atendimento educacional especializado (AEE). Esta modalidade de ensino é complementar ou suplementar aos estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento, altas habilidades (superdotação) matriculados em classes comuns do ensino regular.
Em sua opinião, as propostas que têm uma visão de outras linguagens e tecnologias para atender todas as crianças podem beneficiar toda a classe, principalmente nestes tempos de pandemia com aulas remotas. “De repente, chega-se à conclusão de que é importante usar mais imagens ou colocar um áudio junto com a proposta porque há famílias que não sabem ler, por exemplo”. Ou seja, recursos de acessibilidade impactam pessoas com e sem deficiência, de forma democrática.
Embora haja uma gama de produtos de tecnologia assistiva, Rita Bersch destaca que, para identificar o melhor recurso a um determinado tipo de deficiência, deve-se levar em consideração conhecimento técnico e oferecer apoio para que a pessoa tenha autonomia para escolher a melhor solução às suas necessidades.
“A pessoa com deficiência é protagonista nesse processo de entender a situação de vida, o que é preciso ser melhorado ou quais atividades deseja realizar e não consegue por conta de uma dificuldade física ou sensorial. Nosso papel é dar apoio para que ela tenha o máximo de autonomia possível”
Colaborou: Mayara Penina
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Com relação à formação de educadores com foco na educação inclusiva, Regina é categórica: ‘vivemos uma descontinuidade de políticas’. Um exemplo é que, em 2019, a Secadi (Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão) foi desmontada logo no início do governo de Jair Bolsonaro (sem partido). Com a mudança, passou a vigorar a Secretaria de Alfabetização, a Secretaria de Modalidades Especializadas de Educação e uma Subsecretaria de Fomento às Escolas Cívico-Militares.
“Essa secretaria abrangia a perspectiva inclusiva, pois trata-se de uma modalidade, não um ensino à parte. No final do ano passado, começou a ser desenhada uma outra concepção de educação especial, que retorna à uma visão dividida por deficiência”.
Em 1º de junho, o MEC homologou o Parecer nº 5/2020, aprovando orientações com vistas à reorganização do calendário escolar e à possibilidade de cômputo de atividades não presenciais, para fins de cumprimento da carga horária mínima anual, em razão da pandemia do coronavírus. Essa foi a única diretriz nacional no campo da educação e não houve uma diferenciação para alunos com deficiência.
“Eles colocam inclusive a própria continuidade do trabalho dos alunos com deficiência dentro da proposta geral dos estudantes da escola, explica Regina. “Ao mesmo tempo, o parecer cita em separado a questão da educação especial. Mas o atendimento especializado, hoje, é complementar e não substitutivo do ano em que essa criança está”, conclui Regina.