Cidades com boas escolas, merenda saudável, parques e áreas de lazer, transporte público de qualidade, bibliotecas bem equipadas e ruas seguras. Quem não gostaria de viver em um lugar assim? Tudo isso reflete o que dizem crianças e adolescentes que têm participação política em seus município. Então, se os mais de 463 mil candidatos registrados no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para as prefeituras e câmaras de vereadores as ouviram, esses temas deverão estar presentes nos próximos mandatos municipais.
De um centro urbano no sul a um assentamento no norte do país, Lunetas conversou com pessoas entre oito e 25 anos de idade, que atuam em escolas, movimentos sociais, órgãos públicos ou organismos internacionais. Assim, ao conhecer realidades de quem ainda não podia votar, mas escreveu um projeto de lei, a quem vai votar pela primeira vez, ou está lançando a primeira candidatura, mapeamos as expectativas sobre as eleições, que acontecem neste domingo (6) em 5.569 municípios.
“A brincadeira é o espaço mais autêntico de participação política das crianças”
Apesar do avanço legislativo no Brasil, as crianças ainda são excluídas das decisões que as afetam. É o que afirma Conceição Seixas, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Integrante do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para a Infância e Adolescência Contemporâneas (NIPIAC), Seixas questiona a ideia de que as crianças ainda são imaturas para entender suas realidades e diz que o adulto costuma desconsiderar suas opiniões.
Para ela, a preocupação de querer traduzir o mundo para as crianças “parte de uma lógica adultocêntrica de controle”. “A gente conversa com as crianças e elas se esforçam para nos entender, então temos que fazer o mesmo.” Por isso, ela defende escutá-las desde cedo, reconhecendo que têm algo a dizer.
“Justificamos a exclusão das crianças por uma suposta imaturidade e despreparo, mas será que nós, adultos, temos tido condições de cuidar do mundo?”
De acordo com a professora, é a partir da cultura lúdica do brincar que podemos acessar o mundo infantil. “Os espaços de brincadeira são muito importantes, porque é como as crianças participam. Seja brincando de casinha, significando o papel de pai, de mãe, de criança, seja brincando de escola”, explica.
“Que esforço a gente tem feito para entrar no mundo da criança e ouvir o que ela diz sem desmerecê-la?”
E quais são as prioridades das crianças?
Quando assumiu o Comitê das Crianças de Boa Vista (RR), Ana Letícia, 8, já sabia o que era política. Isso ela aprendeu participando de projetos escolares e iniciativas comunitárias. A mãe, Pâmela Falcão, conta que Ana é bastante engajada, adora colaborar nos trabalhos em grupo e equilibra as demandas de estudante com as atividades do Comitê.
Desde maio, ela participa junto de outras 23 crianças, de seis a 10 anos, do órgão consultivo do poder municipal. A iniciativa partiu da sua escola. Atualmente, ela acompanha reuniões sobre temas ligados à cidadania e aos direitos de crianças e adolescentes.
Ao final do mandato de dois anos, os participantes vão sugerir mudanças sociais e urbanas à prefeitura. Pâmela está entusiasmada com a experiência da filha. “Essa participação política é essencial para que as crianças aprendam desde cedo sobre cidadania e o impacto de suas ações na sociedade. Vejo que ela tem curiosidade em entender mais sobre o tema e fico feliz de que esteja explorando mais opções para o futuro.”
“Acho que os candidatos a prefeitos e vereadores deveriam trazer propostas incríveis para melhorar a vida das crianças. Eles poderiam criar mais parques com brinquedos divertidos, como escorregadores gigantes e balanços. Também seria legal se construíssem mais bibliotecas e salas de aula com computadores, para a gente aprender e se divertir ao mesmo tempo.
Além disso, poderiam organizar mais eventos especiais, como festivais de música e melhorar a segurança das ruas. Assim, a gente poderia andar de bicicleta e brincar. Ah, e não posso esquecer da comida! Seria legal se eles oferecessem merendas saudáveis nas escolas. Estou gostando de fazer parte do Comitê das Crianças, é um jeito de aprender mais sobre Boa Vista e de conhecer pessoas interessantes. Já tivemos reunião sobre trânsito, reciclagem de lixo e como cuidar das plantas da cidade.”
“O mais importante é que os políticos nos ouçam, nos respeitem e nos ajudem a ser felizes”
A criança não é o futuro, mas o presente
Morar em uma comunidade que luta pela terra, pela reforma agrária e pela transformação social colocou a política no dia a dia de Luara Serena, 8. A mãe dela, Jordana Camargo, afirma: “Fazer parte do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra não é apenas uma questão de território, mas de identidade. Para nós do MST, a infância camponesa deve ser vista na perspectiva das relações humanas e também culturais.”
Assim, nos assentamentos ou acampamentos em todo o Brasil, meninas e meninos são incentivados a construir uma nova forma de viver, em relação com a natureza e com dignidade para todos, explica Jordana. “Além disso, sempre escutamos as crianças e apostamos nelas como protagonistas de suas histórias, o que não acontece na sociedade, que geralmente as subestima.”
Na prática, o MST considera o que as crianças Sem Terrinha dizem sobre o território e a comunidade ao organizar suas reivindicações. Há 30 anos, as crianças realizam e lideram congressos e encontros pelo Brasil. “Cada criança é vista não como o futuro, mas como o presente”, diz a mãe de Luara. Desde que se mudou para o Pará, Jordana ensina à filha que esse também é um lugar histórico, forjado na resistência.
“A família de minha mãe é assentada e a de meu pai também. Vim do Rio Grande do Sul para o Pará quando era bem pequenininha, aos três anos. O nome da minha escola é Oziel Alves Pereira, um líder do MST que morreu lutando pela terra, por justiça, saúde e educação [no Massacre de Eldorado do Carajás]. Todo mês de abril, a gente faz um acampamento para lembrar dele e de todos os outros que morreram nessa luta. Nós, Sem Terrinha, lutamos pelo direito à saúde, à educação e ao lazer.
Ocupamos terra para ter alimentos, casa, lugar de brincar e ser feliz. Então, para mim, política é a criança ter o direito de estar na escola, de comer comida saudável e de morar em uma casa. Se eu pudesse votar, escolheria as candidaturas do Movimento Sem Terra, para que melhorassem as estradas daqui, que estão cheias de buracos, e também os transportes. Tem muita criança que não está indo para a escola por causa dos ônibus que costumam quebrar. Também é preciso melhorar o lanche e trazer de volta atividades como capoeira, karatê, futebol e balé.”
“Política é criança ter direitos”
Vivenciar o processo legislativo forma crianças cidadãs
Há três anos, ao entender o desafio da pobreza menstrual, Ana Carolina, 17, decidiu participar do projeto Câmara Mirim, que existe há 20 anos em Joinville, Santa Catarina. Ana se tornou vereadora-mirim e propôs um projeto de lei para enfrentar o problema em sua cidade e ajudar meninas e mulheres. Na época, a proposta não passou, mas Ana teve o incentivo da coordenadora da Escola do Legislativo da Câmara, Juliana Filippe, para não desistir. Então, ela reorganizou o projeto e foi selecionada com mais três jovens do país para apresentá-lo no Plenarinho, na Câmara dos Deputados, em Brasília.
Na avaliação de Juliana, mais do que a aprovação de projetos de lei escritos por crianças e adolescentes, “vivenciar o processo legislativo os transforma em cidadãos e lideranças“, o que amplia o senso de pertencimento. Para a coordenadora, essa participação também mobiliza os adultos a repensarem as cidades a partir das propostas dos mais jovens. “Essa escuta é fundamental e reafirma que eles são cidadãos, com direitos e deveres.”
“Os próximos governantes devem incluir crianças e adolescentes em suas políticas, pois isso é importante para toda a sociedade. Quando fui vereadora-mirim, apresentei um projeto de lei para a distribuição gratuita de absorventes íntimos nas unidades de saúde de Joinville. Muitas mulheres não têm condições financeiras e improvisam com objetos que trazem risco à saúde. Além disso, alunas da rede municipal chegam a perder 45 dias de aula por ano pela falta de absorventes. Mesmo o PL que escrevi para a Câmara dos Deputados não tendo sido aprovado, sinto que esse movimento influenciou outras causas, o que me deixa feliz. Quero estudar Direito e defender mulheres, crianças e adolescentes. A participação feminina é fundamental para reduzir desigualdades no Brasil.”
“Os governantes devem incluir crianças e adolescentes em suas políticas”
Novos eleitores podem transformar as cidades
Ao menos 158 estudantes do município de Junco do Seridó, na Paraíba, vão votar pela primeira vez este ano. Mas, para isso, tiveram que superar dois desafios: perder um dia de aula para tirar o título e enfrentar 17 km até Juazeirinho, onde está o cartório mais próximo do Tribunal Regional Eleitoral (TRE-PB). O mutirão, em março, foi uma iniciativa do Núcleo de Cidadania de Adolescentes (NUCA), do Unicef, em parceria com a Secretaria Municipal de Assistência Social, a Escola Cidadã Integral Técnica Ezequiel Fernandes (ECIT) e o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba (IFPB).
Além de Junco do Seridó, outros 1.641 municípios em busca do selo Unicef implementaram o NUCA, que trata da participação política de adolescentes de 16 a 18 anos em temas como empoderamento feminino e enfrentamento do racismo. Dentre as ações, eles elaboram um plano de participação cidadã para a gestão municipal, focado no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Luiza Leitão, oficial do Unicef, destaca as transformações sociais promovidas pelos jovens, especialmente em relação às mudanças climáticas. “As ações do NUCA já resultaram no fechamento de lixão, criação de aplicativo para catadores e abolição de sacolas plásticas em supermercados.”
“Eu ia tirar o meu primeiro título de eleitor de qualquer jeito, pois já tinha conversado com meus pais. Então, quando a campanha de alistamento eleitoral foi lá na escola, eu estava decidida. Quando tirei o documento, senti que estava ajudando outros estudantes a fazerem o mesmo. Estou muito animada de votar pela primeira vez, e também um pouco nervosa.
Acho que não só a gente que está começando a votar agora, mas todo mundo deve escolher seus candidatos e candidatas pensando no que vai ser bom para todos, e não só para si. Somos subestimados no nosso primeiro voto. Falam que somos muitos novos, que ainda não sabemos nada e que vamos votar só por votar. Mas o legal dessa iniciativa foi mostrar que não é bem assim. Tivemos o incentivo, eles nos deram voz e a gente participou.”
“A gente deve votar pensando no que é bom para todo mundo”
“Eu já passei por toda a estrutura da Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente, enfrentando desafios na família e na escola. Por isso, gostaria que esses jovens tivessem aquilo que não pude ter. Eles estavam preocupados em levar falta na escola para emitir o documento durante o mutirão, mas isso não aconteceu. Com a parceria dos colégios, explicaram sobre o processo eleitoral, o perigo das fake news e o atendimento no cartório. Todo esse movimento é política, porque mostra que os jovens querem agir. Eles sabem que tudo se dá no coletivo, e não em promessas no papel. Devemos superar essa polarização grande no país e escolher propostas que realmente tragam mudanças.”
“Ser mobilizador é a minha atuação política”
Iniciativas que inspiram a participação política da juventude
Um ano antes de decidir se candidatar a vereador, Ramon Brito, 18, fez parte do Jovem Deputado Baiano (DJBA), programa da Assembleia Legislativa do Estado da Bahia (Alba) que simula a rotina parlamentar. Isto é, os estudantes aprendem sobre o processo de elaboração e votação das leis estaduais. Em uma das atividades, Ramon conheceu a jornalista Daniela Silva, que participava de uma conversa com os jovens deputados sobre atuação política.
Defensora da escuta da juventude para a elaboração de políticas públicas, Daniela propõe que a comunicação e a educação midiática mobilizem os jovens a ter uma visão crítica e propositiva. “Isso reforça o compromisso ético e democrático sobre o que eles produzem, consomem e disseminam”, diz. A jornalista é responsável pelo projeto “Com Jovens”, cujo mote é “aqui ciência dá match com políticas públicas e com juventudes”. Além disso, publicou o livro “Eu, jovem prefeito de Salvador”, elaborado a partir de propostas de moradores de 18 a 29 anos da capital baiana, relacionadas aos 11 direitos do Estatuto da Juventude.
“Eu me considero um político nato, que não vê a política apenas como algo partidário, e sim no dia a dia. Na escola, fui jovem ouvidor e fazia a ponte entre os estudantes e o poder público, sempre mostrando o que podia melhorar. Um ajuste na forma de servir a merenda, por exemplo, contribuiu para evitar o desperdício de alimentos. Em 2023, participei do programa Deputado Jovem Baiano, quando também tive contato com o programa “Com Jovens”. Essas duas experiências me motivaram a lançar a minha primeira candidatura este ano e a escutar as juventudes da minha região. São 45 comunidades rurais que precisam ser transformadas. A minha campanha abordou as necessidades do jovem que deseja trabalhar, fazer cursos técnicos ou continuar estudando. Quero promover conferências para ouvir quem ainda tem que migrar porque não encontra estudo ou trabalho.”
“Acredito que posso promover mudanças”
Como tirar as crianças do lugar de “café com leite” na política?
Para a pesquisadora Conceição Seixas, apesar de legislações importantes, como a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Marco Legal da Primeira Infância, nenhum desses documentos foi formulado por crianças, e sim outorgado a elas por adultos. “Seguimos atropelando as crianças até no dia a dia da escola, que é o lugar que a sociedade pactuou como sendo delas. Não perguntamos o que acham ou o que querem. E a gente sai tomando decisões supondo que sabe o que é melhor para elas, desde o que vestir, para onde ir, como se comportar, até questões que envolvem invadir a privacidade delas, expondo-as nas redes sociais, por exemplo.”
“A escola não deve ser o único espaço de expressão; as crianças precisam ser ouvidas em todos os aspectos da vida”
“O lugar da criança é na cultura, no mundo, na cidade onde está, não apenas na escola”, diz Seixas. Além disso, também nos falta a compreensão de que a política não é só o que acontece no Congresso, mas na nossa vida. Para reverter essa situação, o primeiro passo é pensar que a criança tem o que dizer dentro das condições dela. Ou seja, é preciso acabar com a ideia de que, por enquanto, a criança não conta. Elas até podem experimentar, mas o jogo só será para valer quando crescerem. “Também crescemos com essa promessa de que quando fôssemos adultos, iríamos entender. Repetimos para as gerações mais novas aquilo que nos foi negado.”
“Há uma série de decisões adultas que têm impacto na vida das crianças e elas sequer são escutadas”
Então, “embora elas nos digam algo que do ponto de vista do adulto parece sem importância, para a vida delas, é extremamente importante”. Segundo a pesquisadora, podemos ajudar simplesmente escutando-as. “Se querem ter acesso a um parque, a um espaço arborizado; do quanto são tolhidas naquilo que é agradável para elas, do quanto o recreio é curto”, enumera. Do mesmo modo, é preciso considerar “quando dizem que queriam que o pai tivesse melhor emprego ou que a mãe ficasse mais em casa. Às vezes, em nome de uma participação, o que estamos fazendo é solicitar que as crianças mimetizem os adultos, que digam o que eles querem ouvir.”
“As crianças habitam o mundo, têm o direito de participar e elas estão pagando um preço alto com o silenciamento”