‘A internet para as crianças é como uma praça pública’

Há desafios e oportunidades no ambiente digital para crianças mas, à deriva, elas só têm a perder, afirmam especialistas

Mayara Penina Publicado em 29.06.2020
Imagem de uma menina com cabelos amarrados e divididos nas laterais está sentada em uma mesa mexendo em um computador, atenta. Texto sobre crianças e internet
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Resumo

O desafio de proteção das crianças na internet é multissetorial: não podemos responsabilizar somente pais e mães. Escola e empresas de tecnologia devem se comprometer com os direitos das crianças como prioridade absoluta.

Imagine as praças públicas que as crianças frequentam na sua cidade. As praças proporcionam possibilidades de aprendizado e interação para crianças e adolescentes. Ao mesmo tempo, podem apresentar desafios e perigos se não houver a presença de um adulto. É assim também quando as crianças acessam a internet. A partir dessa analogia, os convidados para a primeira edição do ciclo de conversas on-line “Ser Criança no Mundo Digital” iniciaram um debate sobre desafios e oportunidades de crianças navegando na web. 

Na última sexta (26/6), Rodrigo Nejm, diretor de educação da SaferNet Brasil, conversou com a psicanalista Vera Iaconelli, com mediação da jornalista e diretora executiva do Instituto Alana, Carolina Pasquali. O pano de fundo do bate-papo é este dado: 89% de crianças e adolescentes entre nove e 17 anos usam a internet no Brasil, segundo a última pesquisa da TIC Kids Online Brasil

“Este é um dado para comemorar, mas não pode ser generalizado como se fosse suficiente, pois, ainda que a maioria tenha acesso à internet, seu uso é muito plural e desigual entre as classes sociais. No contexto da pandemia, ficou ainda mais evidente e amplificada esta desigualdade, tirando a oportunidade de crianças e adolescentes de acompanharem as aulas na escola”, atenta Rodrigo Nejm, que também é doutor em psicologia social. Segundo ele, mesmo que todas as crianças tenham acesso, o uso é muito diferente de acordo com a possibilidade de conhecimento de cada família. 

Como as crianças têm se relacionado com o mundo digital? Qual o papel das famílias, escolas, empresas de tecnologia e do governo nessa interação? Para discutir sobre o tema, o Instituto Alana – com o apoio do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br), da SaferNet e do portal Lunetas – realiza a série de conversas on-line “Ser criança no mundo digital”, que reúne especialistas das áreas de educação, psicologia, tecnologia e direito.

Os encontros acontecem até o dia 14 de agosto. Confira aqui a programação e faça sua inscrição. A transmissão ao vivo conta com recursos de acessibilidade (intérprete de Libras e legenda em tempo real).

Acompanhe a cobertura de todas as conversas no Lunetas.

Cuidados com o acesso

Como ponto inicial da conversa, Rodrigo acalma pais e cuidadores que se veem fora da discussão porque se sentem de outra época ou com pouco conhecimento, tomando a postura de que “isso não é para mim”. “Estamos vivos no aqui e agora, portanto somos parte do mundo digital”. Para ele, mesmo com experiências e habilidades diferentes, não há idade, profissão ou anafalbetismo que limite a capacidade de qualquer adulto contribuir de alguma forma na mediação do acesso da criança ao ambiente virtual.

“Os cuidados que temos do acesso da criança ao mundo passam a valer também agora ao mundo digital”

A posição da Safernet, organização que atua há mais de 15 anos neste tema, é a de que a internet em si não é perigosa. Ela pode ser potente e rica para o desenvolvimento e interação se as crianças tiverem condições de leitura crítica do ambiente digital para, assim, terem a capacidade de desfrutar efetivamente da vida cultural e social que a internet pode oferecer.

“Se elas estão à deriva, ficam mais vulneráveis. A ideia é as crianças poderem estar sozinhas [no ambiente digital], seguras, e com postura crítica. Sozinhas, quando a idade permitir, com capacidade de se perceber como um sujeito ativo dessa sociedade, e não apenas como um consumidor de informações”, assegura Rodrigo.

Outro ponto de atenção que Rodrigo traz para o debate é a assimetria de poder entre os usuários e as grandes empresas de tecnologia, considerando esse um desafio multissetorial:

“Não podemos responsabilizar pais e mães como os únicos cuidadores. Existem milhões de pais e mães analfabetos no país que não têm condições de mediar com qualidade o acesso dos seus filhos. Também é papel das escolas e cabe às políticas públicas avançarem de uma maneira mais sistemática neste assunto”.

Digital sem pressão
Uma colaboração entre o Instagram, a SaferNet e a The Jed Foundation tem como objetivo ajudar a descobrir as melhores maneiras de usar a plataforma. “Queremos incentivar você a entender como o tempo que você passa on-line pode afetar seu bem-estar emocional, compartilhar algumas dicas e ferramentas que podem melhorar sua experiência e conectar você com recursos que podem estimular reflexões futuras”, afirma a apresentação do material.

Relação entre crianças, tecnologia e saúde

“Sim. Afeta o sono, a relação da criança com o próprio corpo e a sexualidade, e também afeta sua saúde mental”, é a resposta da psicanalista Vera Iaconelli, autora do livro “Criar filhos no século XXI”.

“Nosso potencial de desenvolvimento é totalmente reativo ao ambiente. A gente se constitui como humano na relação com o outro. A virtualidade é uma ferramenta maravilhosa, mas é neutra, e pode ser usada para o melhor e para o pior”

Assim como pontuou Rodrigo, Vera defende que a criança acesse o ambiente virtual desde que não tenha a pretensão de substituir o presencial. A virtualidade não oferece a possibilidade de pular, correr, sentir cheiros – e a criança precisa disso. “Tudo que tem de maravilhoso na virtualidade deve ser intermediado. O adulto faz uma membrana permeável entre a criança e o mundo”, atesta.

Em consonância com Rodrigo, a psicanalista afirma que os pais também estão à deriva e é preciso fortalecê-los neste lugar de curadoria. Segundo ela, existe um longo processo de desautorização da parentalidade a partir da entrada dos especialistas. “Os pais estão se desautorizando porque acham que são analfabetos virtuais. Muitos são mesmo”, explica. 

“Temos o papel de não deixar que o espaço público entre de chofre na vida da criança. Assim como não levamos a criança em qualquer lugar, também não podemos deixar qualquer coisa entrar quando estamos na virtualidade”

O que as crianças têm a dizer sobre tudo isso?

O Lunetas conversou com 32 crianças de todos os estados brasileiros para saber como elas se relacionam com o ambiente digital. O resultado dessas conversas você vê em uma série de conteúdos e vídeos no especial Um olhar sobre as infâncias conectadas, com novos episódios lançados semanalmente. No primeiro vídeo da série, as crianças contam como imaginam que era o mundo antes da internet e o que fariam se não existisse mais internet no mundo, além de trazerem a ludicidade e a imaginação para esse universo.

Qualidade de conteúdo na internet para crianças

Da plateia virtual veio uma pergunta que deve intrigar muitas famílias. Maria Heloísa, de Pelotas (RS), se queixou sobre a quantidade de conteúdo ruim que existe no YouTube e de como as crianças se interessam mais por eles em detrimento do que os pais escolhem como sendo de qualidade. Como lidar?

“As coisas mais picantes, mais violentas, mais erotizadas são como comida junk food”, compara Vera. Ela explica que existe um apelo neste tipo de conteúdo e que a criança percebe, inclusive, que os pais não gostam, criando um atrativo a mais e tornando-se viciantes e sedutores. “Tem qualidade: oferece. Não tem? Sinto muito, vai ficar sem”, sugere a psicanalista aos pais. 

Ela justifica sua recomendação afirmando que as crianças têm de aprender a lidar com o tédio. “O tédio é bom para as crianças criarem coisas”. Diz ainda que os pais costumam achar que precisam entreter os filhos. “Não tem que entreter filhos, não. Deixa as crianças inventarem as brincadeiras”. 

Como utilizar o mundo digital a favor?

Esta outra pergunta vinda da plateia é respondida por Rodrigo. Segundo ele, ao respeitar a idade mínima de acesso das crianças, a questão da qualidade é mais importante do que o tempo de exposição à tela. “Há um poder grande na internet para repertórios identitários. Um menino ou menina trans que são espancados e assassinados em praça, na internet pode encontrar um espaço possível de sentir bem e entre pares”, exemplifica. 

Para encerrar, Rodrigo é categórico ao afirmar que a interação on-line jamais pode ser observada na lógica da substituição da vida off-line. “Podemos assumir o controle das políticas públicas para que elas fiquem a favor da infância e dos direitos humanos”, finaliza. 

Como denunciar violações de direitos das crianças na internet
Com procedimentos efetivos e transparentes, a SaferNet Brasil oferece um serviço de recebimento de denúncias anônimas de crimes e violações contra os direitos humanos na internet, o que inclui imagens, vídeos, textos, músicas ou qualquer outro tipo de material.

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