Hora de soltar a mão: quando dar mais autonomia para as crianças?

Famílias e especialistas explicam os caminhos mais seguros para promover a autonomia das crianças a cada fase de crescimento

Cintia Ferreira Publicado em 19.05.2025
Uma mulher negra de tranças no cabelo e blusa amarelo ajuda um menino negro de blusa cinza a preparar uma comida na frigideira
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Resumo

Garantir a autonomia dos filhos é tornar-se cada vez menos necessário na rotina das crianças. Entenda como encontrar os melhores caminhos para promover essa confiança de modo seguro.

Não é uma cena comum por aqui, mas no Japão é habitual ver crianças limpando as escolas, atravessando a rua sozinhas ou pegando metrô sem um adulto. Na rotina oriental, a autonomia infantil é incentivada desde os primeiros anos, pois há uma preocupação cultural em ensinar sobre respeito e responsabilidade, como mostra, por exemplo, a série “Crescidinhos” (Netflix).

Embora a segurança pública de lá seja um fator que ajuda nessa busca por independência, o fato é que, universalmente, muitos pais desejam que um dia sua criança se desenvolva para conseguir um dia “soltar a mão”.

“Mais do que fazer as coisas sozinha, ser autônomo significa agir em sintonia com os próprios sentimentos, desejos e necessidades, e não apenas para atender as expectativas dos outros”, explica a psicóloga infantil Juliana Borges.

Segundo ela, “educar para o mundo” é compreender que a autonomia é essencial para o desenvolvimento humano. Isso porque é por meio dela que as crianças aprendem a confiar em si mesmas, tomar decisões, lidar com frustrações e se expressar como realmente são.

“A autonomia é o que permite que a criança se torne uma pessoa inteira, capaz de se posicionar, fazer escolhas e desenvolver sua identidade”

Os primeiros passos rumo à autonomia

Esse caminho não se conquista de um dia para o outro. Ou seja, com as crianças, é necessário respeitar cada fase, até mesmo nos primeiros anos de vida, quando o bebê passa a confiar aos poucos no ambiente ao seu redor e na pessoa que cuida dele. “A presença atenta, previsível e afetuosa do adulto cria a base emocional que vai sustentar, mais tarde, os primeiros passos rumo à independência prática e emocional”, ressalta Juliana.

Conforme cresce, a criança vai testando limites, tomando pequenas decisões e lidando com as consequências. “Tudo isso ainda sob o olhar e a presença de alguém que não o abandona, mas também não o controla”, destaca a psicóloga.

Ela reforça que autonomia e independência se consolidam quando são vividas gradualmente e, de preferência, dentro do ambiente familiar com afeto, vínculo e segurança. “Não se trata de soltar a criança no mundo de forma precoce, mas de acompanhá-la na construção da própria confiança, dando espaço para que ela aprenda com os erros, reconheça seus limites e descubra sua força interna”, diz.

Na casa da pequena Rachel, de 2 anos, essa caminhada já começou. A mãe, Priscila Rodrigues, confeiteira e moradora de Santo André (SP), incentiva pequenas ações, mesmo tendo pouco tempo livre. Uma delas é o método BLW (Baby-Led Weaning) na hora de comer, abordagem em que o bebê tenha mais autonomia na experimentação de alimentos sólidos.

Autonomia infantil: Imagem mostra mulher e criança cozinhando juntas.
A confeiteira Priscila Rodrigues é mãe de Rachel, 2 anos. Aos poucos ela ensina a filha a ter mais autonomia nas pequenas tarefas do dia a dia.

Além disso, a menina já come sozinha, sabe usar garfo e colher e calça a maioria dos sapatos sem ajuda. “Raramente ela calça sapatos trocados. Mas, quando acontece, tento mostrar que isso não é um problema. Às vezes ela se incomoda e troca. Outras vezes eu falo: vamos tentar trocar os pés?”, conta a mãe.

Outro recurso é dar opções de roupas para ela mesma escolher o que quer vestir, e deixá-la ajudar a preparar as refeições. “Nas últimas semanas, vez ou outra ela me pede para lavar a louça”, conta a mãe, achando graça. “Eu tento não surtar, mas a deixo lavar, auxiliando, nos pratinhos ou copos de plástico. Depois distraio com outra atividade”, conta.

“Tudo vira uma memória gostosa e dá a eles a confiança e o orgulho de conseguirem fazer tantas coisas”

Crianças vão precisar menos dos pais e eles têm que aceitar

Segundo a psicóloga Mariuza Pregnolato, alguns pais têm dificuldade em estimular a autonomia das crianças. Isso porque, no fundo, a cada movimento em direção à independência, eles se sentem perdendo importância para suas crias. “Por isso é importante que os pais cuidem do próprio equilíbrio para serem capazes de estar ao lado da criança no seu processo de descobertas, oferecendo espaço, apoio, ferramentas e suporte”, ressalta.

Nessa busca, muitos pais podem ter dúvida, mas é importante lembrar de oferecer desafios que estejam à altura da criança. “Um parâmetro confiável deve ser o conforto da criança em assumir determinados desafios e decisões”, explica Mariuza. “O diálogo aberto e frequente dissipa dúvidas e ajuda a explicitar dificuldades que, certamente, ocorrerão durante o processo.”

Ela também pontua o que é necessário para a criança se sentir mais segura: “orientação, presença, interação afetiva, ambiente acolhedor e protegido.”

Neytire Mera, de 4 anos, é parte de uma família de São Bernardo do Campo (SP) que incentiva a autonomia desde os primeiros anos. “Eu e o Ricardo (pai de Neytire) decidimos ajudar a Mera a ser independente. Então, sempre a incentivamos a fazer tarefas sozinhas”, conta a mãe, Sheila Santos, coordenadora de engenharia.

Ela diz que a filha já faz a própria mamadeira, inclusive lavando a sujeira depois. Além disso, sabe fritar ovos, preparar arroz na panela elétrica, arrumar o próprio quarto, tomar banho e dormir, sem precisar que os pais mandem.

Nesse percurso, Sheila já coleciona algumas histórias engraçadas. “Ela nos acordou em um sábado, seis e meia da manhã, falando que tinha uma surpresa. Fomos até a cozinha e ela estava fritando ovos com casca”, lembra. “A cozinha estava muito suja. Mas ela pegou queijo, bolacha, suco e colocou na mesa. Foi assustador, mas gratificante.”

Neytire Mera mostrou, nesse dia, como a autonomia e a independência podem ser trabalhadas dentro de casa desde cedo. Embora usadas como sinônimos, as duas palavras têm conceitos diferentes. Enquanto a independência está ligada ao fazer – como quando a criança consegue realizar tarefas do dia a dia sozinha (se vestir ou escovar os dentes), a autonomia envolve algo mais profundo.

Ou seja, é a capacidade da criança agir de acordo com quem ela realmente é, respeitando seus sentimentos, vontades e tempo interno. “Independência é saber fazer sozinho, autonomia é saber quem se é; sentir-se seguro para existir como tal”, resume Juliana Borges.

“É preciso dar espaço para a criança superar suas dificuldades e exercer aquela tarefa”, Daniel Becker, pediatra.

Como incentivar a autonomia a cada fase de crescimento?

A psicóloga Juliana Borges lista algumas maneiras de auxiliar as crianças em cada faixa etária:

  • Até os 2 anos:

Atenda às necessidades do bebê com sensibilidade. Estabeleça rotinas e permita que ele explore o mundo sempre com supervisão. A presença afetuosa ajuda a criar uma base de confiança essencial para os próximos passos.

  • De 2 a 4 anos:

A criança começa a expressar vontade de fazer as coisas sozinha. Por isso, os pais podem estimular a autonomia oferecendo escolhas simples, incentivando pequenas tarefas e acolhendo os erros com paciência. O mais importante não é o acerto ou a perfeição, mas que a criança se sinta capaz de tentar.

  • De 5 aos 7 anos:

Nessa fase, ela já compreende melhor as regras e gosta de colaborar. Então, convide para participar das responsabilidades da casa, como arrumar seus pertences ou cuidar de um animal de estimação, por exemplo. Também é essencial escutar as opiniões e ajudar a lidar com emoções e frustrações.

  • A partir dos 8 anos:

Ela tem mais independência, portanto, é importante oferecer oportunidades de organizar as próprias tarefas e de resolver pequenos problemas sozinha. O diálogo aberto e o respeito às ideias são fundamentais nessa fase.

  • Na adolescência:

A autonomia se aprofunda e se conecta com a construção da identidade. Mais do que nunca, o jovem precisa sentir que tem liberdade para fazer escolhas, mas também que pode contar com o apoio dos adultos quando necessário. Estar presente sem invadir, escutar sem julgar e confiar no processo de amadurecimento são atitudes que mantêm o vínculo e reforçam a autonomia de forma saudável.

Autonomia fora de casa requer segurança de espaços públicos

Embora esteja claro o quanto a autonomia é importante para a criança, muitos pais temem, por exemplo, pela segurança delas em espaços públicos. Talvez seja o que mais diferencia a situação das crianças brasileiras e das japonesas, como visto em “Crescidinhos”.

Esse fator tem relação direta ao entendimento de que as cidades ainda não estão preparadas para as crianças, conforme destaca o cientista social Glauber Piva. Segundo ele, há uma valorização do espaço privado em detrimento do público. “Existe uma falta de pertencimento e conexão com espaços públicos. Para muitas crianças, o espaço urbano não é uma experiência tátil, pois elas não sentem a cidade com a sola dos pés”, destaca.

Já Carol Padilha, pedagoga e fundadora da ONG Carona a pé, ressalta que ao contrário do que muitas pessoas pensam, a aproximação com a cidade pode aumentar a segurança. “À medida que damos à criança a oportunidade de perceber o que é risco e o que tem que prestar atenção, isso lhe permite criar estratégias e desenvolver mecanismos de defesa”, explica. “Além disso, pode entender que em um grupo ela está menos vulnerável do que se estiver sozinha.”

É o caso da dona de casa Silvana da Silva, mãe de Miguel, 6, Gael, 4, e Jasmim, 2. Os três, que estão no espectro autista, sempre foram ensinados a conquistar aos poucos a independência para as pequenas tarefas. Assim, eles já ajudam nos deveres domésticos, sabem se vestir e comer sozinhos, aprendem a lidar com ocasiões difíceis.

“Ano passado, Miguel se dispersou da van escolar. Mas eu sempre ensinei para ele que não é para atravessar a rua sozinho, e sim esperar algum conhecido para ajudar”, lembra a mãe. “Uma amiga o encontrou por perto e o levou para a casa da avó. O que me impressionou foi que ele ficou calmo e soube lidar com a situação, não se desesperou ao se ver sozinho na rua.”

Dar as ferramentas necessárias para que a criança precise cada vez menos dos pais é a premissa para a autonomia. “Não é deixar de cuidar, é cuidar de um jeito que fortalece. É oferecer à criança a chance de sentir-se capaz, mas também amparada”, afirma Juliana Borges.

“O mundo pode sim apresentar riscos, mas é justamente por isso que ela precisa saber que tem com quem contar, que há alguém por perto que acredita nela, e que estará lá para segurar sua mão se for preciso.”

Nesse sentido, a psicóloga sugere criar oportunidades de autonomia em espaços conhecidos e protegidos, como a casa, a escola, ou a casa de um amigo ou parente. Desse modo, a proposta é permitir que a criança faça caminhos curtos mantendo a supervisão à distância, dar pequenas responsabilidades e incentivar o pensamento crítico. Um exemplo prático é perguntar “o que você faria se algo saísse do previsto?”.

Crianças maiores ainda precisam de atenção e combinados

A partir dos 10 anos, a criança entra em uma fase de maior autonomia prática e emocional. No entanto, isso não significa que já esteja pronta para lidar com tudo sozinha. “O papel dos cuidadores, nessa etapa, é acompanhar à distância, oferecendo apoio e orientação sem invadir o espaço”, recomenda Juliana.

Ela propõe que nessa faixa etária, as crianças já assumam compromissos e enfrentem pequenos desafios. “Ao invés de impor, os cuidadores podem construir combinados, como o tempo de uso de tela, horários de estudo ou de passeio, mostrando que a confiança está sendo construída em conjunto”, recomenda.

Outro ponto é o excesso de vigilância e controle que pode atrapalhar mais do que ajudar. Uma pesquisa feita pela Universidade de Minnesota, Estados Unidos, mostrou que crianças que tiveram pais superprotetores e controladores são menos capazes de lidar com desafios, têm mais dificuldade de regular as emoções e comportamentos e pior rendimento escolar.

“As memórias mais felizes das pessoas costumam estar associadas a uma vivência autônoma, de brincar livre, longe da supervisão dos adultos”, pontua Glauber Piva. “É na completa autonomia que somos potentes e por isso mais felizes. Quanto mais a criança é controlada, menos autônoma ela é.”

Sinais de que a criança está pronta para mais autonomia:

  • Começa a pedir mais privacidade ou espaço;
  • Assume responsabilidades sem ser lembrada o tempo todo;
  • Faz escolhas coerentes com sua idade;
  • Sabe pedir ajuda quando precisa;
  • Consegue reconhecer as consequências de suas atitudes.

* É fundamental que um adulto esteja presente para observar esses sinais com atenção e sensibilidade, oferecendo apoio sem antecipar respostas, incentivando a criança a confiar em si mesma.

 Atividades práticas para incentivar autonomia com segurança

  • Deixar que a criança planeje a própria lancheira ou roupa do dia;
  • Criar um quadro de decisões para as tarefas da semana;
  • Permitir pequenas saídas com supervisão indireta (por exemplo: no condomínio, até a casa de um vizinho);
  • Estimular que ela resolva pequenos problemas sozinha, com apoio emocional sempre disponível.

  • A mediação de um adulto atencioso permite que essas experiências não virem fonte de medo ou cobrança, mas sim oportunidades reais de crescimento e fortalecimento do vínculo.

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