Com arte, ciência e tecnologia, movimento olha o passado para entender o presente e projetar futuros de empoderamento para crianças e adultos negros
O afrofuturismo ensina sobre ancestralidade e inventa um tempo em que a escravidão nunca existiu. Nesta série de reportagens para o mês da Consciência Negra, Lunetas conta histórias de projetos culturais e artísticos infantis que exaltam a potência da África.
Em uma Salvador do futuro, onde ferry boats e naves espaciais dividem o mesmo cenário, o menino Kinho tenta aproveitar o dia com o pai apesar dos acontecimentos estranhos, cheios de fantasia e ficção científica. A história do curta-metragem baiano “Meu Pai e a Praia” tem um cenário afrofuturista e fala de ausência paterna, maternidade solo e afeto entre famílias negras. O protagonista Kaio Ribeiro, 11, explica pela visão do personagem o que é, então, o afrofuturismo.
“É quando a cultura afro é bem maior e fica muito grande! Mas não só ela, a cultura brasileira também. Então, essas duas se juntariam em uma mistura muito linda no audiovisual do futuro”, conta o ator. Para ele, dar vida a Kinho o fez pensar sobre a cidade onde vive e estuda. “Eu imagino que vou estar dentro da cultura afro na Salvador do futuro, e que vou ser inspiração para outras crianças e adultos”.
“Meu Pai e a Praia” estreou este mês na 13ª edição do Africa International Film Festival (AFRIFF), em Lagos, na Nigéria. Marcos Alexandre, diretor do filme, comemora a seleção para o festival antes mesmo da estreia no Brasil, prevista para 2025. “A gente reconstrói um pouco a travessia com um novo olhar sobre Salvador e sobre famílias pretas, fugindo dos estereótipos”, diz.
Ao enxergar uma beleza única na conexão com a cidade mais negra fora da África, somada à sua própria história – e que reflete a de outras famílias -, Marcos brincou com o tempo e viajou ao passado durante as filmagens. Isso porque Kinho é como uma versão criança dele mesmo. Ele conta que a motivação foi a própria relação com o pai e os filmes que assistia quando pequeno, como “Star Wars” e “Eu, Robô”. Assim, colocou suas memórias inventando Salvador com satélites e planetas vistos da Baía de Todos os Santos. Além disso, afirmou o conceito trabalhado na produção: “o afrofuturismo é a possibilidade de criar futuros em que normalmente crianças negras não se veem”.
“Quanto mais obras afrofuturistas surgirem, mais bonita pode ser a relação com a criança negra. Com o filme, meninos e meninas soteropolitanos podem construir um novo olhar para a cidade, ao mesmo tempo em que outras crianças vão se ver na relação familiar negra e periférica.”
A visibilidade ao protagonismo de crianças negras também inspirou o escritor e roteirista Marcelo Lima, autor da história em quadrinhos “Os Afrofuturistas – o ataque dos Kips”. Na aventura, os irmãos, Tereza, Dandara e Cosme, tentam salvar o pai de criaturas milenares com a ajuda de Maria Felipa e Zumbi dos Palmares. As crianças conhecem, então, outra história do Brasil e vão saber que “a luta não é feita somente por quem domina, mas também por quem resiste”, afirma Marcelo. Em uma cena de “Meu Pai e a Praia”, Kinho aparece assistindo essa história animada na televisão.
Na mistura entre mitologia e ancestralidade com o universo de super-herois, o escritor de Feira de Santana (BA) disse que produziu o que gostaria de ter lido enquanto criança preta e nerd nos anos 1990. Ele também conta que tinha pouco acesso a personagens negros, além de Tempestade (X-Men) e Super Choque. “Quando a gente fala de afrofuturismo, os conceitos já vêm com um certo refino acadêmico, uma coisa rebuscada. Já o super-herói, não. É fantasia, ficção científica e diversão, mas com elementos da cultura negra que as crianças acessam”, explica.
Marcelo acredita que a leitura da HQ permite vários processos de identificação. “Tanto crianças negras podem se ver como protagonistas quanto crianças brancas podem ver personagens negros e falar ‘Pô, quero ser que nem esse herói´ e fazer cosplay, se vestir como ele”, diz. Ele lembra também que, mesmo não sendo asiático, adorava Goku (Dragon Ball) e se identificava com o personagem quando pequeno.
A história de “Os Afrofuturistas” pode fortalecer entre as crianças o senso de pertencimento, defende Renato Barreto, ilustrador que deu forma às palavras de Marcelo Lima. Os dois já tinham uma parceria em outros projetos de animação, como “Galera da Praia” e “Auts”. Mas essa foi a primeira vez em que Renato mergulhou no mundo dos quadrinhos, inspirado nas pinturas batik, de Moçambique.
Para o artista, falar sobre afrofuturismo com crianças e jovens, especialmente em Salvador, cidade onde nasceu e passou a infância, é vislumbrar um futuro cheio de possibilidades. “Salvador carrega um legado histórico e cultural profundo, mas que muitas vezes não é valorizado como deveria.”
“O afrofuturismo oferece uma visão inspiradora, que ajuda a combater estereótipos e a fomentar o orgulho racial, promovendo uma autoestima saudável. Além disso, contribui para a construção de uma sociedade mais inclusiva e consciente da riqueza cultural afro-brasileira.”
O gibi traz ainda uma aula sobre o tempo, desfazendo a ideia muito comum de que tecnologia é o futuro e ancestralidade, o passado. Marcelo espera então que as crianças vejam que está tudo conectado, e tanto existem tecnologias ancestrais quanto ancestralidades ligadas ao futuro. “Elas vão entender sobre origem e por que pensam de determinada maneira. Por que o nariz é naquele formato, por que o cabelo é daquele jeito e por que tudo isso pode estar integrado”, diz. “Vão ver que estão cercadas de várias coisas que foram construídas pela humanidade e que apontam para o futuro.”
A professora Bárbara Carine, da Universidade Federal da Bahia, indica a filosofia africana Sankofa para apresentar o afrofuturismo às crianças e adolescentes das mais diferentes realidades. “São as releituras das nossas memórias a partir de um marcador de potência e de pioneirismo em lugar de um passado colonialista e opressor”, diz. Portanto, ao fazer isso, ela afirma ser possível que cada um ressignifique quem deseja ser, de forma individual e coletiva.
Há muitas linhas do tempo para explicar o afrofuturismo, mas o ideograma africano Sankofa resume a ideia. Ele faz parte de um conjunto de símbolos chamado “adinkra”, representado de duas maneiras: um pássaro com a cabeça voltada para trás, que avança carregando um ovo no bico; e um coração feito de formas que lembram esse pássaro. Sankofa, palavra da língua akan (de Gana) significa, portanto, algo como “volte e pegue”. Esse sentido é derivado da expressão “Não é tabu retornar e buscar o que você esqueceu”. A ideia do afrofuturismo é, então, olhar para trás e aprender com o que já aconteceu para construir novos futuros.
Bárbara também incentiva a consciência entre as crianças que estudam na Maria Felipa, primeira escola afro-brasileira do país, fundada por ela em Salvador e que tem uma filial no Rio de Janeiro. Lá, a frase “Não basta não ser racista, sejamos antirracistas”, da filósofa Ângela Davis, é ampliada pela pedagogia da positivação, que descoloniza currículos. Além disso, mostra a meninas e meninos um olhar crítico sobre o mundo que, por séculos, colocou crianças negras como espectadoras de histórias brancas.
“Que crianças negras, indígenas e brancas possam aprender que a matemática, a escrita, a química e a medicina surgiram na África, produzidas por nossos ancestrais, que foram os primeiros humanos. Essa aprendizagem incentiva a construção de uma autorreferência positiva.”
Concorrente ao prêmio Jabuti de literatura na categoria Educação, com o livro “Como ser um educador antirracista” (Editora Planeta), Bárbara aborda o racismo estrutural, ao mesmo tempo em que mostra o pacto da branquitude e investiga o papel dos educadores na emancipação dos estudantes. Antes disso, escreveu “@Descolonizando_saberes: mulheres negras na ciência” e “História preta das coisas: 50 invenções científico-tecnológicas de pessoas negras”, que também foram finalistas do Jabuti. Todas essas leituras ajudam a compreender o afrofuturismo, especialmente no convite aos professores a serem “doadores de memórias”, e, ao mesmo tempo, se perguntarem diariamente “para qual sonho você educa?”
Nesse sentido, Bárbara escreveu mais dois títulos: “Educando crianças antirracistas” e “Querido Estudante Negro”. Nos livros, os protagonistas negros são carregados de sonhos, leituras de mundo e construção de identidade durante a vida escolar.
Compreender o afrofuturismo no mês da Consciência Negra tem ainda outro sentido em 2024. Isso porque é o primeiro ano em que o dia 20 de novembro será oficialmente um feriado nacional. O assunto também pode ser ponto de partida para um debate mais amplo como, por exemplo, no tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), em que 3,2 milhões de candidatos escreveram sobre “Desafios para a valorização da herança africana no Brasil”. Além disso, a data permite lembrar a importância de Zumbi de Palmares, celebrar a cultura africana no país e ampliar as lutas antirracistas na sociedade.
*Esta reportagem foi produzida com o apoio da Imaginable Futures.